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Crime organizado e o tratamento legislativo brasileiro

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4 ANÁLISE LEGISLATIVA NO BRASIL

4.1 O PROBLEMA DO CONCEITO

O princípio da legalidade, “base estrutural do próprio estado de direito”[104], está inscrito no art. 1° do Código Penal[105]:

Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Por estar presente no art. 5° inc. XXXIX da Constituição Federal[106] é preceito fundamental, protegido por cláusula pétrea:

 XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

É garantia do cidadão contra o Estado, vez que estabelece que ninguém será obrigado a fazer, deixar de fazer, ou tolerar que se faça sem a devida previsão legal.

Na lição de Celso Ribeiro Bastos[107] o princípio da legalidade tem dúplice significado:

De um lado representa o marco avançado do Estado de Direito, que procura jugular os comportamentos, quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressa. Nesse sentido, o princípio da legalidade é de transcendental importância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, que se presume ser a expressão da vontade coletiva.

De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em conseqüência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja, o Legislativo, obrigar aos particulares.

Portanto, tendo em vista o princípio da legalidade, somente o poder Legislativo, mediante lei, pode impor obrigação ao cidadão, garantindo assim a “previsibilidade da intervenção do poder punitivo do estado”[108].

No caso em análise, para que os institutos da Lei n.° 9.034/95 sejam imponíveis ao cidadão, é necessário verificar o respeito ao princípio da legalidade, que importa, não só na via de expressão em si, a lei, mas também guarda relação com o conteúdo da norma, que deve ser, antes de mais nada, inteligível, passível de aplicação, para tanto, mister identificar os limites de aplicação da norma.

Portanto, para que seja possível a aplicação da lei, é necessário conhecer seu conteúdo, e, para isso, devemos, na ausência da uma definição direta do que seja organização ou crime organizado, encontrar no ordenamento jurídico e na hermenêutica subsídios para definir a amplitude da lei. Buscaremos nas diversas fontes de interpretação e aplicação do direito um conceito de organização criminosa, começando pela doutrina.

Antes de adentrarmos na análise da Lei n.° 9.034/95 convém expor alguns conceitos doutrinários de organização criminosa, para que possamos entender a extensão e aplicabilidade da lei.

De início vale a observação de Antonio Scarance[109] quanto às linhas doutrinárias e legislativas que tratam do conceito de organização criminosa:

1° - parte-se da noção de organização criminosa para definir o crime organizado, o qual, assim, seria aquele praticado pelos membros de determinada organização;

2° - parte-se da idéia de crime organizado, definindo-o em face de seus elementos essenciais, sem especificação de tipos penais, e, normalmente, incluindo-se entre seus componentes o fato de pertencer o agente a uma organização criminosa;

3° - utiliza-se o rol de tipos previstos no sistema e acrescentam-se outros, considerando-os como crimes organizados.

Guilherme de Souza Nucci traz conceitos de vários autores, dentre eles Mendroni, segundo o qual organização criminosa é “um organismo ou empresa, tendo como objetivo a prática de crimes, ou seja, a prática de atividades ilegais. É, portanto, ‘empresa’ voltada à prática de crimes”[110].

Maurício Lopes[111] observa no crime organizado características próprias do Taylorismo, doutrina expoente da administração científica.

Seguindo a lição de Maurício Lopes buscamos a obra de Frederick Taylor para maiores esclarecimentos sobre a administração científica, tema de extrema relevância vez que é a característica mais importante do crime organizado.

Sobre a importância dos sistemas de organização Taylor[112] faz a seguinte observação:

No passado, o homem estava em primeiro lugar; no futuro, o sistema terá a primazia. Isso, entretanto, não significa, absolutamente, que os homens competentes não sejam necessários. Pelo contrário, o maior objetivo duma boa organização é o aperfeiçoamento de seus homens de primeira ordem; e, sob direção racional, o melhor homem atingirá o mais alto posto, de modo mais seguro e rápido que em qualquer outra distinção.

Das palavras de Taylor deduzimos alguns princípios comuns entre a administração de empresas e organizações criminosas: 1) Confiança na administração e governança, para a organização criminosa a administração é o que mantém o escudo protetor contra o estado em posição, as diversas camadas de agentes que compõe a organização garantem o anonimato dos dirigentes e a extensão das atividades; 2) Necessidade de pessoal treinado e capacitado, a divisão de tarefas na organização criminosa é a chave para o desempenho, pudemos observar que dentro das organizações mafiosas essa divisão é bem delineada e a responsabilização do integrante pode ser levada a extremos, como no caso da Yakuza, com a mutilação dos dedos; 3) Império da racionalidade, ao contrário da criminalidade comum, o crime organizado não age com ímpeto, impulsos súbitos ou improvisos, mas sim com profissionalismo.

Um exemplo real da aplicação de princípios da administração de empresas na atividade criminosa é apresentado por Mingardi[113]:

A ‘empresa de tráfico’ de Donald Steinberg é um paradigma deste modelo. Criada sem qualquer preocupação a não ser ganhar dinheiro, a organização importou cocaína e maconha, além de corromper funcionários públicos em mais de um país. Durante anos ele e seus homens colocaram nos Estados Unidos uma quantidade de substâncias ilegais igual, se não superior, a de qualquer “clique” mafiosa.

Mendroni[114] expõe diversas definições doutrinárias de organização criminosa:

Definição adotada pelo Estado da Califórnia:

Consiste em duas ou mais pessoas que com continuidade de propósitos, se engajam em uma ou mais das seguintes atividades: (1) Provimento de coisas e serviços ilegais, vícios, usura. (2) Crimes predatórios como furtos e roubos; diversos tipos distintos de atividades criminosas se enquadram na definição de crime organizado, que podem ser distribuídos em cinco categorias:

1.                  Extorsões;

2.                  Operadores de vícios: indivíduos que operam um negócio contínuo de coisas ou serviços ilegais como narcóticos, prostituição, usura e jogos de azar;

3.                  Furtos/roubos/receptações/estelionatos;

4.                  Gangues: grupos de indivíduos com interesse comum ou, segundo plano, de atuarem juntos e se engajarem coletivamente em atividades ilegais para fazer crescer a sua identidade grupal e influência, como gangues de jovens, clubes de motoqueiros fora-da-lei e gangues de presidiários;

5.                  Terroristas: grupos de indivíduos que combinam para cometer espetaculares atos criminais, como assassínios e seqüestros de pessoas públicas, para minar confidências publicas em governos estáveis por razões políticas ou para vingar-se de alguma ofensa.

Definição adotada pela President’s Commission on Organized Crime (PCOC):

Uma organização criminosa é constituída por pessoas que utilizam a criminalidade e violência e admite a utilização de corrupção para o fim de obter poder e dinheiro. Elas revelam as seguintes características:

·                    Continuidade: o grupo delimita uma determinada proposta por um período de tempo e admite a sua continuidade de operações para além do período das vidas dos membros integrantes, em sucessão. O grupo tem consciência também que o seu líder e os membros devem ser renovados com o tempo, o que significa que se assegurem a sua continuidade.

·                    Estrutura: o grupo é estruturado hierarquicamente em setores especializados que devem cumprir funções estabelecidas, como a Cosa Nostra, ou extremamente fluida, como os cartéis de droga colombianos. Em qualquer caso, a sua estrutura é baseada sob o poder de uma autoridade.

·                    Afiliação: o grupo é formado através de formações comuns, como étnicas, raciais, antecedentes criminais, interesses comuns, etc. Os potenciais candidatos devem demonstrar as suas aptidões, sendo que na maioria dos casos exige-se um período de prova. As regras para os membros incluem o sigilo, o desejo de praticar qualquer atitude de interesse do grupo, e também o de protegê-lo. Em troca, o membro recebe benefícios, como a proteção, prestígio, oportunidades de ganhos econômicos e, o mais importante o sentido de ‘pertencer’ ao grupo.

·                    Criminalidade: como em uma indústria o crime organizado se dedica a obter ganhos financeiros e para tanto praticar metas definidas. Algumas atividades servem para o ganho direto de dinheiro, como comercialização de produtos e serviços ilegais e outras para dar suporte àquelas, como extorsões, ameaças, assassinatos, que também lhe valem poder. Alguns grupos se dedicam a negócios lícitos para viabilizar a promoção da lavagem de dinheiro.

·                    Violência: a prática de violência e ameaça de sua prática são ferramentas básicas. Ambas significam o controle e a proteção de seus membros e de seus ‘protegidos’, ou bem para proteger os seus interesses de qualquer forma. Dos membros espera-se a disposição para a prática de violência e pode ser utilizada, por exemplo, tanto para coagir testemunhas como para servir de exemplo e de aviso a outros.

·                    Poder e dinheiro: os membros são unidos nestes interesses comuns. Força política é obtida através da corrupção de agentes públicos. O grupo torna-se capaz de manter o seu poder através da união com os seus ‘protetores’ oficiais.

