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Direito: linguagem, poder simbólico e interpretação

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19/05/2012 às 15:30
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Nas camadas mais “refinadas” do conhecimento humano, nutre-se um preconceito generalizado contra o conhecimento vulgar, contra o que é popular, sendo que as experiências do cotidiano constituem uma fonte inesgotável de questionamentos, base para qualquer pesquisa de caráter científico ou filosófico.

SUMÁRIO. 1 INTRODUÇÃO. 2 LINGUAGEM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO. 3 LINGUAGEM JURÍDICA: FENOMÊNICA E CIENTÍFICA; 3.1 OS NÍVEIS LINGUÍSTICO E METALINGUÍSTICO DO DIREITO; 3.2 O PODER SIMBÓLICO DO STATUS QUO DO DIREITO; 3.3 EM BUSCA DO SENTIDO JURÍDICO: O PARADIGMA KELSENIANO. 4CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1 INTRODUÇÃO

Este artigo não tem o propósito de desenvolver extenso e profundo estudo sobre os temas trazidos pelo título. Procuro apenas fomentar a reflexão e tomar apontamentos sobre questões presentes no cotidiano existencial do Direito, naquilo que Edmund Husserl chamava de Lebenswelt ou “mundo do viver comum”: por que a linguagem jurídica é, em sua maior parte, tão difícil de ser compreendida, transformando-se no hermético “juridiquês”? Se esta torrente de normas jurídicas encontra seu lugar “natural” na sociedade, não deveriam ser facilmente captadas e decifradas por seus destinatários, mormente em uma sociedade pretensamente democrática, como a brasileira? O conhecimento jurídico é algo somente para sujeitos “religiosamente iniciados”? É possível, por meio da interpretação, encontrar o sentido verdadeiro da norma jurídica? São estas perguntas que guiarão esta pesquisa ao percorrer assuntos como linguagem e metalinguagem do Direito, as relações entre linguagem jurídica e vulgar, o poder simbólico do status quo jurídico e a questão da decidibilidade e interpretação sob o paradigma kelseniano.

Os paradoxos envolvidos neste conjunto de problemas colocam o próprio autor em uma encruzilhada: mesmo não sendo tão complexo, este texto utiliza certas noções filosóficas e científicas desconhecidas – infelizmente – do público em geral. Entretanto, considero os cientistas jurídicos e estudiosos do Direito em geral como interlocutores (o que não exclui todos os demais) e, por isso, parto dos seguintes pressupostos: se conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Resolução CNE/CES n.º 9/2004) ramos do conhecimento tais como a Filosofia, a Sociologia e a História fazem parte do Eixo de Formação Fundamental (art. 5º, I) do acadêmico[1], os temas abordados neste texto não trarão ou não deveriam trazer maiores problemas.


2 LINGUAGEM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Numa definição geral e tópica, linguagem é “todo sistema de signos que serve de meio de comunicação entre indivíduos e pode ser percebido pelos diversos órgãos dos sentidos” (FERREIRA, 2004). Miguel Reale frisa que todo ramo do conhecimento científico forja sua própria e específica linguagem (REALE, M., 2007, p. 8) que, dentre outros objetivos, delimite seu espaço de atuação cognitiva e discursiva perante as demais ciências e outros tipos de conhecimento, seja ele comum, filosófico ou religioso. Assim, determinar sua linguagem é tão elementar quanto o objeto e o método. Não existe discurso sociológico veiculado pela linguagem da física, assim como não existe discurso psicológico travestido de linguagem jurídica.

Toda ciência deve ter um vocabulário refinado e, na medida do possível, depurado de elementos estranhos ao objeto cognoscível. Novamente com apoio em Miguel Reale, esta tarefa cabe inicialmente à Teoria do Conhecimento, ramo da Filosofia. Em um primeiro momento, no plano do conhecimento enquanto tal, na correlação dialética do ponto de vista subjetivo e objetivo, que é a Ontognoseologia: deve-se estudar todos os fundamentos a priorique sustentam o sujeito que tem a capacidade conhecer (origem, essência, possibilidade e forma do conhecimento) e as distintas e esferas objetivas passíveis de serem conhecidas (natural, ideal, axiológica e cultural), separáveis apenas por abstração teórica e didática. Esta é a parte geral da Teoria do Conhecimento. Estabelecidos os parâmetros da relação entre o conhecimento em geral que se tem sobre os diferentes campos da realidade, a teoria do conhecimento focaliza na situação concreta do conhecimento científico (Epistemologia), da estrutura do pensamento na consequencialidade intrínseca dos raciocínios (Lógica) e dos caminhos que possibilitam ao pensamento o acesso aos objetos (Metodologia) (REALE, M., 2009, p. 26-31).

É perceptível a impossibilidade de produzir, reproduzir ou transmitir conhecimentos sem a linguagem. Afinal, não é esta uma das características essenciais que distinguem o ser humano dos outros animais? Não é por meio da linguagem que o ser humano pensa, compreende, descreve e constrói a realidade? Desde o início do século XX a linguagem é objeto de profundos estudos e a Filosofia da Linguagem é uma das manifestações mais interessantes de nosso tempo. Os neopositivistas do Círculo de Viena – tais como Moritz Schlick, Hans Reichenbach, Rudolf Carnap e Ludwig Wittgenstein, avessos a qualquer forma de conhecimento científico fora do modelo físico-matemático, reduziam a própria Filosofia à mera atividade de depuração lógica da linguagem científica. Veja-se, v. g., o clássico aforismo 4.112 da obra Tractatus Logico-Philosophicusde Wittgenstein, considerada fundamental para o Círculo (REALE, G.; ANTISERI, 2006, v. 6, p. 307).

