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O “neoliberalismo sindical” e a prevalência do econômico sobre o social: a negociação coletiva como instrumento precarizador

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5. FLEXIBILIZAÇÃO

5.1. CONCEITO E ASPECTOS HISTÓRICOS

O conceito de flexibilização não é encontrado nos dicionários, neles são encontrados apenas as palavras flexibilidade, do latim flexibilitate, como sendo a qualidade de ser flexível, bem como a palavra flexibilizar, significando o ato de tornar-se flexível.

Segundo Anielson da Silva,

O termo em questão não pertence ao vocabulário mais tradicional da língua portuguesa, porém vem se incorporando com o passar do tempo a fala de mais e mais pessoas. A flexibilização parece ser termo que se refere a uma mudança de paradigmas no mundo do trabalho, porém sem que haja quebra. A palavra leva a entender que algo será modificado, mas que essa não ocorrerá de forma extremamente profunda, pois não provoca a troca de um padrão por outro, visa apenas um aprimoramento da situação atual. O verbo flexibilizar, utilizado em seu sentido genérico tem como significado tornar flexível, que por sua vez, é algo que se pode dobrar ou curvar, maleável, dócil, complacente, submisso. Ao pretender flexibilizar as normas trabalhistas, busca-se possibilitar que os direitos por ela trazidos sejam “dobráveis”, “moldáveis” aos interesses das partes. [44]

No mesmo sentido, Marsha de Oliveira,

Flexível significa algo que se dobra sem quebrar, o fácil de manejar, o maleável. Flexibilizar as normas trabalhistas quer dizer, a pôr, torná-las o mais ajustável a situações fáticas, menos rígidas. Em princípio, corresponde a troca do preceito de natureza genérica por outro de natureza individualizada. É a predominância da convenção coletiva sobre a lei; da autonomia dos grupos privados sobre o intervencionismo estatal. A ordem pública social estaria presenteada com uma legislação trabalhista mais dispositiva e menos imperativa, consagrando a autonomia da vontade em situações cruciais da relação de emprego. A flexibilização do Direito do Trabalho denota, por fim, um processo de adaptação das normas trabalhistas à realidade latente.[45]

Assim, de maneira geral, pode-se entender a flexibilização como sendo a atenuação da rigidez protetiva do Direito do Trabalho.

Muito se discute a respeito dos reflexos dessa teoria flexibilizadora sobre as normas que regulam as relações de trabalho e, por conseguinte, sobre o princípio protecionista, em seus vários desdobramentos.

Existem os que preconizam a referida teoria justificando-a, segundo Davi Pinto, com os seguintes argumentos: a pura necessidade de reformar e rever conceitos que hoje consideram superados; o excessivo "engessamento" das relações de trabalho pela indevida intromissão estatal; o extraordinário avanço da tecnologia, que tornam incompatíveis as modernas formas de produção com os atuais modelos de relação de trabalho; o excesso de proteção, que teria efeitos perversos, resultando em diminuição dos postos de trabalho, aumento do subemprego e do trabalho informal.[46]

Assim, conforme Marsha de Oliveira, os que acreditam na flexibilização têm a certeza de que permanecer com a intervenção estatal exagerada nas relações de trabalho não acrescenta em nada para o País e apenas servirá como reflexo do autoritarismo de outrora. Os defensores desse posicionamento sustenta que se a negociação coletiva não puder interferir nos direitos adquiridos pelos trabalhadores ela será conflitante com o dinamismo que o mercado de trabalho espera.

Em contrapartida, existem aqueles que afirmam basicamente que não se pode sacrificar o trabalhador para a obtenção de um crescimento econômico. Eles são unânimes em afirmar que este instrumento apresenta-se como uma proposta de garantia de empregos e benefícios ao empregado, quando na verdade pretende-se, apenas, a redução de custos e encargos trabalhistas visando aumentar a competitividade empresarial.

Para estes, as inovações tecnológicas somadas à tese da flexibilização das normas laborais são elementos indutores de desemprego e precarização do trabalho. A flexibilização seria, portanto, um meio de retrocesso, pondo por fim a tudo que fora arduamente conquistado pelos trabalhadores no decorrer dos séculos de reivindicação.

