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Trabalho escravo em terras economicamente produtivas: a possibilidade de desapropriação-sanção

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4  DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

4.1  DESAPROPRIAÇÃO - DELIMITAÇÃO CONCEITUAL

 A desapropriação é espécie de intervenção do Estado na propriedade privada. É verdadeira atividade administrativa, cuja finalidade - o interesse público - é garantida pela regra jurídica constitucional e regulamentada por regras jurídicas ordinárias.

A desapropriação é a mais acentuada forma de intervenção do Estado no direito de propriedade. Cretella Júnior[21] conceitua desapropriação como “o procedimento complexo de direito público mediante o qual o Estado, fundamentado na utilidade pública, na necessidade pública ou no interesse social, subtrai, em benefício próprio ou de terceiros, bens do proprietário, mediante prévia indenização”. Noutros termos, “é o procedimento de transferência compulsória da propriedade privada ou pública para o Estado, ou para terceiros, por utilidade pública, necessidade pública ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, exceto o caso da propriedade rural, considerada latifúndio, situada em zona prioritária quando a indenização pode ser paga em títulos especiais da dívida pública.”

4.2  O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – BREVE PANORAMA

  No sistema constitucional brasileiro, a desapropriação possui fundamentos diversos, tais como o art. 5º, XXIV; o art. 182, § 3º; o art. 182, § 4º, III; o art. 184 e o art. 243.

 O art. 5º, XXIV, da Constituição Federal é a fonte primeira da desapropriação e regra para as desapropriações em geral[22]. Dispõe o mencionado preceito normativo, in verbis:

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Essa forma de desapropriação evidencia a supremacia do interesse público sobre o particular. É realizada mediante indenização prévia, justa e em dinheiro. Tem como pressuposto a utilidade pública, ou a necessidade pública, ou o interesse social.

A doutrina distingue essas hipóteses, entendendo que existe:  a) necessidade pública quando “[...] a Administração está diante de um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável incorporar, no domínio do Estado, o bem particular”;  b) utilidade pública quando “[...] a utilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo, mas não constitui um imperativo irremovível”; e  c) interesse social quando “[...] o Estado esteja diante dos chamados interesses sociais, isto é, daqueles diretamente atinentes à camadas mais pobres da população e à massa do povo em geral, concernentes à melhoria nas condições de vida, à mais equitativa distribuição da riqueza, à atenuação das desigualdades em sociedade”.[23]

  Hely Lopes Meirelles[24] entende, por seu turno, que há necessidade pública quando “a Administração defronta situações de emergência, que, para serem resolvidas satisfatoriamente, exigem a transferência urgente de bens de terceiros para o seu domínio e uso imediato”; utilidade pública quando “a transferência de bens de terceiros para a Administração é conveniente, embora não seja imprescindível”; e interesse social quando “as circunstâncias impõem a distribuição ou o condicionamento da propriedade para seu melhor aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade ou de categorias sociais merecedoras de amparo específico do poder público.”

 No entanto, as hipóteses que configuram a desapropriação como sendo de necessidade pública, de utilidade pública, ou de interesse social, não ficam a critério da Administração Pública, uma vez que tais hipóteses estão taxativamente definidas em legislação ordinária (o Decreto-lei nº 3.365, de 1941 - Lei Geral das Desapropriações - que dispõe sobre os casos de desapropriação por utilidade pública; a Lei 4.132, de 1962, que define os casos de desapropriação por interesse social; e a Lei Complementar nº 76, de 1993, a Lei nº 4.504, de 1964, e a Lei n º 8.629, de 1993, que tratam da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária).

  O art. 182, § 3º, da Constituição de 1988, ao prever que “as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro”, fundamenta a desapropriação para fins urbanísticos. Por prever prévia e justa indenização em dinheiro, não há caráter sancionatório nessa modalidade desapropriatória. Dessa forma, a desapropriação com fundamento no § 3º do artigo 182 é conhecida como desapropriação normal ou geral, para fins urbanísticos[25], em contraponto à desapropriação urbanística sancionatória do art. 182, § 4º, III, da Constituição Federal.

4.3  A DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

 Quando o imóvel não está cumprindo a sua função social, a Constituição de 1988 prevê duas formas de desapropriação sancionatória. Nestes casos, apesar de haver indenização, esta não é prévia, nem é em dinheiro.

 Há, também, uma terceira forma de desapropriação-sanção, prevista no art. 243[26] do texto constitucional. Esta, porém, configura verdadeiro confisco, já que não há o pagamento de qualquer tipo de indenização.

4.3.1  Desapropriação urbanística sancionatória

 A primeira hipótese está prevista no Capítulo II do Título VII da Constituição Federal, que trata da Política Urbana. O art. 182, § 4º, III, da Constituição Federal prevê , in verbis:

Art. 182 [...]