Definição adotada pela Criminologia:

Crime organizado é qualquer cometido por pessoas ocupadas em estabele­cer em divisão de trabalho: uma posição designada por delegação para praticar crimes que como divisão de tarefa também inclui, em última análise, uma posição para corruptor, uma para corrompido e uma para um mandante.

Definição do FBI - Federal Bureau of Investigation:

Qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura formalizada cujo ob­jetivo primário é a obtenção de dinheiro através de atividades ilegais. Tais grupos mantêm suas posições através do uso de violência, corrupção, fraude ou extorsões, e geralmente tem significante impacto sobre os locais e regiões do País onde atuam.

Definição adotada pela INTERPOL:

Qualquer grupo que tenha uma estrutura corporativa, cujo principal objetivo seja o ganho de dinheiro através de atividades ilegais, sempre subsis­tindo pela imposição do temor e a prática da corrupção.

Definição adotada pelo FNSIC - Fundo Nacional Suíço de Investigação Científica:

Há crime organizado [transcontinental] quando uma organização, cujo funcionamento se assemelha ao de uma empresa internacional, pratica uma divisão de tarefas muito rigorosa, dispõe de estruturas hermeticamente se­paradas, concebidas de forma metódica e durável, e quando procura obter o máximo de lucros possível cometendo infrações e participando na economia legal. Para tal, a organização recorre à violência, à intimidação, e procura influenciar a economia e a política. Apresenta, geralmente, uma estrutura fortemente hierarquizada e dispõe de mecanismos eficazes para impor as suas regras internas. Os seus protagonistas são, além do mais, altamente intercambiáveis.

Definição adotada pela ONU:

Organização de grupos visando à prática de atividades econômicas; laços hierárquicos ou relações pessoais que permitem que certos indivíduos dirijam o grupo; o recurso à violência, à intimidação e à corrupção; e à lavagem de lucros ilícitos.

Definição adotada pela UE - União Européia:

Associação estruturada de mais de duas pessoas estabelecida durante um período de tempo e que atue de maneira concertada com o fim de cometer delitos punidos com pena privativa de liberdade ou medida de segurança de privação de liberdade de ao menos 4 anos, consistindo estes delitos um fim em si mesmos ou um meio de obter benefícios patrimoniais e influir de maneira indevida no funcionamento da autoridade pública.

Klaus Von Lampe publicou no sítio da biblioteca da Michigan State University uma compilação de definições de crime organizado, verdadeiro referencial teórico, da onde extraímos alguns conceitos:

Howard Abadinsky[115] define organização criminosa como um empreendimento não ideológico envolvendo um certo número de pessoas em próxima interação social, hierarquicamente organizadas, com, no mínimo, 3 níveis hierárquicos, com o propósito de adquirir poder e lucro através de atividades ilegais.

David N. Falcone[116] define crime organizado como um padrão de atividades ilegais conduzidas por um conjunto de pessoas ou organizações, que consiste em fraudes, assaltos, extorsões, intimidações e outros delitos, como um sindicato.

Finckenauer e Voronin[117] definem crime organizado como o delito cometido por uma organização qualificada pela cuja existência e continuidade no tempo, conjugada com o uso sistemático da violência e corrupção para facilitar o cometimento de delitos. Esses delitos podem variar de crimes contra a ordem econômica, até crimes contra a integridade física e psicológica de membros da sociedade. Quanto maior a capacidade de infringir danos, maior a periculosidade da organização criminosa.

Grennan e Britz[118] definem crime organizado como uma organização reconhecidamente hierarquizada, monopolizadora, auto-perpertuadora, que está disposta a utilizar-se da violência e corrupção dos funcionários públicos para se engajar tanto em atividades tradicionalmente relacionada com vícios como em complexos empreendimentos criminosos. Para garantir a longevidade da organização são empregadas práticas ritualísticas, regras, regulamentos e investimentos em negócios legítimos.

Michalowski[119] define crime organizado como qualquer estrutura coordenada e organizada burocraticamente cujos indivíduos dependem primariamente de atividades ilegais para atingir seus objetivos de acumulação de capital.

Beirne e Meserschmidt[120] entendem que a atividade núcleo do sindicato do crime (comumente referido como crime organizado) é a provisão de bens e serviços ilegais a uma sociedade que continua e consideravelmente demanda por tais bens e serviços. O sindicato do crime desenvolveu uma estrutura que torna possível fornecer esses bens e serviços diariamente. Essa estrutura pode ser compreendida como uma associação entre indivíduos das classes dos comerciantes, policiais, políticos e criminosos cujo único objetivo específico é a formação de uma empresa para a aquisição de riqueza. As atividades dessa empresa incluem distribuição de drogas ilegais, prostituição, lavagem de dinheiro e extorsão. De qualquer maneira, a estrutura do sindicato depende especificamente das atividades ilegais para obter riqueza.

 Para Rhodes[121] crime organizado consiste em uma série de transações ilegais entre múltiplos agentes, por um contínuo período de tempo, com o objetivo de adquirir vantagens econômicas ou políticas. Normalmente, mas nem sempre, são empregadas técnicas de intimidação, e violência é empregada hegemonicamente.

Salerno e Tompkins[122] consideram que, por definição, crime organizado é a continua conspiração para a obtenção de lucro, não o mero fortuito cometimento de delito.

Schelling[123] apresenta consideração muito interessante sobre o conceito de crime organizado, pois avalia que existe uma característica do crime organizado que é compatível com todas as definições existentes, a exclusividade, ou ainda, um termo mais próprio, o monopólio. A comparação com os negócios legais levaria à conclusão que o crime organizado não é uma empresa, mas sim um monopólio, pois seriam aplicáveis adjetivos próprios da atividade monopolizadora para qualificar a atividade desenvolvida pela organização criminosa, ou seja, inescrupulosa, cruel, avarenta, exploradora e sem princípios.

Da análise dos conceitos doutrinários expostos podemos encontrar um denominador comum, organização criminosa é o grupo de pessoas que, visando a obtenção de lucro, organiza-se de maneira empresarial-monopolista e utiliza-se da violência e intimidação para atingir suas metas. Nesse mesmo sentido é a lição de Antonio Scarance, para quem a “conceituação de organização criminosa pressupõe três elementos essenciais: o grande número de membros, a forma estrutural e a persistência de suas atividades” [124].

Sem dúvida a Lei n.° 9.034/95 veio para suprir uma lacuna no ordenamento brasileiro, a capacidade para o efetivo combate ao crime organizado, nesse sentido, a justificação de Michel Temer, autor do projeto de lei n.° 3.516 de 1989:

Pelas projeções assumidas e os imensuráveis danos causados à sociedade internacional, à ordem econômico-financeira e instituições públicas e privadas, necessárias se faz a utilização diferenciada dos meios de prevenção e repressão das atividades desses grupos que se assemelham, sem exageros, a “empresas multimilionárias” a serviço do crime e da corrupção generalizada. É óbvio que o remédio combativo há que ser diverso daquele emprego na prevenção e repressão às ações individuais, isoladas, tal qual se verifica quando de um atropelamento ou o furto de um botijão de gás, ainda que doloso.

O projeto de lei que agora se defende, e que tem por objeto jurídico a proteção da sociedade organizada, visa proporcionar meios operacionais mais eficientes às instituições envolvidas no combate ao crime organizado – (Polícia, Ministério Público e Justiça) – dotando-as de permissivos legais controlados, como ocorre nos mais civilizados e democráticos países do mundo, onde os resultados obtidos no combate à ação delituosa são bem melhores que no Brasil.

No entanto, haja vista que no ordenamento brasileiro é ausente qualquer definição legal de organização criminosa, ficou a cargo do intérprete a identificação, e, por tanto, a conceituação, de organização criminosa, para que, no caso concreto, seja possível a utilização dos institutos trazidos pela inovação legislativa.

Uma breve análise histórica da trajetória do Projeto de Lei n.° 3.516 de 1989, (PL-3516/1989), que foi posteriormente transformado na Lei n.° 9.034/95, esclarece alguns pontos controversos sobre a opção do legislador.

A redação original dos artigos primeiro e segundo, apresentada ao plenário em 1989 pelo Deputado Michel Temer, era a seguinte:

Art. 1° Esta lei regula a utilização dos meios operacionais destinados à prevenção e à repressão do crime decorrente de organização criminosa.

Art. 2° Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa aquela que, por suas características, demonstre a existência de estrutura criminal, operando de forma sistematizada, com atuação regional, nacional e/ou internacional.

Para compreendermos a técnica utilizada pelo legislador na redação do projeto, utilizaremos a lição de Antonio Scarance[125], quando expõe os possíveis métodos legislativos adotados para a definição de crime organizado:

São três as linhas doutrinárias e legislativas normalmente adotadas para a definição de crime organizado: 1:- a que parte da noção de organização criminosa para definir o crime organizado, o qual, assim, seria aquele praticado pelos membros da organização; 2:- a que define o crime organizado, sem especificação dos tipos penais, com base em seus elementos essenciais, em regra os que servem para identificar a existência de uma organização criminosa; 3:- a que especifica um rol de crimes como sendo crimes organizados.