Quanto ao tema, cumpre registrar o pensamento de José Cairo Júnior ao sustentar que a noção de flexibilização implica necessariamente a precarização do emprego, com a diminuição de direitos trabalhistas e o aumento, por exemplo, da quantidade de justificativas para celebrarem-se contratos por prazo determinado[47]

Existem ainda defensores de uma flexibilização condicionada ou semi flexibilização, ou seja, admitem que direitos trabalhistas sejam flexibilizados, porém devem ser observadas algumas regras, ainda, deve haver iniciativa dos trabalhadores e deve acontecer de forma gradual.

É o caso de Maria Christina Filgueira de Morais:

A flexibilização das normas trabalhistas não só é uma tendência, mas uma perspectiva de escala mundial. Os reflexos dos mecanismos flexibilizadores sobre os princípios do Direito do Trabalho, especialmente no princípio protetor, já é um fato. Com efeito, o que se faz mister, é a utilização da flexibilização de normas jurídicas assistida por entes coletivos devidamente estruturados, mediante o pleno incentivo à autonomia privada coletiva, desde que observados, por óbvio, os padrões mínimos de proteção. A compatibilização do princípio protetor com a teoria da flexibilização pode ser resolvida por meio de uma evolução do trabalho interpretativo e da ampliação das categorias jurídicas envolvidas[48].

Para Alice Monteiro de Barros,

A flexibilização traduz uma forma de adaptação das normas trabalhistas às grandes modificações verificadas no mercado de trabalho. Salienta a jurista que mesmo nessa hipótese de flexibilização, “os limites mínimos previstos nos diplomas constitucionais e internacionais devem ser respeitados, mesmo porque os direitos trabalhistas integram o rol dos direitos fundamentais na Constituição de 1988”.[49]

Marília Budó traz importantes considerações,

No Brasil, são vários os argumentos utilizados contra e a favor da flexibilização. Um dos principais argumentos do segundo é a possibilidade de criação de novos postos de trabalho com a diminuição dos encargos sociais e conseqüentemente a diminuição do desemprego. A impossibilidade de criação de cláusulas contratuais in pejus válidas faz com que todos os encargos sociais presentes na CLT sejam aplicáveis em todos os contratos. Os defensores desta corrente defendem que os encargos sociais no Brasil são demasiadamente altos, o que acarreta em diminuta contratação de novos empregados e pouca criação de postos de trabalho.[50]

Não é despiciendo informar que, segundo a supracitada autora, a proposta de flexibilização do direito do trabalho é reflexo da ideologia neoliberal, que atinge várias partes do mundo hoje, porém tal ideologia já está em decadência, vistas as várias crises mundiais que se sabe decorrentes dela.[51]

Inclusive, em razão das políticas decorrentes da referida ideologia neoliberal é que se desregulamentou os direitos dos trabalhadores em vários países causando ainda mais desemprego e desestabilização da economia.

Em seu conteúdo histórico, a flexibilização surgiu no continente europeu como uma alternativa de enfrentamento de crises, desemprego e problemas diversos na ordem econômica, social e política. Segundo Davi Pinto, após a origem, vários países adotaram-na em seus sistemas jurídicos, com enfoques e graus diferentes.[52]

Sobre o tema, Mario de Paiva:

É em virtude dessa realidade atuante do desemprego, em contraposição à rigidez da legislação, que se semeou na Europa um movimento de idéias, que no dia-a-dia angariava novos pensadores, especialistas e principalmente os operadores do Direito do Trabalho, a flexibilização.[53]

Complementa Rodrigo Carnieli:

No entanto, com as crises sociais decorrentes de problemas econômicos mundiais e a adaptação das relações de trabalho à nova realidade econômica existente nesse "admirável mundo novo" é que se fez (ou foi obrigado a sê-lo) necessário uma nova regulamentação das leis trabalhistas de forma a adaptá-las aos novos moldes sócio-econômicos decorrentes dessa transformação social. Nesse contexto, surgem então novas formas de contratos trabalhistas, como os contratos temporários, aprendizagem, estágio, empresas terceirizadas, dentre várias outras formas de manutenção das modalidades trabalhistas com o intento de dirimir os conflitos resultantes das crises sociais e econômicas mundiais.[54]

No Brasil, a flexibilização tem ocorrido desde 1966. A idéia se integrou em nossas leis, inclusive em 1988 através da Constituição Federal, conforme será visto adiante.