[...]

§ 4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

(grifos nossos)

 Trata-se, segundo a doutrina, da desapropriação urbanística sancionatória[27].  Carvalho Filho aduz que “[...] essa forma expropriatória é prevista como a que pode ser adotada a título de penalização ao proprietário do solo urbano que não atender à exigência de promover o adequado aproveitamento de sua propriedade ao plano diretor municipal”[28]

 O imóvel não edificado, subutilizado ou não utilizado estará sujeito a sofrer desapropriação. Assim, o Poder Público municipal, mediante lei específica, poderá promover essa desapropriação, observada a Lei 10.257, de 2001 (Estatuto da Cidade). O pagamento da indenização será feito mediante títulos da dívida pública, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

4.3.2  Desapropriação rural sancionatória[29]

 A segunda hipótese de desapropriação sancionatória, conhecida como desapropriação rural[30], incide sobre o imóvel rural quando este não está cumprindo a sua função social. Está prevista no capítulo que trata da política agrícola e fundiária e da reforma agrária. O art. 184 da Constituição Federal estipula que:

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

 O imóvel rural desapropriado com fundamento no artigo 184 tem sua destinação vinculada para fins de reforma agrária. A indenização será paga em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão. Apenas as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.  A Lei 8.629 e a Lei Complementar 76, ambas de 1993, disciplinam sobre a desapropriação rural, por interesse social, para fins de reforma agrária.

 Como requisito essencial para a configuração desse tipo de desapropriação, exige o mandamento constitucional que o imóvel rural não esteja cumprindo sua função social. Estudaremos esse aspecto em tópico próprio.

 4.3.3  Desapropriação confiscatória

 A terceira espécie de desapropriação com efeito sancionatório é a desapropriação prevista no art. 243 da Constituição Federal.

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

(grifos nossos)

 Esse tipo de desapropriação é chamada pela doutrina de desapropriação confiscatória[31], por não conferir ao proprietário das terras expropriadas qualquer direito indenizatório, ao contrário do que ocorre nas duas modalidades de desapropriação-sanção anteriormente estudadas. A utilização da propriedade para cultura ilegal de plantas psicotrópicas fundamenta a perda da propriedade.

 A Constituição Federal exige que o imóvel desapropriado sob essas circunstâncias seja destinado especificamente para o assentamento de colonos e para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos.


5  A POSSIBILIDADE DE DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO DE IMÓVEL RURAL QUE NÃO ESTEJA CUMPRINDO SUA FUNÇÃO SOCIAL

 Como visto, o art. 184 da Constituição Federal, já transcrito, prevê a possibilidade de desapropriação, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.  A contrario sensu, pode-se inferir, que, se o imóvel rural estiver cumprindo sua função social, não poderá ser desapropriado, nos moldes do art. 184 da Constituição Federal de 1988[32].

 Vislumbra-se, nesse momento, que a grande questão talvez seja entender o que configuraria o cumprimento da função social da propriedade rural e analisar se a propriedade rural que se utiliza da mão-de-obra escrava, mesmo que produtiva, estaria cumprindo sua função social.

 A Constituição Federal de 1988 elucida essa questão ao trazer, em seu art. 186, I a IV, os requisitos necessários ao cumprimento da função social da propriedade rural, in verbis:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.       (grifos nossos)

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 Ao se proceder a uma breve análise dos transcritos incisos, tem-se que o aproveitamento racional e adequado é entendido, por muitos doutrinadores[33], como simplesmente o grau de utilização da terra e a eficiência na sua exploração, de acordo com o previsto no art. 6º, §§ 1º a 7º, da Lei nº 8.629, de 1993[34]. Assim, por exemplo, o grau de utilização da terra deve ser igual ou superior a 80% da área aproveitável, e o grau de eficiência na exploração deve ser igual ou superior a 100%. Porém, mostra-se mais adequado considerar que o aproveitamento racional e adequado envolve conceitos muito mais amplos do que a mera exploração eficiente da terra, como, por exemplo, o comando posto no inciso IV do citado artigo, que exige que a exploração favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Por se relacionar ao objeto deste artigo, esse assunto será aprofundado a seguir.

 Inicialmente, observe-se que a Constituição Federal expressamente exige que todos os requisitos do art. 186 sejam observados simultaneamente, de onde se infere que não é suficiente que a propriedade rural atenda a apenas um desses requisitos.

 Esclarecendo o alcance da função social da propriedade rural, José Afonso da Silva[35] aduz que se a propriedade rural “produz, mas de modo irracional, inadequado, descumprindo a legislação trabalhista em relação a seus trabalhadores, evidentemente que está longe de atender a sua função social”.