A primeira posição era a adotada no PL 3.516/89, como se percebe de seu art. 2°, antes citado. Trabalha com a noção de organização criminosa mediante a indicação dos elementos que a caracterizam.

Podemos perceber que o legislador escolheu, no projeto de lei, definir organização criminosa por sua característica estrutural, permitindo a utilização dos institutos trazidos pela lei para a investigação e processamento de todos os delitos praticados pelos membros da organização criminosa, independentemente do alcance da sua atuação (regional, nacional ou internacional), desde que a estrutura organizacional adotada fosse sistematizada, abrangendo assim desde a Máfia até os menores grupos regionais. Esse conceito acha-se dentro da primeira linha doutrinária exposta por Antonio Scarance, “parte-se da noção de organização criminosa para definir o crime organizado, o qual, assim, seria aquele praticado pelos membros de determinada organização[126]”.

Parece-nos que essa técnica legislativa não merece tantas críticas quanto recebe, já que, da analise da realidade do crime organizado, não só no Brasil, mas no mundo, e tendo em vista seu potencial de alastramento, acreditamos que não é possível combatê-lo com flores e gestos carinhosos. É necessária uma abordagem extensiva que permite perseguir todos os delitos perpetrados pela organização criminosa, independentemente de seu resultado material. O princípio da proporcionalidade tem de ser sopesado no caso em tela, não quanto à agressividade dos institutos previstos na lei, mas sim em relação ao potencial lesivo das organizações criminosas versus o potencial lesivo da criminalidade comum. Por isso essa técnica se justifica, pois compreende quão grave o crescimento do crime organizado é, e a urgência de se erradicá-lo.

No entanto, apesar da aparente consistência técnica e doutrinária da redação original do projeto, a versão apresentada à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados em 05/04/1995, seis anos mais tarde, é bem diferente da original, e mais próxima da atual. Percebe-se a mudança de técnica legislativa, vez que, ao contrário do projeto, essa redação criminaliza a conduta de associação criminosa, modificando o art. 288 do Código Penal:

Art. 1° Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios permitidos nos inquéritos e processos que versem sobre crime organizado.

Art. 2° Considera-se crime organizado o conjunto dos atos delituosos que decorram ou resultem das atividades de quadrilha ou bando, definidos no § 1° do art. 288 do Decreto-Lei n.° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal – passa a ter a seguinte redação:

“Art. 288. Participar de quadrilha, bando ou organização que se serve das estruturas ou é estruturada ao modo de sociedades, associações, fundações, empresas, grupos de empresas, unidades ou forças militares, órgãos, entidades ou serviços públicos, concebidas qualquer que seja o pretexto, motivação ou causa, para cometer crimes ou alcançar objetivos cuja realização implica a prática de ilícitos penais.

Essa redação, que diverge da técnica original do projeto, prevê uma alteração do art. 288 do Código Penal para incluir mais um elemento descritivo no tipo penal, criminalizando assim, a associação criminosa em si, desde que na forma de sociedades, associações, fundações, empresas, grupos de empresas, unidades ou forças militares, órgãos, entidades ou serviços públicos.

Nesse caso, os meios de investigação e obtenção de prova contidos na futura Lei n.° 9.034/95 serviriam apenas nas hipóteses de investigação da prática de crime de associação em forma de organização criminosa, previsto no art. 288 do Código Penal.

Percebemos uma proximidade teórica entre a redação do projeto e o conceito de Schelling segundo o qual organização criminosa é aquela que apresenta organização empresarial para o cometimento de delitos que visam à obtenção de lucro.

Até agora analisamos dois métodos legislativos empregados na definição de organização criminosa, o primeiro, que considera organização criminosa aquela que assim se organiza no cometimento de delitos, e uma segunda, que criminaliza a conduta de associação criminosa, alterando o tipo penal do art. 288 do Código Penal, no entanto, a redação atual da lei não nos parece nada com os dois métodos já expostos.

Pesquisando os anais do Congresso Nacional percebemos que a redação final da lei é fruto da emenda n.° 2, proposta para alterar o Projeto de Lei n.° 3.516 de 1989, com a seguinte redação:

Dê-se a seguinte redação ao art. 1°.

“Art. 1° Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versam sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.”

Por fim, na reta final da elaboração da lei, foi suprimida a proposta que previa a alteração do Código Penal para promover a criminalização da associação criminosa, no entanto, não se restaurou a redação original, que definia organização criminosa como aquela que desenvolve uma estrutura sistematizada com o intuito de pratica crimes. Foi a partir desse ponto que se extirpou do ordenamento uma definição de organização criminosa, surgindo o vácuo legislativo presente na redação final:

Art. 1º Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.

A redação final da Lei n.° 9.034/95 foi criticada pela unanimidade da doutrina, consubstanciada na lição de Antonio Scarance:

A Lei 9.034/95, contém erro grave, fundamental, consiste na falta de definição clara do que seja crime organizado ou organização criminosa. A opção pela definição do crime como sendo a ação vinculada aos delitos de bando ou quadrilha, se por um lado torna mais fácil a identificação do crime organizado, por outro cria dificuldades, sendo ao mesmo tempo ampliativa e restritiva.

Resta claro que a legislação não seguiu a melhor orientação doutrinária, ainda mais se tratando de questão tão relevante e perigosa quanto o crime organizado.

Maurício Lopes[127] esclarece que o conceito de organização criminosa da lei é demasiado ampliativo, por abranger delitos que, pelo simples fato de serem cometidos por quadrilha ou bando, serão tratados como crimes organizados, e ao mesmo tempo, muito restritivo, por impossibilitar a aplicação dos institutos trazidos pela lei aos delitos praticados por organização criminosa que não estão vinculados diretamente a quadrilha ou bando, privando as autoridades dos meios para combater o crime organizado.

Houve, posteriormente, uma alteração do texto da já publicada Lei n.° 9.034/95, operada pela Lei n.° 10.217 de 2001, resultando na redação mais atual do texto:

 Art. 1° Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.[128]

Essa redação mais atual resolve a anterior restrição imposta pelo legislador à aplicação da lei, a necessidade de o delito estar diretamente vinculado a uma quadrilha ou bando, ou seja, a mais recente redação permite a aplicação dos institutos previstos na Lei n.° 9.034 a qualquer delito praticado por organização criminosa independentemente de uma quantidade mínima de agentes.

Segundo Guilherme de Souza Nucci, a alteração do art. 1° pela Lei n.° 10.217 de 2001 não trouxe a esperada definição de organização criminosa, mas acabou produzindo alteração “extensiva e desastrosa”[129].

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A lição de Nucci[130] sobre a alteração produzida pela Lei n.° 10.217 de 2001:

Não contente o legislador em ter inserido no contexto do crime organizado qualquer infração praticada por quadrilha ou bando (ex.: um grupo que se forma para o cometimento de meros furtos), que exige pelo menos a reunião de quatro pessoas, houve por bem generalizar, na parte final desse artigo, mencionando associação criminosa de qualquer tipo. Ora, um mero concurso de pessoas é uma associação criminosa, motivo pelo qual já seria suficiente, em tese, para aplicação das normas rígidas previstas na Lei 9.034/95.

Nesse mesmo sentido é o entendimento de Antonio Scarance[131]:

(a Lei n.° 10.217 de 2001) Distinguiu, como se vê, quadrilha ou bando de organização ou associação criminosa e nisso fez bem, pois, como salientado, são institutos que não se identificam. Mas, por outro lado, mandou aplicar todos os dispositivos da Lei 9.034/95 à ou bando, e, nesse ponto, nivelou o tratamento desses crimes e o dispensado, em princípio, à organização ou associação criminosa.

Agora, compreendido o histórico da legislação, tendo em vista que, segundo Lenio Streck, “toda compreensão tem uma inexorável e indissociável condição histórica”[132], é fácil entender a razão da redação atual. Podemos concluir que houveram, da concepção à última alteração, quatro versões da lei:

1) A redação original, que considerava organização criminosa toda aquela que demonstrasse uma estrutura criminal sistematizada, ou seja, um conceito simples e abrangente, mas efetivo, vez que, caso fosse posto em prática, permitiria o combate ao crime organizado como um todo, do menor dos delitos aos de maior impacto, independentemente do número de sujeitos envolvidos, desde que ficasse caracterizada a organização em sociedades, associações, fundações, empresas, grupos de empresas, unidades ou forças militares, órgãos, entidades ou serviços públicos, com o objetivo de praticar delitos.

2) A segunda redação, que foi apresentada à mesa diretora da Câmara, alterando o Código Penal, para incluir no art. 288 a figura típica da associação em organização criminosa, o que permitiria que o projeto se limitasse a enumerar os meios de investigação e obtenção de provas especiais, já que a conduta de associação criminosa já estava devidamente tipificada.

3) A terceira redação, fruto da emenda n.° 2, que não define organização criminosa, não altera o Código Penal, mas permite que os institutos destinados ao combate ao crime organizado sejam aproveitados na investigação de crimes cometidos por quadrilha ou bando, sendo esse um requisito para a aplicação da lei.