Sobre o tema, Amauri Mascaro Nascimento:

No Brasil as leis foram flexibilizada, inicialmente, em 1966, com Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que facilitou a dispensa dos empregados optantes para os quais foi extinta a indenização de dispensa, substituída por depósitos mensais que o empregador faz na conta do empregado no fundo e pela estabilidade no emprego que antes adquiriram ao completar dez anos no mesmo emprego; em 1974, a autorização legal para o trabalho temporário; em 1988, a Constituição permitiu a redução salarial por acordo ou convenção coletiva, a participação nos lucros dos resultados da empresa desvincula dos salários e a lei criou contrato por prazo determinado para admissão de pessoal acima do quadro fixo da empresa; em 1989,  foram eliminadas proibições para o trabalho da mulher em horário noturno, extraordinário, em ambiente com insalubridade ou periculosidade, em subterrâneos, minas, subsolos e obras de construção civil; 1994, os reajustes salariais anuais coletivos, que eram indexados, foram transferidos para a livre negociação coletiva; no mesmo ano, a lei passou a dispor que não configurava vinculo de emprego o trabalho de cooperados entre estes a empresa utilizadora dos seus serviços; em 1998, foi o tempo parcial, em 2001, a lei autorizou a compensação anual das horas, desaparecendo a obrigação de pagar goras extras quando concedida folga substitutiva do excesso de horário; no mesmo ano foram retirados encargos sociais de diversas utilidades, como educação, transporte, assistência médica, hospitalar, odontológica, seguro saúde, seguro de vida (...).[55]

5.2. FLEXIBILIZAÇÃO E DESREGULAMENTAÇÃO

É preciso advertir que flexibilização não se confunde com desregulamentação. Nesta, verifica-se que o Estado deixa de intervir nas relações de trabalho, autorizando a autonomia privada a regular livremente as condições deste. Por sua vez, na flexibilização, segundo Arnaldo Sussekind et al, o Estado se omite tanto quanto possível (laisser faire), a fim de que as condições de emprego sejam ditadas, preponderantemente, pela autonomia privada, segundo as leis de mercado[56].

Otávio Brito sustenta:

A flexibilização das condições de trabalho resulta numa redução de direitos trabalhistas, mediante negociação coletiva, com o objetivo de diminuir custos e possibilitar ao empregador transpor períodos de crise nos quais a continuidade da atividade empresarial e a manutenção de postos de trabalho são os bens maiores a defender. Não se pode, portanto, confundir a flexibilização das condições de trabalho com a desregulamentação do Direito do Trabalho, como fazem alguns autores, pois esta simplesmente retira a proteção do Estado ao trabalhador, permitindo que a autonomia privada, individual ou coletiva regule as condições de trabalho e os direitos e obrigações advindos da relação de emprego.[57]

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Quanto ao tema, Marília Budó sustenta o seguinte entendimento,

No momento em que se permite a diminuição de direitos, começa-se a trilhar um caminho onde muito fácil será não cumprir justificadamente o que está na lei. Talvez este caminho leve a uma outra realidade ainda muito pior do que a flexibilização: a desregulamentação do direito do trabalho, ou seja, a revogação das normas de proteção ao trabalhador, deixando a cargo dos sindicatos e entidades representativas de classe a negociação e disponibilidade dos direitos.[58]

Por sua vez, Luiz Henrique Carvalho:

Se é certo que a transmutação da economia mundial justifica a flexibilização na ampliação das normas de proteção, a fim de harmonizar interesses empresariais e profissionais, não menos certo é que ela não deve acarretar a desregulamentação do Direito do Trabalho, seja nos países de cultura jurídica romano-germânica, onde a lei escrita é a fonte tradicional do Direito, seja naqueles em que a sindicalização é inautêntica, inexpressiva ou inadmitida. A verdade é que há princípios e normas fundamentais que, independentemente das teorias econômicas ou monetaristas, são inseparáveis do esforço da humanidade em favor da justiça social.[59]

Não é despiciendo o registro de que a pura e simples desregulamentação representa a negação do princípio do art. 7º da CF, de que os trabalhadores urbanos e rurais têm assegurada uma relação jurídica protegido por um rol mínimo de direitos trabalhistas, é o que afirma Carnieli[60]. Ou seja, a tese desregulamentadora não encontra prestígio na CF.