Sem adentrar nesta discussão sobre a dignidade da Filosofia, o certo é que cada cientista – pressupondo conscientemente ou não as meditações ontognoseológicas e epistemológicas – deve clarificar as proposições com as quais pensa, descreve e compreende algo que, trazido à consciência e submetido a este labor espiritual do sujeito cognoscente, torna-se objeto do conhecimento. De certa maneira, este intuito é realizado sem maiores óbices quando referido aos objetos naturais, pois, como diz Kelsen, uma planta – da mesma forma que um campo eletromagnético ou uma molécula – nada pode comunicar sobre si mesma ao observador. Os objetos ideais, apesar de se manifestarem por meio da linguagem, possuem altíssimo nível de univocidade, porque além de existirem[2] fora do espaço-tempo, são axiologicamente neutros e, portanto, semanticamente estáveis: o teorema de Pitágoras ou a fórmula lógica silogística valem tanto na Antiguidade quanto no século XXI, seja aqui no Brasil ou na Mongólia, na Islândia ou em Java.

Quanto aos objetos culturais, cujo estudo científico cabe às Ciências humanas, sociais ou culturais[3], surgem dificuldades adicionais. A linguagem é um dos mais elementares bens de cultura e, em contrapartida, a cultura depende irremediavelmente da linguagem, pois tão humano quanto a cultura é a própria linguagem. A “família” é um fenômeno social, objeto da Sociologia. Contudo, o significado da palavra “família” varia de sociedade para sociedade, dentro de uma mesma sociedade pode variar entre diferentes grupos ou classes sociais e incontáveis vezes até de indivíduo para indivíduo. Está carregada de força valorativa, já que atualmente uns falam em dissolução da família – com juízo subjetivo de valor negativo implícito, reprovação – e outros em apenas novas formas de convivência familiar – com juízo subjetivo de valor positivo implícito, aprovação. Esta variabilidade, a priori, tornaria impossível qualquer uso científico do vocábulo. Entretanto, a capacidade sintetizadora do espírito consegue – mesmo que leve em conta estas significações vulgares – executar uma tarefa de depuração para que haja um mínimo de coerência e objetividade científica (no caso, sociológica).


3 LINGUAGEM JURÍDICA: FENOMÊNICA E CIENTÍFICA

3.1 OS NÍVEIS LINGUÍSTICO E METALINGUÍSTICO DO DIREITO

No que se refere à Ciência do Direito, esta dupla problemática também se faz presente, que defino como fenomênica (nível de linguagem) e científica (nível de metalinguagem). No primeiro caso, é o fenômeno jurídico de per si. Sinteticamente, o núcleo do fenômeno jurídico é o caráter normativo ou prescritivo de seu discurso (FERRAZ JR., 2009, p. 244). Desde os agudos trabalhos de Hans Kelsen e Norberto Bobbio, sabe-se que o Direito só existe enquanto ordenamento jurídico – e esta é uma das maiores conquistas científicas do século XX no âmbito das Ciências culturais; ou seja, é um sistema de normas, que só adquirem juridicidade enquanto inseridas nesta estrutura maior que é o próprio ordenamento jurídico. Normas existem para pautar condutas humanas ou tudo que faça referência à conduta humana (v. g., um fato natural com relevância jurídica, como o tempo para a prescrição ou determinação da capacidade civil e imputabilidade penal do ser humano). Basicamente, estabelece o que devemos, não devemos e o que podemos fazer, ou seja, os limites e as razões do agir humano em sociedade. Para tanto, transmitem-se, manifestam-se e vivem por meio da linguagem.

Não parece, mas esta afirmação banal é rica em consequências. Afinal, para que possamos nos conduzir juridicamente, devemos entender e compreender os signos que veiculam o quê é juridicamente exigido de nós, senão não há comunicação jurídico-normativa possível. A clara determinação dos significados transmitidos pelos significantes é fundamental. Os significantes (suportes para a veiculação da ideia ou conceito: significado) mais comuns são as palavras (como as escritas nos códigos ou sentenças), mas podem ser também gestos (como a continência militar), “desenhos” (sinais de trânsito) etc. Portanto, aqueles que detêm o poder de criar normas jurídicas – que chamarei aqui de “autoridades” – devem ser objetivos e claros ao utilizarem os signos com os quais irão produzir tais normas. Do mesmo modo, aqueles – mormente os advogados – que direta ou indiretamente contribuem para este processo também devem ter este cuidado. Assim, os destinatários terão alguma possibilidade de compreender os limites jurídicos de sua conduta.

A linguagem jurídica fenomênica não surge “do nada”, mas está inserida na linguagem vulgar como sua especialização ou uso particular e, como afirma Pierre Bourdieu, “os analistas têm muita dificuldade em descobrir o verdadeiro princípio desta ‘mistura de dependência e de independência’” (2005, p. 226). Realmente, são várias as dificuldades. Se os limites entre a linguagem jurídica fenomênica e a linguagem popular ou do senso comum forem completamente diluídos, será sacrificado um dos elementos constitutivos do Direito: um mínimo de certeza, pois uma de suas características elementares é a padronização ou estabilização normativa de certas condutas humanas, “[...] sendo superada a variabilidade contraditória dos comportamentos singulares para se atingirem esquemas ideais ou modelos de ação, isto é, formas típicas e exemplares de conduta, compatíveis com certa margem de previsão geradora de confiança nos resultados de nossas iniciativas” (REALE, M., 2009, p. 245, grifos no original).