4) A redação final, fruto da Lei n.° 10.217/01, que ampliou a possibilidade de aplicação dos institutos previstos na lei, ao inserir no, art. 1° da lei, a expressão associação criminosa, que, ao contrário da quadrilha ou bando, não depende de uma quantidade mínima de agentes, tornando a lei aplicável mesmo em casos de concurso de agentes

A convenção das nações unidas contra o crime organizado internacional, adotada em Nova Iorque em 2000, ratificada em 2004 e efetiva no Brasil a partir de 28 de fevereiro de 2004 integra o ordenamento jurídico brasileiro, por força do art. 49, I da CF, com status de lei ordinária.

 Nesse sentido é a lição de Alexandre de Moraes, “com a promulgação do tratado através de decreto do Chefe do Executivo recebe esse ato normativo a ordem de execução, passando, assim, a ser aplicado de forma geral e obrigatória”[133].

A convenção prevê uma série de metas para os Estados signatários, dentre elas, a criminalização da participação em organização criminosa, a criminalização da lavagem de dinheiro, a criminalização da corrupção, a responsabilização das pessoas jurídicas, todas medidas reconhecidamente necessárias para o combate do crime organizado. A convenção também dispõe sobre os meios de combate ao crime organizado transnacional, como a investigação conjunta, a cooperação entre agências internacionais, e a coleta e intercâmbio de informações.

Nesse sentido é a lição de Shanti[134]:

O tratado tem dois objetivos primários: oferecer uma ligação entre os sistemas legais do mundo todo e estabelecer padrões para as leis dos países signatários, a fim de torná-las efetivas no combate ao crime organizado. Os países signatários comprometeram-se a criminalizar atividades ligadas ao crime organizado, criar tratados de extradição, melhorar procedimentos de combate à lavagem de dinheiro, e genericamente, a aumentar o grau de cooperação internacional. A convenção também estabeleceu uma série de protocolos visando o combate a crimes específicos como trafico de mulheres e crianças, contrabando de imigrantes, e tráfico ilegal de armas.

O art. 2°, caput, do tratado define uma série de conceitos, para efeitos da convenção, ou seja, para que o Estado signatário compreenda a extensão das obrigações contraídas em razão do tratado. Dentre os termos conceituados consta “grupo criminoso organizado”, que, para efeito da convenção, será definido de acordo com a alínea a, do art. 2°[135]:

a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;

Ressalvamos que, do nosso ponto de vista, o conceito de grupo criminoso organizado trazido pela convenção deve ser empregado exclusivamente de maneira explicativa, no âmbito da convenção, sem extravasar seus efeitos, sob pena de desvirtuar seu propósito, razão pela qual não serve para delimitar a aplicação dos institutos da Lei n.° 9.034/95. No entanto, a jurisprudência tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Tribunal Regional Federal da 5°, 4° e 2° Regiões, entendem que o decreto n.° 5.015/04 traz sim definição de organização criminosa para o ordenamento brasileiro.

Nesse sentido o posicionamento do Tribunal Regional Federal da 5° Região[136]:

Penal e processual penal. Estelionato qualificado (art. 171, § 3o, do cp). Quadrilha ou bando (art. 288 do cp). Caso pucumã. Preliminar. Competência da justiça federal (art. 109, iv, da constituição). Apelação. Intempestividade das razões recursais. (...) 5. Os tribunais pátrios têm utilizado, para definir organização criminosa, a convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional, em vigor no país com a edição do decreto no 5.015, de 12 de março de 2004 (trf-1a região, acr no 200336000085054/mt; trf-2a região, cc no 8.064/rj; trf-4a região, acr no 200570030002849/pr). 6. A lei no 9.034, de 1995, aplica-se não apenas às denominadas organizações criminosas, mas também à reunião de pessoas que caracteriza o crime de quadrilha (art. 1°). (...) (grifo nosso)

O posicionamento do Tribunal Regional Federal da 4° Região[137]:

Ementa: processual penal e penal. Competência. Litispendência. Audiência de inquirição de testemunhas por videoconferência. Nulidade inexistente. Provas produzidas exclusivamente na fase pré-processual. Exceção admitida pelo CPP. Lavagem de dinheiro. Crime antecedente praticado por organização criminosa. Comprovação. Investimento em nova atividade ilícita. Irrelevância para a configuração da lavagem. Furto qualificado tentado. Crime impossível. Inocorrência. Autoria. Domínio funcional do fato. Formação de quadrilha. Pressupostos objetivos. Organização criminosa. Inexistência de delito autônomo. (...) 5. Apesar de não ter sido tipificado o delito autônomo de organização criminosa, conforme recomenda o artigo 5º da convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional, introduzida em nossa ordem jurídica pelo decreto 5.015/2004, o artigo 2º da convenção de palermo define, indubitavelmente, grupo criminoso organizado como sendo aquele "estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves enunciadas na presente convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, benefício econômico ou outro benefício material, sendo que o conceito de infração grave dado pela convenção corresponde àquele ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior". (...) (trf4, acr 2006.71.00.032684-2, oitava turma, relator Paulo Afonso Brum Vaz, d.e. 22/07/2009) (grifo nosso)

O posicionamento do Tribunal Regional Federal da 2° Região[138]:

Direito penal e processual penal. Habeas corpus. Operação telhado de vidro. Competência. Legalidade do decreto de prisão preventiva. Inexistência de constrangimento ilegal. (...) Iii – não atendido in statu assertionis o conceito normativo de organização criminosa (rectius: grupo criminoso organizado) previsto no artigo 2 da convenção das nações unidas contra o crime organizado internacional, internalizada pelo decreto 5.015-2004, é descabida a aplicação da regra de competência de juízo, fixada em razão da matéria, na resolução conjunta 5-2006 desta corte regional(...)(grifo nosso)

Contrário ao entendimento de que o conceito de organização criminosa seja previsto no Decreto n.° 5.015/04 é a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1° Região[139], que conceitua organização criminosa como aquela que apresenta elementos reconhecidos pela doutrina como característicos de organizações criminosas, nesse sentido:

Processual penal. Habeas corpus. Descaminho. Prisão preventiva. Risco à ordem pública e à aplicação da lei penal não demonstrados concretamente. Concessão da ordem. (...) 3. Muito embora não exista uma definição legislativa para o termo "organização criminosa", o certo é que tem sido esse conceito interpretado, especialmente quando da apreciação da questão relativa à presença ou não de probabilidade de reiteração criminosa, em termos de identificação de elementos que possibilitem ao julgador a constatação de uma estrutura complexa e extremamente organizada - divisão de tarefas, sofisticação dos meios e habitualidade. Presentes tais características tem a jurisprudência aceitado a tese de que o risco a ordem pública se justificaria em razão do fato de que a existência de uma organização criminosa passível de retorno às atividades tida por delituosas. (...) (HC 2007.01.00.051229-1/mg, rel. Desembargador federal Olindo Menezes, terceira turma,dj p.12 de 07/12/2007) (grifo nosso)

Tendo em vista a redação final do art. 1° da Lei n.° 9.034/95, qual seja:

Art. 1° Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.

É necessário estabelecer qual a melhor interpretação da norma, a fim de se determinar, em cada caso concreto, a possibilidade de sua aplicação.

Chaïm Perelman, Filósofo que dedicou parte de sua obra ao estudo da Lei, propõe, na obra Lógica jurídica, que o aplicador do direito investigue a “vontade do legislador concreto, recorrendo ao exame dos trabalhos preparatórios”[140], destacando que essa técnica é freqüentemente utilizada quando se trata de legislação recente. A lei 9.034/95 não é recente, nem mesmo sua última redação, que data de 2001, no entanto, tendo em vista que sua aplicação ainda é tímida na realidade brasileira, entendemos que a análise do “argumento psicológico”[141] é vital para a aplicação do dispositivo.

Nesse mesmo sentido é a lição de Nelson Saldanha, “todo interpretar, como todo compreender, se funda sobre uma série de referências”[142], no caso, a referência para a interpretação da norma seria a vontade do legislador.

Tercio Ferraz Jr.[143] expõe os argumentos favoráveis à interpretação subjetivista (histórica, que se preocupa com a vontade do legislador) da norma, em oposição à possível interpretação objetivista (que propõe uma compreensão ex nunc da norma, sem levar em conta a vontade do legislador):

1.                  O recurso à técnica histórica de interpretação, aos documentos e às discussões preliminares dos responsáveis pela positivação da norma, é imprescindível, donde a impossibilidade de se ignorar o legislador originário;

2.                  Os fatores (objetivos) que eventualmente determinassem a chamada vontade objetiva da lei (volutas legis) também estão sujeitos a dúvidas interpretativas: com isso, os objetivistas criariam, no fundo, um curioso subjetivismo que põe a vontade do intérprete acima da vontade do legislador, tornando-se aquele não apenas “mais sábio” que o legislador, mas também “mais sábio” que a própria norma legislada;

3.                  Seguir-se-ia um desvirtuamento na captaçõ do direito em termos de segurança e certeza, pois ficaríamos à mercê da opinião do intérprete.