 Em contraponto ao art. 184 da Constituição Federal, que permite a desapropriação-sanção do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, tem-se o art. 185, que expressamente exclui a propriedade produtiva da desapropriação, se o fim for o de realizar a reforma agrária. Veja-se:

 Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.                         

 A princípio, poder-se-ia concluir que toda e qualquer propriedade rural, desde que produtiva, estaria resguardada contra a desapropriação fundada no art. 184 da Carta Magna. Porém, trata-se de uma interpretação simplista do texto constitucional. É preciso entender o tipo de propriedade produtiva que a Constituição Federal quis proteger no inciso II do art. 185, objetivando descobrir se esse objetivo é proteger: (i) a mera propriedade economicamente produtiva, ou (ii) a propriedade produtiva, ora denominada de propriedade racionalmente produtiva, que cumpre sua função social nos moldes do art. 186.

A importância da função social da propriedade é tamanha que a doutrina diverge sobre a interpretação a ser dada aos artigos 184 a 186 da Constituição Federal. Alguns entendem que função social da propriedade e produtividade seriam coisas distintas, somente sendo permitida a desapropriação-sanção das áreas economicamente improdutivas. Outros afirmam que não poderia haver produtividade sem função social, de forma a estar contido no conceito de produtividade o respeito, entre outros requisitos, às normas trabalhistas.

 Basicamente, diverge-se sobre se a produtividade, exigida no art. 185 do texto constitucional, que evita a desapropriação-sanção, é a econômica ou a racionalmente produtiva.

 Entende-se por propriedade economicamente produtiva - em contraponto à racionalmente produtiva – aquela que obtém lucratividade, apesar de eventualmente desrespeitar as leis ambientais e trabalhistas.

 Já por propriedade racionalmente produtiva, entende-se aquela que também é lucrativa, porém respeitando, simultaneamente, todas as condições do art. 186 da Constituição Federal (aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores).

 Conforme já visto neste artigo, não deve haver interpretação isolada dos preceitos de uma Constituição, a qual constitui uma unidade harmônica, devendo ser sempre interpretada de forma sistemática.

 Ao discorrer acerca da interpretação das Constituições, Canotilho[36] catalogou seis princípios de interpretação constitucional:

1. Princípio da Unidade da Constituição - significa que “a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as usas normas”. Esse princípio “obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar”.

2. Princípio do Efeito Integrador - orienta que, “na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política.”

3. Princípio da Máxima Efetividade - também conhecido por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva. Postula que “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”.

4. Princípio da Justeza ou da Conformidade Funcional - busca “impedir, em sede de concretização da Constituição, a alteração da repartição de funções constitucionalmente estabelecidas”

5. Princípio da Concordância Prática ou da Harmonização - tal princípio “impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”.

6. Princípio da Força Normativa da Constituição - entende que, “na solução dos problemas jurídico-constitucionais, deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da Constituição (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve ser-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a ‘atualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência.”

  Jorge Miranda[37] completa tais princípios com as seguintes regras:

 - a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou prioridade de certos princípios;

 - deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhes suprima ou diminua a finalidade;

 - os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto implicitamente, a fim de colher-se seu verdadeiro significado.

 Assim, indaga-se se teria sido objetivo da Carta Magna (após garantir a função social da propriedade como direito e garantia fundamental, como princípio constitucional da ordem econômica e como princípio da reforma agrária; após expressar o que entende por cumprimento da função social da propriedade rural; e após elencar como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos) simplesmente isentar a propriedade economicamente produtiva do cumprimento da função social.

 Gondinho[38] afirma que “a Constituição procedeu clara opção pelos valores existenciais que exprimem a ideia de dignidade da pessoa humana, em superação do individualismo tão marcante em nosso ordenamento anterior a ela. Os interesses patrimoniais devem se adequar à nova realidade, pois a pessoa prevalece sobre qualquer valor”.

 Interpretando-se a Constituição à luz dos princípios e das regras acima transcritas, afigura-se cogente a exegese no sentido de que a propriedade produtiva, para ser insuscetível de desapropriação, deve estar cumprindo os critérios configuradores da função social, de acordo com o previsto no art. 186 da Constituição Federal. Outra não poderia ser a interpretação, apesar dos entendimentos diversos[39].