Por conseguinte, em vez da almejada compreensão, haverá completa falta de entendimento. Esta contradição é bem ilustrada pela anedota trazida por Miguel Reale, advinda de seu labor advocatício, sobre a palavra “competência”: para alguém sem intimidade com a linguagem jurídica, seria absurdo chamar um magistrado de “incompetente” para julgar uma lide (REALE, M., 2007, p. 8). Se pensarmos na sociedade brasileira a situação é ainda mais complexa: não existe linguagem popular uniforme. No interior da língua portuguesa falada no Brasil existem vários dialetos, derivados de peculiaridades sociais, históricas e geográficas.

Há, então, certo esforço das autoridades para criar uma linguagem jurídica técnica, uniforme, refinada de elementos “perturbadores” do senso comum. Por óbvio, muitas vezes isso não ocorre, seja pela própria natureza da linguagem, seja pela falta de cuidado ou por más intenções daqueles que estão aptos (têm competência) a produzir tais normas jurídicas. A linguagem não é cerrada e estática; por ser um bem cultural, é intrinsecamente fluida e dinâmica. Significante e significado não se correspondem sempre da mesma maneira: a variabilidade aqui é inevitável. Eis o lastro para o surgimento de um sistema de conhecimentos metódicos e objetivamente conduzidos que chamamos de Ciência do Direito. Esta ciência pretende responder a esta pergunta básica: será possível definir o sentido ou os possíveis sentidos das normas jurídicas? Desse modo, uma das tarefas básicas do cientista jurídico é determinar os sentidos possíveis de uma dada norma, de um instituto ou de um princípio jurídico. Esta é a sua função científica elementar.

Ora, a ciência deve guiar seus estudos nos limites do seu objeto, pois cada ramo do conhecimento científico tem um objeto epistemologicamente determinado. Desse modo, a linguagem jurídico-fenomênica se impõe ao jurista. Então, se o sociólogo possui ampla margem de liberdade para desconsiderar os sentidos comuns da palavra “família”, “capitalismo” ou “globalização”, elaborando a purificação conceitual, o jurista dogmático não pode simplesmente deixar de lado o que as autoridades “dizem” nas normas jurídicas, porque no âmbito da Ciência Dogmática do Direito vigora o princípio da inegabilidade dos pontos de partida: a ordem jurídica vigente não pode ser ignorada, é o limite dentro do qual se dão as investigações científicas do jurista dogmático (FERRAZ JR., 2009, p. 25).

Só que, quiçá mais do que qualquer outro cientista, o jurista influi no seu próprio objeto de estudo, no fenômeno jurídico em si. Os frutos de suas pesquisas são utilizados por aqueles que criam, aplicam, produzem e reproduzem o sistema jurídico: basta pensar no labor jurisdicional ou nas “comissões de juristas” instituídas para proceder à codificação de parcelas da ordem jurídica. Além disso, a formação praticada nas faculdades de Direito não é apenas científica, mas também profissional. Quase todos aqueles que saem dos bancos das faculdades são os que contribuem para a construção da ordem jurídica, indiretamente – como advogados[4] – ou diretamente – como juízes e promotores, cujas atividades profissionais só podem ser exercidas licitamente se concluírem o curso de Direito (além de outros requisitos específicos). A propósito, os juristas correm o risco de, por serem também profissionais do Direito, não terem aquele mínimo de objetividade exigido pela ciência, pois podem desenvolver seus estudos e publicar os resultados apenas para atender interesses econômico-profissionais. Não é à toa que muitos – erroneamente – consideram a doutrina como fonte do Direito[5].

3.2 O PODER SIMBÓLICO DO STATUS QUO DO DIREITO

Consequentemente, existe perigosa confusão entre discurso jurídico-científico e jurídico-fenomênico. É inevitável, então, certo afastamento do entendimento comum. Talvez seja este o motivo da depreciação generalizada de tudo o que envolve o Direito, acusando-o de hermetismo, atividade para um círculo restrito de indivíduos ou de “iniciados”. Celso R. de Mello (2004, v. 1, p. 94), em extensa nota complementar, arrola várias críticas ao status quo do Direito, ou seja, nos aspectos fenomênico, científico e filosófico. Ele é filiado ao pensamento marxista e à corrente do pensamento jurídico francês denominado “Crítica do Direito”, afinada com discurso pós-moderno. De fato, muitas críticas feitas por ambas as correntes são procedentes; outras nem tanto, pois partem de incompreensões surgidas de um ímpeto destrutivo incontrolável.