Quanto ao sentido da norma, em relação à sua redação atual, vale o parecer do Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Alberto Mendes Cardoso e do Ministro do Estado da Justiça José Gregori, quando da análise do projeto de lei n.° 3.275/2000, posteriormente convertido na Lei n.° 10.217/2001:

Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Submetemos à apreciação de Vossa Excelência o anexo projeto de lei que altera os arts. 1° e 2° da Lei n.° 9.034, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, para dar-lhe maior alcance, bem como para incluir, nesse diploma legal, duas medidas de combate à criminalidade, imprescindíveis ao Estado: a infiltração controlada de agentes policiais e de inteligência e a escuta ambiental.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça pode ser consubstanciado no excerto do voto da Ministra Eliana Calmon[144], quando da apreciação da Ação Penal n.° 460-RO, em 2007:

(...) De logo convém afastar-se a idéia de que a Lei 9.034/95 só se aplica aos crimes cometidos por quadrilha ou bando, com o rótulo de organização criminosa. Com a redação dada pela Lei 10.217/01 ao art. 1º da Lei 9.034/95, é uníssono o entendimento doutrinário no sentido de ter o diploma especial ampliado o seu alcance para abrigar não apenas a quadrilha ou bando, mas outros agrupamentos, como associações ou organizações criminosas de qualquer tipo, dentre as quais se inclui verbi gratia a reunião de duas ou mais pessoas para o fim específico de tráfico de substância entorpecente (art. 14 da Lei 6.368/76).

(...) A partir daí (do decreto 5.015/2004, que promulga a convenção das nações unidas contra o crime organizado transnacional) tem-se entendido que não é necessária a presença de, no mínimo, quatro elementos para a caracterização da organização criminosa, como exigido na tipificação da quadrilha ou bando, ou seja, que bastaria a associação de pelo menos três pessoas.

Temos o entendimento do Superior Tribunal de Justiça como a mais correta interpretação da norma, pois atende, conforme lição de Carlos Maximiliano[145], à exegese dos Materiais Legislativos (interpretação autêntica), vez que os Ministros examinaram o dispositivo em relação ao fim que se propõe, o combate efetivo ao crime organizado. Nesse sentido, é possível a aplicação dos institutos previstos na Lei n.° 9034/95 sempre que se constatar, no caso concreto, a atuação de uma organização criminosa, independentemente do número de agentes envolvidos na ação em particular.

Esse entendimento é o adotado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, consubstanciado no voto proferido pelo Juiz de Direito Substituto em segundo grau Luiz Osório Moraes Panza, quando do julgamento do Habeas Corpus n.° 617.716-6.

4.2 LEGE FERENDA: PROPOSTAS DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

Celso Ribeiro Bastos[146] aponta que Aristóteles já havia identificado em sua obra a divisão de tarefas no atuar do Estado, no entanto, foi Montesquieu quem separou as funções a serem desempenhadas em órgãos diversos, garantindo assim a divisão funcional e orgânica das funções do Estado. 

No Brasil, por força de disposição constitucional as funções estatais são tripartidas, cabe, originalmente, ao legislativo a confecção das leis, consubstanciando da vontade do povo, ao executivo dar cumprimento a essas leis e, finalmente, ao judiciário a solução de conflitos, sempre com observância da lei.

O poder legislativo, por lhe ser atribuída a função primordial de legislar, é encarregado de, seguindo as normas da Constituição, inovar originalmente a ordem jurídica.

Essa tarefa inovadora é muito importante no tocante ao combate ao crime organizado, conhecido por ter como uma de suas principais características a capacidade de driblar a repressão estatal, estando, na maioria das vezes alguns passos a frente de seus repressores.

Nessa esteira passamos a analisar a atividade legislativa atual, visando antecipar o impacto de tais medidas no combate ao crime organizado.

Tramitam hoje no Senado Federal duas Propostas de Emenda à Constituição, PECS, tratando do combate ao crime organizado que analisaremos a seguir.

PEC 43/2003, de autoria do Senador Renan Calheiros, visa alterar o art. 5°, inc. LXIV da Constituição Federal, que, atualmente, vige com o seguinte texto[147]:

LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

O texto alterado de acordo com a proposta teria a seguinte redação[148]:

LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial, salvo na hipótese dos delitos relacionados com o crime organizado, nos termos da lei.

A justificativa apresentada pelo Senador é a seguinte:

A crescente criminalidade em nosso País tem deixado a sociedade perplexa e a família brasileira acuada e com medo da violência que se tornou lugar comum em nossas Cidades. Nos últimos tempos, os casos mais revoltantes dizem respeito aos assassinatos de juízes e as ameaças às suas famílias, por parte do crime organizado que deseja intimidar ou calar aqueles que têm a responsabilidade de julgar e punir os criminosos. É necessário, portanto, criarmos mecanismos que protejam os nossos juízes e as suas famílias, a fim de que possamos manter de pé as nossas instituições judiciais. O “juiz sem rosto” foi um instrumento eficaz utilizado na Itália para debelar o crime organizado, com inúmeras ramificações naquele país. Com a adoção desse “Instituto”, (juiz sem rosto) no Brasil, com a possibilidade de termos uma legislação emergencial em relação ao crime organiza do e a proibição da comercialização de armas de fogo, teremos poderosos instrumentos para reduzirmos os altos índices de criminalidade que tem caracterizado o nosso País. Dessa forma, com a mudança constitucional proposta, abriremos a oportunidade para a proteção do “Juiz” e, conseqüentemente, da sua família das garras do crime organizado. Por essas razões, solicito aos nobres Pares o necessário apoio para esta proposição que, com certeza, possibilitará a edição de instrumentos legais que farão reverter a cruel situação da violência no Brasil e, também, colocará em segurança o p lar maior do Judiciário que é o Juiz.

De início temos de destacar a gritante incompatibilidade entre o texto da PEC e a justificativa apresentada.

O texto diz respeito ao atual direito do preso à identificação daqueles que realizaram a sua prisão ou seu interrogatório policial, a chamada nota de culpa.

Caso a emenda fosse aprovada, quando o delito apurado pela autoridade policial fosse relacionado ao crime organizado não seria necessário identificar os policiais que realizaram a prisão ou o interrogatório do preso.

Sobre a nota de culpa a lição de Mirabete:

Dentro de 24 (vinte e quatro) horas depois da prisão, será dada ao preso nota de culpa assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas (art. 306). A finalidade da denominada nota de culpa é comunicar ao preso o motivo da prisão, bem como a identidade de quem o prendeu (art. 5° LXIV, da CF), num breve relato do fato criminoso de que é acusado.

A expedição da nota de culpa é garantia constitucional do preso, e diz respeito à ampla defesa, daí sua natureza essencial, razão pela qual sua ausência implica no relaxamento da prisão em flagrante. Nesse sentido o entendimento do Supremo Tribunal Federal[149]:

EMENTA: Nulidade: auto de prisão em flagrante, nota de culpa e auto de apreensão de entorpecente não assinados pela autoridade policial: superação ou irrelevância, nas circunstâncias do caso. 1. A falta de assinatura da autoridade policial no auto de prisão em flagrante e na nota de culpa - valendo por prova de sua ausência à lavratura - torna ilegítima a prisão, o que, entretanto, ficou superado no caso, dado que o Juiz relaxou o flagrante e decretou a prisão preventiva. 2. No auto de apresentação e apreensão do entorpecente, elemento essencial é a assinatura do policial que a tenha apreendido com o preso, não a da autoridade policial. (HC 77042, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 26/05/1998, DJ 19-06-1998 PP-00003 EMENT VOL-01915-01 PP-00104)

Portanto, o texto da emenda mantém em sigilo a identidade do policial ou da autoridade policial, quando o crime investigado for perpetrado por organização criminosa.

A justificativa apresentada pelo Senador Renan Calheiros, por outro lado, diz respeito à necessidade de se manter a identidade do juiz presidente do feito em que se apura crime cometido por organização criminosa no anonimato. Vale apontar que a nota de culpa é expedida na fase de inquérito, enquanto a identidade do juiz, no tocante ao interrogatório, só se revela quando da ação penal, ou seja, o texto cria uma situação, e a justificativa busca outra, é como se o corpo de um indivíduo fosse a uma direção, quando seu cérebro coordena seus músculos para o levarem a outra.

A proposta de criação de um sistema segundo o qual a identidade do juiz não fosse revelada é defendida pela Associação dos Magistrados do Brasil, no entanto, não encontra regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro, e, salvo melhor juízo, traz sérias implicações, em especial quanto à segurança da prestação jurisdicional.

Por fim, a justificativa visava criar o “juiz sem rosto”, no entanto, o texto da Proposta de Emenda à Constituição cria um “policial sem rosto”. 

A PEC 52/2009, de autoria do Senador Marcelo Crivella, pretende alterar o art. 144, §8° da Constituição Federal, que, atualmente, vige com o seguinte texto[150]:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

(...)

