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Direito: linguagem, poder simbólico e interpretação

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19/05/2012 às 15:30
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4 CONCLUSÃO

Esta sintética exposição demonstrou a situação sociológica do conhecimento jurídico-científico, em especial sua capacidade de dominação simbólica. Não obstante as peculiaridades de cada um, este poder está presente nas demais ciências e até mesmo na Filosofia. Todo conhecimento é histórica e sociologicamente situado. Para ser mais explícito, todo cientista possui seu papel, pois a conduta do ser humano enquanto cientista influi – positiva ou negativamente – no meio em que vive. Neste tempo que costumam chamar de pós-moderno, os problemas envolvidos neste aspecto comportamental do cientista se tornaram gritantes nas ciências naturais com a emergência da Bioética como ramo da Ética da Ciência. A razão prometeu uma centena de coisas ao homem moderno, mas o que vemos hoje é o espírito humano cair no mais profundo niilismo das incertezas estruturais.

Com os cientistas culturais não é diferente (aliás, os problemas são mais complexos ainda), especialmente com o jurista. O cientista jurídico tem por objeto um sistema de normas (jurídicas) de conduta e o que ele diz respinga na sociedade na qual está inserido, influindo na conduta humana. Pensando em nossa realidade social e histórica, o jurista brasileiro vive numa sociedade em processo nascente de democratização e disso decorre seu papel ou função social (que não é científica): a inclusão de toda sociedade na compreensão e desenvolvimento da ordem jurídica nacional, de acordo com os caminhos traçados pela Constituição Federal de 1988. No entanto, nas camadas mais “refinadas” do conhecimento humano, nutre-se um preconceito generalizado contra o conhecimento vulgar, contra o que é popular, sendo que as experiências do cotidiano constituem uma fonte inesgotável de questionamentos, base para qualquer pesquisa de caráter científico ou filosófico. Portanto, a democratização do saber deveria ser a nota dominante:

Deve-se, portanto, atentar para o fato de que a transparência deve chamar mais a atenção dos produtores de conhecimentos específicos. Deve-se propor que ambas as experiências, a experiência dos saberes científico e filosófico e a experiência do senso comum, convivam lado a lado, abolindo-se os preconceitos normalmente aceitos como impeditivos de um diálogo entre ambas as linguagens; convivendo, somente vantagens maiores poderão advir desse relacionamento (ALMEIDA; BITTAR, 2009, p. 35).

O saudoso Mussum, em certo quadro do famoso programa humorístico “Os Trapalhões”, disse a Dedé: “você precisa aprender a crassificar os nomes, [...] pra você saber a diferença das coisa!” (sic), ou seja, transmitiu por meio do discurso humorístico comum a exigência básica de rigor terminológico e tipológico inerente a qualquer ciência. Seja ele fato ou mito, o episódio da maçã que levou Isaac Newton a formular a lei da gravidade retrata bem que acontecimentos corriqueiros, às vezes frequentes no cotidiano da vida comum, podem gerar questionamentos de relevância científica e filosófica inestimável. Consequentemente, deve ser aprofundado o processo de difusão do conhecimento jurídico para toda a sociedade, pois nela surgem todos os problemas enfrentados cotidianamente pelo jurista. Neste sentido, merece destaque o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) que disponibiliza em seu site[17] vários guias, sem linguagem rebuscada e com diversas ilustrações para facilitar ainda mais a compreensão sobre temas jurídicos que, por sua própria essência, têm raízes fincadas no dia-a-dia de todos. Que este tipo de atitude seja divulgada e compartilhada. Mas, não é preciso dizer que este não pode ser um processo de “mão única”: de nada adianta disponibilizar o acesso e partilhar do conhecimento se os interlocutores não possuem interesse algum em conhecer. Sapereaude!


REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

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Notas

[1] Estranhamente, não há previsão específica da disciplina “Teoria Geral do Direito”.

[2] É importante lembrar que esta discussão ocorre sob a ótica ontognoseológica, não metafísica. Os objetos ideais (v. g., os números, formas geométricas e os símbolos lógicos) não existem de per si, como no mundo platônico das ideias. Existem enquanto objetos do conhecimento humano.

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[3] Não faço referência aos valores porque as ciências culturais os estudam apenas enquanto “concretizados historicamente em esferas particulares da realidade”. Somente a Filosofia considera os valores como tais, “enquanto condições que tornam as valorações possíveis” (REALE, M., 2009, p. 68).