É óbvio que, por ser o Direito objeto de ciência, esta desenvolve seu próprio discurso, com lógica e terminologia peculiares. Só quem se dispõe a esta exaustiva tarefa que é estudar cientificamente o Direito poderá ter algum domínio sobre seu aparato conceitual. Chega a ser irônico que alguns marxistas critiquem o Direito a partir desta ótica, pois Marx considerava o proletariado como sujeito da História, único capaz de fazer a revolução definitiva que suprimiria de vez a opressão de uns poucos sobre o resto da sociedade. Suas palavras, portanto, eram direcionadas à classe operária, embebida apenas do senso comum. O “Manifesto Comunista” tem este objetivo. Mas, será que, em geral, o operário comum conseguirá ler e compreender a monumental obra científica que é “O Capital”? Entenderá o que Marx faz da dialética hegeliana, a partir da decisiva influência recebida do materialismo de Ludwig Feuerbach? Conseguirá vislumbrar o sentido marxista dos conceitos de ideologia, alienação, estrutura-superestrutura ou sociedade civil? Não é impossível, mas improvável.A propósito, Umberto Eco salienta muito bem as disparidades existentes entre linguagem e metalinguagem, já que “um psiquiatra que descrê doentes mentais não se exprime como os doentes mentais” (2007, p. 165) e do mesmo modo:

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[...] quando Marx queria falar dos operários, não escrevia como um operário do seu tempo, mas como filósofo. Quando depois escreveu com Engels o Manifesto de 1848, utilizou um estilo jornalístico de períodos curtos, muitíssimo eficaz e provocatório. Mas não é o estilo de O Capital que se dirige aos economistas e políticos (ECO, 2007, p. 165-166, grifos no original).

 Até porque, como Marx dizia, “todo julgamento da crítica científica será bem-vindo. Quanto aos preconceitos da assim chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, tomo por divisa o lema do grande florentino: Segui iltuo corso, e lasciadirlegenti!”(MARX, 1988, v. 1, t. 1, p. 20).

Atacam, por outro lado, o formalismo da Jurisprudência, com seu suposto caráter acrítico e submisso, sendo que a palavra “dogmática” atesta sua vinculação com o argumento abauctoritate, assemelhando-se à Teologia (MELLO, Celso R., 2004, v. 1, p. 97): a palavra “doutrina”[6] que denomina a produção “científica” dos juristas seria verdadeiro atestado de culpa. Estes julgamentos são antigos, nasceram com as concepções sociológicas do Direito no século XIX. Não obstante a tese reducionista do assim chamado “sociologismo jurídico”, seus defensores desferiram seus golpes contra os alvos certos: a Escola da Exegese francesa e a Jurisprudência dos Conceitos alemã. Ambas idolatravam a função meramente (e falsamente, já que veiculava preceitos ideológicos) descritiva da Ciência do Direito, que tinha por objeto apenas a lei stricto sensu, que era o exemplo mais avançado e límpido da juridicidade, com a exclusão ou submissão de outros tipos de norma; ou seja, era de fato subjugada frente ao Direito estatal legislado[7]. Estes posicionamentos, porém, restam superados. Hoje se reconhece a função crítica no campo da própria Dogmática, particularmente quando se trata de temas constitucionais.

Por sua vez, “Dogmática” Jurídica não equivale a “dogmatismo”. Esta é a atitude de “aceitação, sem discussão, das verdades jurídicas como se tratasse de regras absolutas e infalíveis” (REALE, M., 2007, p. 324), como nas correntes que propugnam a existência do Direito Natural, perfeito e justo em si mesmo, acima do falível e corrupto Direito positivo. Alguns diletantes do pensamento de Marx – que costumo chamar de “marxistas de fim-de-semana” – incorrem no mesmo erro. Nicos Poulantzas, ao contrário, demonstra maior “honestidade intelectual” que deveria servir de exemplo a qualquer cientista:

[...] não pode haver marxismo ortodoxo. Ninguém pode proceder como um guardião de dogmas e textos sagrados. Não tentei me resguardar atrás deles, o que explica também o emprego neste livro do pronome pessoal e a referência a meus próprios textos. Não que pretenda falar em nome de algum marxismo autêntico, mas por razões exatamente inversas: assumo a responsabilidade do que escrevo e falo em meu próprio nome (1980, p. 12).

Da mesma maneira, o jurista dogmático não possui ou não deveria possuir atitude cega e submissa, se quiser fazer ciência. Todavia, o ordenamento jurídico vigente é o seu objeto e, por mais que discorde do regime político-constitucional em questão (democrático ou autocrático), é o regime juridicamente posto, queira ele ou não; e é digno de estudo científico, por mais afastado que esteja de certos ideais de justiça:

Nenhum ordenamento jurídico é perfeito: entre o ideal de justiça e a realidade do direito há sempre um vazio, mais ou menos grande, dependendo dos regimes. Certamente o direito, que em todos os regimes de um certo período histórico e em alguns contemporâneos que consideramos civilmente ultrapassados, admite a escravidão, não é justo, mas nem por isso é menos válido. Não faz muitos anos vigoravam leis raciais que nenhuma pessoa racional estaria disposta a considerar justa e, não obstante, eram válidas (BOBBIO, 2008, p. 49).