§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

A nova redação, de acordo com a proposta seria[151]:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção dos seus bens, serviços e instalações e, mediante convênio com a Polícia Federal, participar das ações referidas no inciso II do §1º nas faixas das fronteiras interestaduais dos respectivos territórios.

O inciso II do §1° citado na proposta diz respeito ao art. 144, §1°, inc. II da Constituição Federal, para efeito de explanação transcrevemos[152]:

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

(...)

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

A proposta amplia a competência da guarda municipal, autorizando seu emprego, mediante convênio com a Polícia Federal, no combate ao tráfico de entorpecentes, descaminho e contrabando.

A justificativa explica o vínculo entre a proposta e o crime organizado[153]:

Ora, é sabido que não só o tráfico de entorpecentes, mas o de armas de todo calibre, mesmo as de uso exclusivo das Forças Armadas, são contrabandeadas, inicialmente, através das fronteiras do País em seus mais de 8.500 quilômetros de extensão. Desnecessário dizer, por ser notório, que há uma total impossibilidade de um policiamento eficaz nessa imensa área. Certo é que, ultrapassada a fronteira com o exterior, a droga e as armas têm de atravessar diversas “fronteiras estaduais” para chegar às mãos dos criminosos encastelados nas grandes metrópoles. Se as Polícias de cada Estado da Federação pudessem contar com os efetivos das Guardas Municipais nesse combate à criminalidade, ainda que limitadas a ações de logística, de prevenção, de vigilância ou mesmo de detenção de suspeitos etc., um grande passo poderia ser dado, fechando-se o cerco em favor da segurança pública. É o que pretende a presente Emenda Constitucional que acrescenta, ao final do §8º do artigo 144, a previsão de possibilitar a participação, mediante convênio, das Guardas Municipais em ações de combate ao crime organizado empreendidas pela Polícia Federal nas faixas de fronteira dos Estados limítrofes.

Portanto, fica claro que o objetivo da proposta não é o emprego direto da guarda municipal no combate ao crime organizado, é a garantia de que, caso seja necessário, é possível seu emprego em tarefas de apoio às operações da Polícia Federal, no combate ao tráfico de drogas, principal atividade do crime organizado no Brasil, descaminho, atividade de interesse da criminalidade em geral e contrabando, em especial de armas e munições, maior pesadelo no combate ao crime organizado.

Concluímos a exposição observando que a Lei n.° 8.666/93 dispõe em seu artigo 116 sobre a possibilidade de órgãos e entidades da administração pública (guarda municipal e qualquer outro órgão policial) firmar convênio, quando o interesse dos signatários seja concorrente (combate ao crime organizado), desde que cumpridos os requisitos do art. 116, ou seja, a apresentação de um projeto de trabalho contendo: a) a identificação do objeto a ser executado; b) metas a serem atingidas; c) etapas e fases de execução; d) plano de aplicação de recursos financeiros; e) cronograma de desembolso; f) previsão de início e fim da execução do objeto. Por isso concluímos que o objetivo dessa proposta de emenda, por mais nobre que seja, resta prejudicado pela previsão expressa no ordenamento jurídico da possibilidade de convênio entre a Polícia Federal e guarda municipal.

O projeto de lei do Senado n.° 150 de 2006, de autoria do Senador Serys Slhessarenko, foi incluído, em 06 de novembro de 2009 na pauta da reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, e versa sobre a repressão ao crime organizado.

O projeto define e criminaliza o crime organizado, prevê meios de investigação e obtenção de prova, dispõe sobre questões processuais e revoga, expressamente, a Lei n.° 9.034/95. 

A justificação é clara, o projeto pretende, já em seu primeiro capítulo, resolver as dificuldades em torno do conceito de crime organizado apresentando uma definição legal que esgota o tema.

Para tanto, dispõe o art. 2° do projeto[154]:

Art. 2º Promover, constituir, financiar, cooperar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, associação, sob forma lícita ou não, de cinco ou mais pessoas, com estabilidade, estrutura organizacional hierárquica e divisão de tarefas para obter, direta ou indiretamente, com o emprego de violência, ameaça, fraude, tráfico de influência ou atos de corrupção, vantagem de qualquer natureza, praticando um ou mais dos seguintes crimes:

I – tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica (Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976);

II – terrorismo;

III – contrabando ou tráfico ilícito de armas de fogo, acessórios, artefatos, munições, explosivos ou materiais destinados à sua produção (Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997);

IV – extorsão mediante seqüestro e suas formas qualificadas (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal);

V – contra a administração pública (arts. 312, caput e § 1º, 313- A, 313-B, 314, 315, 316, caput e § 2º, 317, 318, 319, 320, 321, 325, 326, 332, 334, 335, 337, 337-A, 337-B, 337-C, 342, 344 e 347 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal);

VI – contra o sistema financeiro nacional (Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, salvo o parágrafo único do art. 4º);

VII – contra a ordem tributária ou econômica (arts. 1º a 6º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990);

VIII – contra as empresas de transporte de valores ou cargas e a receptação dolosa dos bens ou produtos auferidos por tais práticas criminosas;

IX – lenocínio e tráfico de mulheres (arts. 227 a 231 do Decreto- Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal);

X – tráfico internacional de criança ou adolescente (art. 239 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990);

XI – lavagem de dinheiro, ocultação de bens, direitos e valores (Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998);

XII – tráfico ilícito de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano (Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997);

XIII – homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal);

XIV – falsificação, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §§ 1º, 1º-A e 1º-B, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal);

XV – contra o meio ambiente e o patrimônio cultural (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998);

XVI – outros crimes previstos em tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja parte.

Pena – reclusão, de cinco a dez anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes aos demais crimes cometidos.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, por meio do crime organizado:

I – gere, direta ou indiretamente, ou controla, de qualquer modo, atividades econômicas ou serviços públicos com o fim de auferir proveito econômico;

II – frauda licitações, em qualquer de suas modalidades, ou concessões, permissões e autorizações administrativas;

III – intimida ou influencia, por qualquer dos modos de execução referidos no caput deste artigo, testemunhas ou funcionários públicos responsáveis pela apuração de atividades do crime organizado; impede ou dificulta, valendo-se dos mesmos modos, a investigação do crime organizado;

IV – financia campanhas políticas destinadas à eleição de candidatos com a finalidade de garantir ou facilitar as ações do crime organizado ou a impunidade de seus membros.

§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem fornece, oculta ou tem em depósito armas, munições e instrumentos destinados ao crime organizado; quem lhe proporciona locais para reuniões ou, de qualquer modo, alicia novos membros.

§ 3º A pena é aumentada de um terço até a metade:

I – se a estrutura do crime organizado for constituída por mais de vinte pessoas;

II – se, na atuação do crime organizado, houver emprego de arma de fogo, concurso de agente público responsável pela repressão criminal ou colaboração de criança ou adolescente;

III – se qualquer dos concorrentes for funcionário público, valendo-se o crime organizado dessa condição para a prática de infração penal;

IV – se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao exterior.

§ 4º A pena é aumentada de metade para quem exerce o comando, individual ou coletivo, do crime organizado, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução.

§ 5º Se qualquer um dos concorrentes do crime organizado for funcionário público, o recebimento da denúncia quanto a ele, após a defesa preliminar no prazo de dez dias, poderá provocar o afastamento cautelar do exercício de suas funções, sem prejuízo de remuneração e dos demais direitos previstos em lei, até o julgamento final da ação penal.

§ 6º A condenação acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo, e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Tendo em vista a complexidade do dispositivo conduziremos a análise por artigos.

A justificativa apresentada pelo Senador é clara quanto ao objetivo do caput do art. 2° do projeto, criminalizar o fenômeno delitivo que merece o nome júris de crime organizado, não pelo método tradicional, cujo verbo núcleo do tipo é associar, mas sim pelas ações precedentes à associação criminosa, a promoção, constituição, financiamento, cooperação ou o fato de se integrar a essa associação. Explica o Senador sobre a escolha dos verbos do tipo[155]:

Antes de tudo, é mister que se explicitem os verbos que constituem o núcleo do tipo penal, os quais retratam condutas humanas que evidenciam a aludida prática criminosa. Para tanto, recorreu-se a cinco verbos que também são desprovidos de carga de ilicitude, mas que adquirem tal característica quando postos em conexão com os outros elementos da composição típica. Promover quer dizer “ser a causa de, gerar, provocar”; constituir significa “formar, organizar, criar”; financiar designa a idéia de “sustentar os gastos (de, com), prover o capital necessário para; custear, bancar”; cooperar representa “atuar, juntamente com outros para um mesmo fim, contribuir com trabalho, esforços, auxílio, colaborar”; e integrar exprime o conceito de “incluir-se um elemento no conjunto, formando um todo coerente, incorporar-se, integralizar”.