[4] Indiretamente porque os advogados – e também a doutrina – não constituem qualquer fonte do Direito (levo em conta apenas o ordenamento jurídico estatal). Bastante ilustrativa é esta alegação de Ives Grandra Martins: "Pessoalmente sou contra o casamento entre homossexuais, não contra a união. A união pode ser feita e tem outros tipos de garantias, como as patrimoniais. Minha posição doutrinária, sem nenhum preconceito contra os homossexuais, é que o casamento e a constituição de família só pode acontecer entre homem e mulher. Mas o Supremo é que manda e sou só um advogado" (2011, grifo meu).

[5] Este é um tema interessantíssimo que pretendo abordar em outra oportunidade. Só para esclarecer, nas leituras que fiz constatei a dissonância entre o que os doutrinadores brasileiros mais conhecidos escrevem sobre “fontes do Direito” nos seus manuais (considerada apenas como matéria marginal) e o que dizem jusfilósofos e teóricos do Direito da estirpe de Kelsen, Bobbio e Reale.

[6] Também não concordo plenamente com o termo “doutrina”, porque passa a nítida impressão do império do argumento de autoridade. Mas, na falta de expressão melhor e por facilitar a comunicação, não vejo maiores problemas na sua utilização.

[7] Este é o positivismo jurídico ideológico, que errônea e insistentemente é associado ao positivismo jurídico de Kelsen.

[8] Até mesmo Kelsen – considerado como subserviente ao Estado – reconhece a função crítica da Dogmática Jurídica, como está evidenciado nas páginas vestibulares e no próprio título de sua obra “The Law ofthe United Nations: a CriticalAnalysisof Its Fundamental Problems” (1951).

[9] Este é mais um dos paradoxos que caracterizam a modernidade, pois sob o pretenso domínio da razão subsiste a irracionalidade pulsante do ser humano.

[10] Neste texto eu os coloco do mesmo lado, mas Bourdieu critica Kelsen e sua tentativa de criar uma teoria pura do Direito que “[...] não passa do limite ultra-consequente do esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento” (2005, p. 209).

[11] Esse é mais um dos argumentos que militam a favor do que dissemos acima, de que a doutrina não é fonte do Direito: “Interpretação como função jurídica somente é possível como interpretação autêntica. Qualquer outra interpretação de uma norma jurídica é atividade intelectual que talvez tenha grande influência sobre a função jurídica criadora e aplicadora, mas não possui importância jurídica em si mesma. [...] A incumbência do comentário científico é antes de tudo encontrar, pela análise crítica, os possíveis sentidos da norma jurídica objeto da interpretação; e, então, mostrar suas consequências, deixando para as autoridades jurídicas competentes escolher entre as várias interpretações possíveis aquela que, por razões políticas, consideram ser preferível, e que só eles têm o poder de selecionar” (KELSEN, 1951, p. XV-XVI, tradução minha).

[12] Exceto no caso da norma fundamental, que não é produzida e nem é fruto da aplicação de alguma norma superior; bem como no caso dos atos executivos na base do ordenamento que apenas aplicam, mas não criam normas. Que seja salientado: falo isso da perspectiva teórica kelseniana.

[13] Não sei se a colocação de “teóricos” e “práticos” em campos estanques deva ser considerada legítima, pois considero extremamente artificial.

[14] Percebam que para Kelsen a ciência não pode prescrever nada, mas ele – porque faz filosofia da ciência – estabelece (prescreve) o que o cientista deveria fazer.

[15] Infelizmente, não consegui ter acesso direto ao parecer. Encontrei algumas menções na dissertação de mestrado de Roseli Torezzan (“O Governo Provisório na Constituinte de 1933/34”), que demonstram apenas hipóteses científicas e não qualquer fixação de competências.

[16] “O fato de que as normas jurídicas são formuladas em palavras que frequentemente têm mais de um sentido é a razão pela qual todo instrumento jurídico tem vida própria, mais ou menos independente dos desejos e expectativas de seus criadores. Que a lei seja aberta a mais de uma interpretação é certamente prejudicial à segurança jurídica; mas possui a vantagem de fazer a lei adaptável às circunstâncias mutantes, sem a necessidade de sua alteração formal” (KELSEN, 1951, p. XIV-XV, tradução minha).

[17] Cf. <http://www.idec.org.br/em-acao/multimidias>.

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Sobre o autor
Jhonatan de Castro e Silva

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Jhonatan Castro. Direito: linguagem, poder simbólico e interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3244, 19 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21809. Acesso em: 20 abr. 2024.

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