Ao ler esta passagem, logo vem à mente o racismo perpetrado pelos Estados Unidos da América (de parte do Norte) que, deliberada e escancaradamente, excluíam os negros da titularidade de vários direitos civis, todos atribuídos aos brancos. Manteve-se firme e forte até as incisivas ações dos movimentos sociais negros, especialmente sob a batuta de Martin Luther King Jr. e Malcolm X, na década de 1960. Analogamente, o apartheidno Estado da República da África do Sul elevou o racismo a um grau impressionante de institucionalização, verdadeira política estatal definitivamente estabelecida a partir de 1948, cuja subordinação jurídica e social dos não-brancos – especialmente os negros – se manifestou nas seguintes medidas:

[...] são abolidos os direitos políticos e civis que ainda subsistiam na província do cabo; as barreiras raciais que até agora eram determinadas mais pelos costumes do que pelas leis, e que, portanto, admitiam exceções, são codificadas; introduz-se a classificação de todos os elementos da população de acordo com o grupo racial, registrado no documento de identidade; proíbem-se os matrimônios ou uniões mistos; é introduzida a segregação na gestão pública, nos meios de transporte, etc.; em todas as cidades se destinam os grupos étnicos bairros residenciais ou guetos (groupareas) próprios (GENTILI, 2007, v. 1, p. 53-56).

Este regime absurdo de segregação racial teve plena vigência até a metade da última década do século XX! O que deveríamos fazer? Fechar os olhos e evitar conhecer o núcleo do objeto (no caso, o Direito sul-africano), o que ele era por dentro? Como avaliar e criticar coerentemente algo que sequer conhecemos com alguma certeza? O jurista dogmático deve exercer a crítica, de um ponto de vista epistemológico, dentro dos quadrantes de determinados ordenamentos jurídicos vigentes. Neste ponto, é visível a proximidade entre a Ciência Dogmática do Direito e a Ciência da História, já que ambas adotam este método concretoe individualizante: o jurista dogmático tem por objeto o Direito brasileiro, chinês ou espanhol, cada um com suas características peculiares decorrentes de circunstâncias históricas e sociais assaz distintas; por isso é cientificamente condenável analisar nosso Direito com os olhos no Direito inglês – ainda mais nestes tempos em que a common law está em evidência na doutrina pátria. Assim, no caso específico do apartheid, a crítica poderia ser plenamente exercida em confronto com a ordem jurídica internacional, apoiada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Outros exemplos expressivos destes tipos diferentes de jurista – o frio descritor e, ajuntando a este, o crítico contundente – podem ser retirados da Dogmática Jurídica brasileira. O constitucionalista Alexandre de Moraes, infelizmente, não toma nenhuma posição clara (pelo menos no tópico que trata especificamente do tema) sobre a conduta ultrajante dos sucessivos Presidentes da República que, sem quaisquer limites, criam e promulgam “Medidas Provisórias” sem preencher os requisitos constitucionais da relevânciaeurgência, pois se trata de espécie normativa juridicamente excepcional. Ele apenas tece considerações sobre a normatização constitucional e avalia algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (2010, p. 679-698). Ao contrário, o administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello dirige todo seu arsenal argumentativo contra as edições inconsequentes de tais espécies normativas (2011, p. 104-105), fulminadas de inconstitucionalidade, que somente perpetuam a sobreposição do Poder Executivo perante os demais e a tradição despótica do Estado brasileiro. Não sem razão, porque vale registrar que desde o dia 29/09/2011 até 25/04/2012 foram promulgadas 23 (vinte e três) Medidas Provisórias (n.º 544 a 566)[8].

Entretanto, é de fato constatável na experiência cotidiana – e as críticas neste sentido procedem – que a vaidade e o elitismo são comuns no mundo jurídico (mas não só neste). A estrutura da linguagem e do discurso jurídico-científico deve ser mantida; mas, não decorre disso a sustentação do excesso de formalismo ou tecnicismo prolixo que transparece no famigerado “juridiquês”. Vale registrar as seguintes palavras de Pierre Bourdieu, mesmo que longas:

Na realidade, a instituição de um “espaço judicial” implica a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de facto dele excluídos, por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura linguística – que supõe a entrada neste espaço social. A constituição de uma competência propriamente jurídica, mestria técnica de um saber científico frequentemente antinómico das simples recomendações do senso comum, leva à desqualificação do sentido de equidade dos não-especialistas e à revogação da sua construção espontânea dos factos, da sua “visão do caso”. O desvio entre a visão vulgar daquele que se vai tornar num “justiciável”, quer dizer, num cliente, e a visão científica do perito, juiz, advogado, conselheiro perito, etc., nada tem de acidental; ele é constitutivo de uma relação de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de intenções expressivas, numa palavra, duas visões do mundo (2005, p. 225-226, grifo no original).

Realmente, não é acidental, mas planejado. Serve à conservação do monopólio e da dominação da casta intelectual dos cientistas e profissionais jurídicos. Estes são como sacerdotes, únicos capazes de entender e traduzir para os leigos a linguagem dos deuses: a Ciência Dogmática do Direito transforma-se em Teologia, cuja referência já foi feita acima. É a manifestação do poder de controle simbólico do mundo jurídico:

Não nos enganemos quanto ao sentido desse poder. Não se trata de coação, pois, pelo poder de violência simbólica, o emissor não co-age, isto é, não se substitui ao outro. Quem age é o receptor. Poder aqui é controle. Para que haja controle é preciso que o receptor conserve suas possibilidades de ação, mas aja conforme o sentido, isto é, o esquema de ação do emissor. Por isso, ao controlar, o emissor não elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza. Controlar é neutralizar, fazer com que, embora conservadas como possíveis, certas alternativas não contem, não sejam levadas em consideração (FERRAZ JR., 2009, p. 212).