Portanto os verbos são aliados a outros elementos para a composição típica, quais sejam, a associação como forma organizacional, lícita ou não; o elemento quantitativo (no mínimo 5 pessoas, direta ou por interposta pessoa); com estabilidade (requisito temporal); apresentando uma estrutura organizacional hierárquica com divisão de tarefas, cujo fim (objeto), é a obtenção de vantagem de qualquer natureza, mediante violência, ameaça, fraude, tráfico de influência ou ato de corrupção, praticando um ou mais dos delitos previstos no rol numerus clausus dos incisos I a XVI.

Nesse sentido a justificativa[156]:

Note-se que o “promover”, o “constituir”, o “financiar”, o “cooperar” e o “integrar” só passam a ter relevância típica quando se vinculam a um determinado objeto, qual seja, uma associação que não prescinde de algumas características próprias: a) ser constituída de cinco ou mais pessoas. Essa pluralidade de pessoas, como dissemos, é inafastável; b) apresentar estrutura organizacional estável e hierarquizada, bem como divisão de tarefas entre seus integrantes. É imprescindível que a associação possua um mínimo de organização de pessoas e de meios e tenha uma certa estabilidade, isto é, tenha a duração temporal necessária para a realização de sua finalidade, ou, dito de melhor forma, revele ser algo autônomo que ultrapasse um acordo de vontades meramente ocasional; c) ter caráter tanto lícito quanto ilícito, pois nada obsta que a forma de estruturação da associação siga as regras exigíveis para a sua constituição legal. Isso permitirá que sejam reprimidas as atividades criminosas perpetradas por meio de empresa juridicamente construída. Sabe-se, ainda, que crime organizado, para que possa atingir seu escopo, emprega determinados modos de execução. Há um espectro muito amplo de modus operandi. Freqüentemente, vale-se da violência, da força intimidativa, da manobra fraudulenta, do tráfico de influência ou mesmo de atos de corrupção. Infelizmente, não há como negar a estreita ligação entre o crime organizado e a corrupção.

Relembramos aqui a lição de Scarance quanto às técnicas existentes para a criminalização do fenômeno conhecido como crime organizado[157]:

São três as linhas doutrinárias e legislativas normalmente adotadas para a definição de crime organizado: 1:- a que parte da noção de organização criminosa para definir o crime organizado, o qual, assim, seria aquele praticado pelos membros da organização; 2:- a que define o crime organizado, sem especificação dos tipos penais, com base em seus elementos essenciais, em regra os que servem para identificar a existência de uma organização criminosa; 3:- a que especifica um rol de crimes como sendo crimes organizados.

O que o Senador atingiu na confecção do art. 2° do projeto foi um equilíbrio entre a primeira e segunda correntes expostas por Scarance, pois definiu crime organizado por seus elementos essenciais, e arrolou uma série de delitos como os passíveis de serem cometidos pela organização criminosa, ou seja, a análise da tipicidade está condicionada à existência dos elementos característicos da organização criminosa cumulada com o cometimento de ao menos um dos delitos constantes no rol, que é exaustivo.

Os parágrafos do art. 2° prevêem causas de aumento da pena e o afastamento e perda do cargo no caso do envolvimento de funcionário público na organização criminosa.

O projeto segue apresentando no capítulo 2 os meios de investigação criminal e obtenção de prova, sob o título, “da investigação criminal e dos meios de obtenção da prova”[158].

Os institutos elencados no art. 3° do projeto podem ser aplicados em qualquer fase da persecução penal, ou seja, tanto no inquérito policial quanto no decorrer da ação penal, sem prejuízo de outros previstos na legislação.

São eles: I – colaboração premiada do investigado ou acusado; II – interceptação de comunicação telefônica e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, nos termos da legislação específica; III – ação controlada; IV – acesso a registros de ligações telefônicas, dados cadastrais, documentos e informações eleitorais, comerciais e de provedores da internet; V – quebra dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica, sendo que somente a colaboração premiada do investigado ou acusado pode ser realizada independente de prévia autorização judicial, pois, na realidade, como explica o art. 4° do projeto, é ato privativo do juiz, ou seja, todos os institutos do projeto dependem de apreciação judicial.

O instituto da colaboração premiada do investigado ou acusado não faz parte do ordenamento jurídico vigente e prevê, de acordo com o art. 4° do projeto, a possibilidade de extinção da punibilidade do investigado ou acusado primário (não reincidente), que, voluntariamente, colabore com a investigação e processo criminal, resultando na identificação dos demais co-autores e partícipes do crime organizado; prevenção de outros delitos decorrentes da atividade do crime organizado; recuperação, ainda que parcial, do produto das infrações; revele a estrutura organizacional hierárquica e divisão de tarefas da organização; ou a localização de vítima cuja integridade física não foi maculada.

A análise judiciária para a concessão do benefício ainda deve levar em conta a personalidade do colaborador, a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso, como determina o parágrafo único do referido art. 4°.

O art. 5°, ainda tratando dos benefícios resultantes da colaboração com a investigação e persecução penal garante ao juiz, nos casos previstos no art. 4°, a possibilidade de redução da pena, de um a dois terços, na medida da colaboração.

O art. 6° elenca os direitos do colaborador:

Art. 6º São direitos do colaborador:

I – usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;

II – ter seu nome, sua qualificação e demais informações pessoais preservados durante a investigação e o processo criminal, salvo se houver decisão judicial em contrário;

III – ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais co-autores e partícipes;

IV – participar das audiências sem contato visual com os outros acusados;

V – não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito;

VI – cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais co-réus ou condenados.

Os demais institutos utilizados na investigação e persecução penal previstos no projeto serão objeto de análise em outro capítulo do presente trabalho, vez que já integram o ordenamento jurídico pátrio, regulados pela Lei n.° 9.034/95.

Vale ressaltar ainda a supressão do instituto, presente na Lei n.° 9.034/95, da infiltração policial. As razões são expostas na justificativa do projeto[159]:

A proposta não hesita, ainda, em suprimir o instituto da “infiltração policial” do direito brasileiro (art. 2º, V, da Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995), porque viola o patamar ético-legal do Estado Democrático de Direito, sendo inconcebível que o Estado-Administração, regido que é pelos princípios da legalidade e da moralidade (art. 37, caput, da CF), admita e determine que seus membros (agentes policiais) pratiquem, como co-autores ou partícipes, atos criminosos, sob o pretexto da formação da prova. Se assim fosse, estaríamos admitindo que o próprio Estado colaborasse, por um momento que seja, com a organização criminosa na execução de suas tarefas, o que inclui até mesmo a prática de crimes hediondos. Muito melhor será que o Estado-Administração, localizando uma organização criminosa, ao invés de infiltrar nela seus agentes, debele essa organização, seja de forma imediata ou retardada (através de ação controlada). Não bastassem as razões constitucionais, éticas, legais e lógicas já destacadas, ainda é possível opor outros argumentos de ordem prática contra a “infiltração de agentes”. A situação mais grave será o desrespeito a qualquer limite jurisdicional imposto à atuação dos agentes infiltrados. Imagine-se, por exemplo, quando o agente infiltrado estiver na presença de criminosos e lhe for ordenada a prática de um crime (v. g., o homicídio de um traficante preso pela organização rival). Nessa situação, o agente não terá como escolher entre cometer e não cometer o crime (limite imposto judicialmente), pois, se não obedecer aos integrantes da organização, poderá simplesmente ser executado. É isso que o Estado pretende de seus agentes? É isso que podemos esperar de um Estado Democrático de Direito? É isso que podemos denominar por “moralidade pública”? Resta destacar que os mais experientes policiais já são conhecidos dos criminosos, logo, as pessoas escolhidas para essa difícil missão, de escolher entre a própria “ida” ou o desrespeito aos limites judiciais definidos para a sua atuação, serão policiais recém ingressos na carreira, sem qualquer experiência e ainda com bases ético-profissionais não solidificadas, o que, não resta dúvida, poderá propiciar o surgimento de “agentes duplos”.

Mantendo em mente o raciocínio que levou à supressão no projeto do instituto vigente da infiltração policial, a efetividade dos institutos previstos para o combate ao crime organizado, o Senador dedica a seção 4 do capítulo 1 aos crimes que podem ser cometidos no decorrer da investigação criminal e na obtenção da prova, são eles:

Art. 12. Revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito.

Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.

Art. 13. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de crime organizado que sabe inverídicas.

Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.

Art. 14. Quebrar o sigilo das investigações que envolvam a ação controlada.

Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

Art. 15. Recusar, retardar ou omitir dados cadastrais, documentos e informações eleitorais, comerciais ou de provedores da internet, requisitados por comissão parlamentar de inquérito ou por autoridade judicial.

Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Art. 16. Revelar o nome, a qualificação ou demais informações pessoais da vítima, testemunha, investigado ou acusado-colaborador que tenha a sua identidade preservada em juízo, assim como quebrar o sigilo do respectivo procedimento judicial.

Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.

Não vemos causa alguma para criticar os dispositivos. Com razão o Senador antecipou os delitos que poderiam ser praticados no decorrer da investigação ou da obtenção da prova, e, para salvaguardar a eficácia e confiabilidade dos institutos, já fez constar, com inequívoco intuito preventivo, as conseqüências do abuso ou desvio de poder no próprio diploma.