 Nesse sentido, Tepedino[40] entende que, à luz dos princípios constitucionais e dos objetivos da República, a produtividade, para impedir a desapropriação, deve ser associada à realização de sua função social. O conceito de produtividade estaria definido pela Constituição de maneira essencialmente solidarista. Complementa o autor, dizendo que:

[...] a propriedade, para ser imune à desapropriação, não basta ser produtiva no sentido econômico do termo, mas deve também realizar sua função social. Utilizada para fins especulativos, mesmo se produtora de alguma riqueza, não atenderá a sua função social se não respeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Em consequência, deverá ser desapropriada, pelo Estado, por se apresentar como um obstáculo ao alcance dos fundamentos e objetivos - constitucionalmente estabelecidos - da República. Em definitivo, a propriedade com finalidade especulativa, que não cumpra a sua função social, ainda que economicamente capaz de produzir riqueza, deverá ser prioritariamente desapropriada, segundo a Constituição, para fins de reforma agrária.                                                                    

 Condiciona-se a fruição individual do proprietário ao atendimento dos múltiplos interesses dos não-proprietários[41]. Gondinho, partilhando desse entendimento, afirma que “uma propriedade rural, embora seja extremamente produtiva, não cumpre a sua função social se a produção estiver baseada, por exemplo, no desrespeito aos direitos trabalhistas ou na exploração predatória do meio ambiente.”[42]

 Também Marés[43] consigna que:

Nesse sentido, a interpretação do capítulo relativo à política agrícola e fundiária e da reforma agrária, especialmente dos artigos 185 e 186, combinados com o caráter emancipatório e pluralista de toda a Constituição nos leva a certeza de que é protegida pela Constituição a propriedade que faz a terra cumprir sua função social, porque a ocupação que não a cumpre, por mais rentável que seja, incorre em ilegalidade.

 Em tal contexto, o uso de mão-de-obra escrava constitui grave infração ao art. 186 da Constituição Federal, em especial aos incisos III e IV, os quais exigem que sejam observadas as disposições que regulam as relações de trabalho e que a exploração favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Neste sentido foi a conclusão de Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias[44], ao exararem parecer jurídico a pedido do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA:

a) Deflui da ordem jurídica positivada que no conceito de função social está contido o conceito de produtividade, mas que no conceito de produtividade também estão contidas parcelas dos conceitos de função ambiental, função trabalhista e função bem-estar, isto é, que a função social é continente e conteúdo da produtividade.

b) A vedação do art. 185 da CF/88 não pode excepcionar ipso facto o comando do art. 184, senão nos casos em que a produtividade provenha de atividades não contrapostas a vedações legais, e, pois, não pode ser invocada para tutelar os casos em que a produtividade derive de descumprimento de preceitos de regime ambiental ou trabalhista, já que, em essência, esses ilícitos, além de impedirem o aperfeiçoamento da função social, viabilizam desincorporação dos ganhos de produtividade correspondentes, expondo o imóvel à desapropriação-sanção inclusive por improdutividade ficta, ou produtividade irracional.

c) No contrario sensu da expressão “exploração racional”, preceituada no caput do art. 6º da Lei nº 8.629/93 se desenham todas as situações de ilícito possíveis, e previstas em regimes jurídicos próprios, entre elas cada qual que vier a configurar vulneração dos incisos II a IV do art. 186 da CF/88, na tipificação a eles dada pelos parágrafos 2º a 5º do art. 9º da Lei nº 8.629/93.

d) Em casos nos quais o descumprimento da função social da propriedade possa ser objetivável de plano e demonstrado por simples operação de conta e conferência, compete autonomamente ao órgão federal executor da política e reforma agrária proceder à objetivação, mediante fiscalização em que se assegure ao proprietário o devido processo legal administrativo.

e) Nos demais casos, compete ao órgão federal executor da política e reforma agrária, em conjunto com os demais órgãos executores das políticas conexas às funções ambiental e trabalhista, a elaboração de norma técnica e adoção de medidas administrativas conjuntas de fiscalização, com vistas a conferir efetividade às normas constitucionais previstas no art. 186 da CF/88, e incisos II a IV do art. 9º, da Lei nº 8.629/93.

f) Nos casos das alíneas anteriores, a propriedade, embora produtiva do ponto de visa economicista, suscetibiliza-se à desapropriação-sanção de que cuida o art. 184 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, se flagrada como descumpridora das outras condicionantes da função social elencadas no art. 186, II, III e IV da CF/88 (II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores).

 Dessa forma, entende-se que a propriedade rural na qual foi constatado o uso de mão-de-obra escrava é passível de sofrer desapropriação-sanção, mesmo que as terras em questão sejam economicamente produtivas.

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Sobre a autora
Tatiana Bandeira de Camargo Macedo

Advogada da União lotada na Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Relações Exteriores. Pós-Graduada em Direito Penal e em Direito do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Tatiana Bandeira Camargo. Trabalho escravo em terras economicamente produtivas: a possibilidade de desapropriação-sanção . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3255, 30 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21889. Acesso em: 26 dez. 2024.

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