 A casta dos jurisconsultos, fechando-se em si, elege-se como a única capaz de entender e fazer os leigos entenderem o que a lei ordena, proíbe ou permite. Como disse Francis Bacon, conhecimento é poder. Cria-se um campo jurídico no qual as relações sociais são neutralizadas, pois os participantes diretos são absorvidos no jogo (tornam-se clientes), mas não atuam com efetividade. Falam apenas por meio dos profissionais ou peritos (advogados, juízes, promotores...) capazes de entender as regras e que sabem como jogar (BOURDIEU, 2005, p. 227).O Estado é o ente principal ao qual este jogo se refere, mas:

O Estado é o elemento centralizador e fiscalizador do controle das expectativas sociais. É, também, o elemento organizado que mantém o monopólio do uso da violência. Esse monopólio é exercido pelas organizações de controle, multiplicadas pela realidade social, cada uma tendo função específica e bem delimitada pelo próprio Estado. A peculiar posição do Estado dentro da sociedade, que, conforme vimos, nunca pode ser neutra, faz com que seu papel de instrumento de dominação social seja dissimulado, apresentando-se o Estado aos olhos de todos como um ente neutro, só comprometido com os rumos mais gerais do desenvolvimento social (BORGES, 1993, p. 107, grifo meu).

Este poder simbólico substitui as relações baseadas na força, monopolizada pelo Estado, pois os subjugados o legitimam e simplesmente ignoram seu quid de arbitrariedade, disfarçado sob as estruturas racionais e burocráticas que caracterizam a modernidade (WEBER, 1999, v. 2).

3.3 EM BUSCA DO SENTIDO JURÍDICO: O PARADIGMA KELSENIANO

Por isso a persistência na busca quase religiosa do sentido “verdadeiro” ou “correto” da(s) norma(s) jurídica(s), pois só esta casta pode ter acesso[9]. Kelsen, já em 1935, criticava veementemente essa postura e a Teoria Pura direcionava-se neste sentido, o que poderia ferir os interesses do profissional do Direito:

Este, compreensivelmente, só contrariado renuncia a crer e a fazer a crer aos outros que possui, com a sua ciência, a resposta à questão de saber como devem ser “corretamente” resolvidos os conflitos de interesses dentro da sociedade, que ele, porque conhece o Direito, também é chamado a conformá-lo quanto ao seu conteúdo, que ele, no seu empenho de exercer influência sobre a criação do Direito, tem em face dos outros políticos mais vantagens do que um simples técnico da sociedade (2006, p. X)[10].

Kelsen, a propósito, insistiu na ideia de que a “interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica” (2006, p. 395), como já havia mencionadoacima, principalmente porque se pensasse de outra maneira, trairia seus pressupostos filosóficos neokantianos. Trata-se o papel ativo do sujeito na construção do conhecimento, sendo que é o método que faz o objeto. Se o jurista insistisse em buscar ou desvelar na norma jurídica seu verdadeiro e único sentido, ocorreria um “retrocesso” gnoseológico ao período antes da revolução copernicana de Kant, pois o sujeito (o jurista) giraria em torno do objeto estático (norma jurídica):

Em termos neokantianos, decompomos nossas faculdades de observação. Se simplesmente observarmos eventos que ocorrem no mundo espaço-temporal – o mundo dos eventos factuais simples –, não teremos com identificar o que é significativo a proposto desses eventos; eventos ou “fatos” isolados não podem ter importância em si mesmos. Para dar sentido ao mundo, contamos com as narrativas da vida cotidiana, nossa memória e, em termos kantianos, com nossas categorias de entendimento. Desse modo, o significado jurídico de um ato não é alguma coisa que os sentidos percebam facilmente; a importância jurídica de um ato ou evento é determinada ao se interpretá-lo por meio dos materiais que a memória nos oferece: as narrativas da vida social e, para o cientista jurídico, os instrumentos específicos da interpretação jurídica (MORRISON, 2006, p. 396-297).

 A busca do sentido “correto” ou “unívoco” da norma é perigosa ficção, legitimadora de certos postulados políticos; o que há, conforme diz Lenio Streck, é “[...] a produção de um sentido originado de um processo de compreensão, onde o sujeito, a partir de uma situação hermenêutica, faz uma fusão de horizontes a partir de sua historicidade. Não há interpretação sem relação social” (1999, p. 17, grifo no original). Em contrapartida, recebo com reservas o que disse próprio Lenio Streck em recente artigo. Segundo ele, o decisionismo está proliferando no Brasil – a anedota da “katchanga real” ilustra bem esta situação, bem como o esvaziamento dos princípios jurídicos (STRECK, 2012e), aplicáveis a qualquer situação – e que a tese de que “interpretar a lei é um ato de vontade”, presente no último capítulo da 2ª edição da Reine Rechtslehre, é o “ovo da serpente do decisionismo”. Por isso a teoria kelseniana está propositadamente afastada do momento da “aplicação”, problema de política do Direito (STRECK, 2012b).

Primeiramente, interpretação e aplicação são íntimas (STRECK, 2012c), mas distintas. A interpretação com a preponderância da vontade é a interpretação autêntica, feita pela autoridade, que redunda na aplicação da norma jurídica que lhe confere competência e determina sua conduta: o legislador quando legisla sob a forma determinada na Constituição, o juiz quando julga sob a direção das normas de materiais e processuais civis etc. O jurista, quando interpreta uma norma em suas pesquisas, não aplica nada no sentido específico (ou como propugnado por Kelsen) deste termo[11]. Imaginemos que o cientista jurídico “A” acompanhe de perto o desenrolar processual de um litígio e, ao final, apresenta sua articulada e interessante hipótese em um parecer; o juiz chegou à mesma conclusão na sentença e decidiu favoravelmente ao autor da demanda. Quem efetivamente aplicou o ordenamento jurídico ao caso concreto? Imaginemos ainda que, a despeito da hipótese levantada pelo renomado jurista “A”, o juiz tenha decidido de outra maneira, adotando apenas alguns dos argumentos levantados por aquele. Qual será a decisão vinculante? A resposta é óbvia, ao menos na ordem jurídica brasileira.