O capítulo 3 do projeto trata do procedimento criminal, e traz uma série de inovações para a persecução do crime organizado.

O interrogatório do acusado pode ser realizado no local onde se encontra detido o acusado, medida salutar, vez que promove a economia de milhares de reais gastos com a escolta e transporte de presos, no entanto já há previsão nesse sentido no ordenamento jurídico brasileiro, por força da Lei n.° 11.900 de 2009, que alterou o art. 185, §1° do Código de Processo Penal.

O art. 19 do projeto prevê a possibilidade de o juiz resguardar a identidade das vítimas, testemunhas, investigados e colaboradores, a fim de garantir a segurança daqueles que se dispõe a testemunhar em processos relativos ao crime organizado. A alteração do Código de Processo Penal promovida pela Lei n.° 11.690 de 2008 já permite a proteção da intimidade da vítima, nos termos do art. 201, §6° do CPP[160], nesse ponto o projeto serviria apenas para estender a proteção aos colaboradores, figura criada pelo projeto.

O art. 23 prevê prazo específico para a duração do processo que cuida do crime organizado, sendo o limite cento e vinte dias quando se tratar de réu preso. A Lei n.° 9.034/95, em seu art. 8°, prevê a duração de 81 dias para o processo quando se tratar de réu preso, a dilação pretendida pelo projeto certamente é resultado da práxis, e parece muito razoável tendo em vista a complexidade do feito e o número de agentes e testemunhas envolvidos no processamento de uma organização criminosa.

Merece nota o art. 25 do projeto, que tem a seguinte redação:

Art. 25. O juiz, na hipótese de sentença condenatória, decidirá fundamentadamente, com base em elementos do processo, sobre a necessidade do acusado recolher-se à prisão para apelar.

Para nós parece que o artigo supracitado padece de inconstitucionalidade, apesar de a justificativa do Senador argumentar no sentido contrário[161]:

A matéria relativa ao direito de apelar em liberdade foi disciplinada em consonância com o princípio da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CF). Ao contrário do texto legal em vigor, sobre o qual pairam fortes dúvidas de inconstitucionalidade (“o réu não poderá apelar em liberdade”, art. 9º da Lei nº 9.034, de 1995), preferimos uma redação mais equilibrada e compatível com o referido princípio constitucional, atribuindo ao juiz o dever de justificar a necessidade da prisão provisória antes do trânsito em julgado da condenação (art. 25).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°, inciso LVII consagra o princípio da presunção de inocência, que, segundo Pacelli[162]:

Impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e de sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação.

Portanto, seria inconstitucional qualquer tentativa de, por mera presunção de condenação, impor restrição pessoal ao acusado. Não sendo o caso de se decretar a prisão preventiva, e não tendo transitado em julgado a sentença penal condenatória, não é possível impor qualquer restrição à liberdade do réu.

Nesse sentido a lição de Ada Pellegrini[163]:

Este o panorama até a Constituição Federal de 1988, que, no art. 5°, LVII, consagrou expressamente o princípio da presunção de inocência, declarando: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Dimana desse postulado não ser possível, durante a marcha do processo, inclusive na fase de tramitação de qualquer recurso, impor ao réu medida privativa de liberdade que represente antecipação de pena, só sendo aceitável restrição decorrente de prisão com natureza cautelar.

Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça já está firmada nesse sentido.

O Supremo Tribunal Federal definiu em fevereiro de 2009 seu entendimento, que consta no informativo n.° 534 do tribunal[164]:

prisão preventiva: Pendência de Recurso sem Efeito Suspensivo e Execução Provisória Ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP. Com base nesse entendimento, o Tribunal, por maioria, concedeu habeas corpus, afetado ao Pleno pela 1ª Turma, para determinar que o paciente aguarde em liberdade o trânsito em julgado da sentença condenatória. Tratava-se de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que mantivera a prisão preventiva do paciente/impetrante, ao fundamento de que os recursos especial e extraordinário, em regra, não possuem efeito suspensivo — v. Informativos 367, 371 e 501. Salientou-se, de início, que a orientação até agora adotada pelo Supremo, segundo a qual não há óbice à execução da sentença quando pendente apenas recursos sem efeito suspensivo, deveria ser revista. Esclareceu-se que os preceitos veiculados pela Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal, artigos 105, 147 e 164), além de adequados à ordem constitucional vigente (art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP, que estabelece que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo e, uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença. Asseverou-se que, quanto à execução da pena privativa de liberdade, dever-se-ia aplicar o mesmo entendimento fixado, por ambas as Turmas, relativamente à pena restritiva de direitos, no sentido de não ser possível a execução da sentença sem que se dê o seu trânsito em julgado. Aduziu-se que, do contrário, além da violação ao disposto no art. 5º, LVII, da CF, estar-se-ia desrespeitando o princípio da isonomia. HC 84078/MG, rel. Min. Eros Grau, 5.2.2009. (HC-84078)

Esse posicionamento foi adotado também pelo Superior Tribunal de Justiça, se não vejamos[165]:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. APELAR EM LIBERDADE. PRINCÍPIO DA NÃO-CULPABILIDADE. DECISÃO DO PLENÁRIO DO STF. EXCEÇÃO. CUSTÓDIA CAUTELAR. REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP. ORDEM PÚBLICA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. ORDEM DENEGADA. 1. Segundo o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, "ofende o princípio da não-culpabilidade a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP" (Informativo 534). 2. Inexiste constrangimento ilegal quando devidamente fundamentada a custódia cautelar no art. 312 do CPP, reconhecidas circunstâncias desfavoráveis, tais como envolvimento da família na criminalidade, condenações transitadas em julgado por crimes graves e reiteração criminosa. 3. Ordem denegada. (HC 100.405/MS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 29/09/2009, DJe 03/11/2009)

Portanto, terminando a análise do Projeto de Lei n.° 150/2006, concluímos pela inconstitucionalidade do dispositivo supra, em concordância com a doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, mas consideramos a iniciativa legislativa positiva, no sentido que sana dúvidas e implementa melhorias para o combate ao crime organizado.

O segundo Projeto de Lei objeto de análise do presente trabalho é o de n.° 247 de 2005, de autoria do Senador Pedro Simon, que dispõe sobre a proteção dos colaboradores para o combate ao crime organizado.

Como exposto pelo Senador, o projeto já havia sido apresentado anteriormente na casa, o Projeto de Lei do Senado n.° 188/97, no entanto, não prosperou.  

O objetivo do projeto é claro, a regulamentação da proteção aos colabores da justiça no combate ao crime organizado, nesse sentido, a justificação[166]:

A regulamentação dessa colaboração e os modos de dar-se proteção a estas pessoas têm origem na legislação italiana que, a partir do início dos anos 80, estendeu, progressivamente, estas normas dos delitos de terrorismo para os da máfia e, posteriormente, para a legislação comum. No Brasil, não existe qualquer previsão legal quanto à matéria, daí o socorro ao direito comparado.

Já de inicio nos vem em mente potencial conflito entre o projeto e a Lei n° 9.807/99, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.

Esse potencial conflito se explica pela análise da justificativa apresentada pelo Senador Pedro Simon, percebemos que a redação do projeto se deu em um momento anterior à redação da vigente Lei n.° 9.807/99, “No Brasil, não existe qualquer previsão legal quanto à matéria, daí o socorro ao direito comparado”[167].

Deixado de lado o aspecto relativo à regulamentação da matéria pela Lei n.° 9.807/99, observamos a redação do art. 1° do projeto e nos deparamos com o seguinte problema, uma restrição quanto à utilização dos institutos previstos, se não vejamos[168]:

Art. 1º Esta lei trata das medidas a serem adotadas para assegurar a proteção e a incolumidade daqueles que estão expostos a grave e atual perigo, em decorrência de sua colaboração ou de declarações prestadas em inquérito policial ou processo penal relativos aos crimes contra a administração pública.

Portanto, apesar de pretender proteger aqueles que colaboram com o combate ao crime organizado, o projeto falha ao restringir a aplicação de seus institutos às hipóteses em que o delito cometido atentar contra a administração pública, ou seja, só é possível proteger a testemunha, vítima ou colaborador quando a organização criminosa dedicar-se ao cometimento de um dos delitos previstos no título XI da parte especial do Código Penal.

Pelo fato de a matéria já estar devidamente regulamentada pela Lei n.° 9.807/99, e por restringir a proteção da testemunha, vítima e colaborador do combate ao crime organizado, nos parece que o Projeto de Lei n.° 247 de 2005 não tem nada a adicionar ao ordenamento jurídico brasileiro, sendo dispensável sua apreciação pelo parlamento.

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Sobre o autor
Paulo Francisco Muniz Bilynskyj

Advogado Criminalista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BILYNSKYJ, Paulo Francisco Muniz. Crime organizado e o tratamento legislativo brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3250, 25 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21856. Acesso em: 23 nov. 2024.

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