Por isso a força motriz da interpretação autêntica é “um ato de vontade”, a decisão. Entretanto, não me parece que Kelsen entenda que a nomogênese jurídica (que corresponde à aplicação de uma norma superior[12]) se dê num processo político-jurídico arbitrário, como nas decisões judiciais quiméricas apresentadas por Lenio Streck. Caso fosse assim, Kelsen teria que admitir que qualquer ordenamento jurídico é continuamente produzido por puros atos de vontade, essencialmente arbitrários, o que não é verdade. É possível que certas ordens jurídicas sejam fundamentadas na arbitrariedade? Com certeza, mas na realidade histórica dificilmente encontraremos ordens jurídicas inteiras identificadas com as personagens Azdak e Humpty Dumpty (STRECK, 2012a), pois são idealizações literárias. São os ordenamentos jurídicos autocráticos, como os tipos históricos da monarquia absoluta e as ditaduras de partido fascista e bolchevista (KELSEN, 2005, p. 430-432). Até nestes, apesar do amplo predomínio do autoritarismo e da arbitrariedade, havia uma ordem a ser mantida.

Bem ao contrário, Kelsen sabe que as autoridades (ou órgãos) competentes para a produção/aplicação do Direito encontram limites no próprio Direito, na ordem jurídica da qual emanam suas competências. Atentem ao que ele disse quando tratou do princípio da igualdade:

Com a garantia da igualdade perante a lei, no entanto, apenas se estabelece que os órgãos aplicadores do Direito somente podem tomar em conta aquelas diferenciações que sejam feitas nas próprias leis a aplicar. Com isso, porém, apenas se estabelece o princípio, imanente a todo o Direito, da juridicidade da aplicação do Direito em geral [...], apenas se estatui que as normas devem ser aplicadas de conformidade com as normas. Com isto, porém, nada mais se exprime senão o sentido imanente às normas jurídicas. Uma decisão judicial pela qual uma pena prevista na lei a aplicar não é imposta simplesmente porque o delinquente é um branco e não um negro, um cristão e não um judeu, embora a lei não tome em conta, na determinação do fato delituoso, a raça ou a religião do delinquente, é anulável como contrária ao Direito [...] (KELSEN, 2006, p. 158-159, grifo no original).

A decisão (arbitrária) do Tribunal Superior do Trabalho no “caso Oscar” é anulável por ser contrária à Constituição, já que concedeu o remédio heroico do habeas corpus a uma situação não prevista pela norma constitucional (art. 5º, LXVIII), conforme bela análise de Streck (2012b). Além disso, a decisão judicial não se dá completamente isolada, visto que é bem possível que elementos extrajurídicos influam na decisão, como as “normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc.” (KELSEN, 2006, p. 393). Mas, se a decidibilidade é inerente à interpretação autêntica, como fica a interpretação científica? Para Kelsen, já que não há o sentido correto, o cientista jurídico deve apresentar tão somente os sentidos possíveis de dada norma e nada mais? Como poderia a Dogmática Jurídica se desenvolver diante desta premissa, se esta tem por objeto situações-problema que reclamam soluções e, portanto, decisões (FERRAZ JR., 2009, p. 63)? Este é o ponto nevrálgico do que Tercio Sampaio Ferraz Jr. chamou de desafio kelseniano, já que segundo ele “essa coerência de Kelsen com seus princípios metódicos, porém, deixa-nos sem armas. Sua renúncia pode ter um sentido heroico, de fidelidade à ciência, mas deixa sem fundamento a maior parte das atividades dogmáticas, as quais dizem respeito à hermenêutica” (2009, p. 229).

Difícil desatar este nó teórico. Como tentativa, tomarei como contraponto o jurista italiano Mário G. Lossano, cujas críticas a Kelsen são direcionadas neste mesmo sentido. Ele afirmou que a noção de “jurista” trazida por Kelsen é vaga (1998, p. XXIV). Existem dois tipos de jurista: o teórico e o prático[13]. Partindo desta distinção, Lossano afirma que para este último, a teoria pura do Direito tem pouca ou mesmo nenhuma utilidade; ou seja, a escassez prática é inerente à teoria kelseniana. De início, parece-nos claro que Kelsen sempre se referiu ao jurista enquanto cientista do Direito, no caso, a qualquer sujeito que estude o Direito como ele é (não como ele deveria ser) com base em métodos específicos. Notem que para ele “[...] o objetivo desta teoria geral do Direito é capacitar o jurista interessado numa ordem jurídica particular, o advogado, o juiz, o legislador ou o professor de Direito a compreender e a descrever de modo tão exato quanto possível o seu próprio Direito [...]” (KELSEN, 2005, p. XXVIII, grifo meu). Como visto, estão incluídos o jurista “teórico geral” e o jurista “dogmático”. Além destes, há referência ao político do Direito (o legislador, o juiz), pois, para produzir normas jurídicas, é necessário conhecer o ordenamento jurídico no qual está inserido este poder – atitude científica, portanto.

Contudo, admito que Kelsen poderia ter sido mais explícito quanto aos desdobramentos dogmáticos de sua teoria da interpretação. Todavia, da seguinte passagem emana alguma luz:

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista daplurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente(KELSEN, 2006, p. 396, grifo meu).

Kelsen admite que a interpretação correta de uma norma jurídica é ideal “realizável aproximativamente”. A partir disso fica aberto o espaço para que seja dado passo culminante de sua hermenêutica: dentre todos os significados que podem ser atribuídos à norma jurídica, pode-se escolher e defender como hipótese científica aquela que mais aproxima da certeza, ou melhor, a hipótese que veicula o sentido mais coerente. Posto que todo cientista trabalhe com um conjunto de hipóteses e, para que sua atividade cognitiva não fique estagnada pela confusão deste emaranhado teórico, deverá decidir em favor daquela hipótese que lhe pareça mais coerente e prová-la nos seus ulteriores termos. Neste ponto é imperioso esclarecer estas palavras de Lenio Streck, às quais já fiz alguma alusão:

Kelsen era um pessimista moral. Ele tinha certeza de que era impossível controlar a vontade de poder judicial. Ele era Nietzche (sic). Por isso, fez a sua teoria pura. E a colocou — a TPD — no andar de cima, no plano da ciência do direito (uma meta-linguagem sobre a linguagem objeto, que era o direito enquanto conjunto de regras). Kelsen não queria se meter no andar de baixo (no mundo da aplicação). Ali, dizia o velho mestre, faz-se política jurídica. Não é ciência...! Pois é. O velho tinha razão: política jurídica. Era terrível esse Hans (2012b).

Silencio quanto ao seu pessimismo; digo apenas que ele era mesmo relativista em matéria axiológica. Quanto ao restante, Kelsen afirmou que a Teoria Pura é Teoria Geral do Direito (2006, p. 1), mas, a despeito disso, nela existem dois níveis de linguagem, pois além da especificamente científica, há a filosófica (epistemológica) que versa sobre o conhecimento jurídico-científico[14]. A Ciência do Direito (do jurista enquanto cientista), então, deve considerar a ordem jurídica como ela é e não como deveria ser de acordo com alguns postulados de justiça, cuja tarefa cabe à política do Direito.

Contudo, será que Kelsen “não queria se meter no andar de baixo (no mundo da aplicação)”? Sua biografia demonstra o contrário. Foi o principal idealizador do Tribunal Constitucional (do qual ainda foi juiz e relator permanente, vitalício, de 1921 a 1930) na Constituição austríaca de 1920, o primeiro na História a adotar o controle abstrato de constitucionalidade das leis (PRADO, 1984, p. 6), cuja influência se fez sentir em vários Estados no pós-guerra. O próprio Lossano arrola alguns pareceres jurídicos importantes feitos por ele e dentre eles dou destaque ao parecer cujo título é “A competência da Assembléia Nacional Constituinte do Brasil de 1933”: se ele realmente “fixou as competências as competências constitucionais do Congresso Nacional do Brasil” (LOSSANO, 1998, p. XXVIII), fez política do Direito; se apenas apresentou suas conclusões sobre as relações entre o Governo Provisório e a Assembleia Nacional, fez Dogmática Jurídica[15]. São coisas bem distintas e Kelsen tinha plena consciência disso.

Os trabalhos de Kelsen no âmbito dogmático dão força à tese sustentada acima: ao apresentar os vários sentidos possíveis de uma norma, é epistemologicamente cabível e recomendável a escolha pela hipótese que veicula o sentido mais coerente. Como é sabido, o jurista austríaco é um dos grandes nomes do Direito Internacional no século XX (REALE, M., 1984, p. 23-24). Caso fosse mantida a outra tese, que constitui o desafio kelseniano, ele não poderia escrever algo assim:

O Pacto Kellogg proíbe a guerra, mas como um instrumento de política nacional. Esta é uma qualificação muito importante da proibição. Uma interpretação sensata do Pacto Kellogg, uma que não tente fazer dele um instrumento inútil e fútil, é a de que a guerra não é proibida como um meio de política internacional, especialmente que não é proibida como reação contra uma violação do Direito internacional, como um instrumento para a manutenção e concretização do Direito internacional. Essa é, exatamente, a idéia da teoria de bellum justum (KELSEN, 2005, p. 476, grifo meu).

Por isso não considero possível concordar com as críticas frequentemente dirigidas contra Kelsen, pois ele mesmo atacou vários aspectos da dominação simbólica (ideológica) presente no mundo jurídico – afinal, ele lera Nietzsche e Weber. O Direito não está imune às pressões sociais, ao invés, a constatação de que a norma jurídica pode ter uma semântica variabilíssima possibilita a articulação jurídico-normativa sobre circunstâncias sociais e históricas mutantes[16]. Entretanto, a decidibilidade inautêntica da Ciência Dogmática do Direito possibilita ao jurista a defesa da hipótese interpretativa mais coerente em detrimento de todas as outras.

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Sobre o autor
Jhonatan de Castro e Silva

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Jhonatan Castro. Direito: linguagem, poder simbólico e interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3244, 19 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21809. Acesso em: 19 mar. 2024.

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