5.3. FLEXIBILIZAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 adotou a flexibilização de algumas normas: redutibilidade salarial, compensação de horários na semana e trabalho em turnos de revezamento (art. 7º, VI, XIII e XIV):

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...) VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”.[61]

Indubitavelmente, tais normas possuem caráter flexibilizatório em razão da autorização à autonomia coletiva para adotar outras soluções que não sejam as previstas no Diploma Constitucional. Saliente-se que a própria CF subordinou a alteração das supracitadas regras à negociação coletiva, mediante acordo ou convenção. Quanto a essa exigência, Anielson da Silva lembra que no que tange ao art. 8º da CF, que prevê a presença dos sindicatos nas negociações coletivas, a interpretação que deve ser dispensada é a de que é obrigatória a atuação do sindicato dos trabalhadores, pois nos acordos coletivos só participam o sindicato da categoria profissional e uma ou mais empresas[62].

Sobre as normas flexibilizantes previstas na CF, Otávio Brito:

Como regra geral, as condições mínimas de trabalho previstas na CF são inderrogáveis pela vontade das partes, mesmo na esfera da autonomia privada coletiva. A Constituição abriu uma exceção ao permitir a flexibilização das condições de trabalho no art. 7º, incisos VI ("irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo"), XIII ("duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho") e XIV ("jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva "). Na primeira hipótese, o constituinte aludiu a convenção e o acordo coletivo; na segunda, a acordo ou convenção coletiva; e na terceira, a negociação coletiva, entretanto, como a convenção e o acordo coletivo são os instrumentos da negociação coletiva, pode-se afirmar, como regra geral, que a flexibilização decorre da negociação coletiva e se exterioriza (ganha contornos jurídicos ou se instrumentaliza) em acordos ou convenção coletiva de trabalho.[63]

Ademais, questão que costuma dividir opiniões, é se a flexibilização prevista na Constituição Federal está restrita às questões salariais e jornada de trabalho ou se é possível atingir outros direitos trabalhistas.

Há quem entenda que o artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal, que reconhece a validade das convenções e acordos coletivos de trabalho, torna válida qualquer cláusula de ajuste coletivo que implique na flexibilização de direitos individuais e não só aquelas condições expressamente autorizadas na Carta Magna.

Para eles, assim é porque as categorias profissional e econômica em cada setor produtivo conhecem as suas próprias peculiaridades concernentes à atividade, portanto a elas deve ser atribuída a fixação das condições de trabalho e remuneração.

Nesse sentido, Ives Gandra Martins:

Se os dois principais direitos trabalhistas (salário e jornada de trabalho) são passíveis de flexibilização, todos aqueles que deles decorrem, ou seja, parcelas de natureza salarial ou decorrentes da conformação da jornada de trabalho, também podem ser flexibilizados por acordos e convenções coletivas. Os próprios incisos do art. 7º da Constituição, a nosso ver, não são cláusulas pétreas, uma vez que o art. 60, § 4º, IV, da Constituição, ao limitar o poder de emenda aos direitos e garantias individuais, não abrangeu nem os direitos coletivos do art. 5º, nem os direitos sociais do art. 7º, cingindo a sua proteção a parte dos incisos do art. 5º da Constituição.[64]

Ou seja, tal entendimento, de maneira geral, esteia-se na idéia de que se a Constituição Federal autoriza a redução do salário que a princípio, é irredutível, através da entabulação coletiva, é possível ampliar, alterar, reduzir ou extinguir quaisquer outros direitos de menor relevância.

Nessa esteira, Marcius Souza:

Há quem defenda uma interpretação extensiva desses incisos, aliada à previsão do inciso XXVI da Lei Maior, que reconhece a normaticidade das convenções e acordos coletivos de trabalho. Defende-se que, se a Carta Magna admite a redução do salário e da jornada, todos aqueles que deles decorrem podem ser objeto de flexibilização, invocando a máxima “quem pode o mais pode o menos”.[65]

Em contrapartida, Otávio Brito sustenta o seguinte:

Quando a Constituição dispôs sobre a flexibilização e aludiu expressamente e apenas ao salário (inegavelmente, um dos bens jurídicos mais importantes para o empregado, depois do próprio emprego) e à limitação da jornada de trabalho (interesse também dos mais importantes para a classe trabalhadora) (16) é porque são justamente os direitos com densidade suficiente para alcançar o desiderato pretendido: redução dos custos da empresa e salvamento do emprego. Outros direitos de cunho não pecuniário não teriam o condão de atingir o fim colimado (tutela do pleno emprego). De outro modo, haveria uma incoerência na Constituição, que consagra o princípio do trabalho protegido por um rol mínimo de direitos, para, logo em seguida, dizer que esse mínimo não é o piso, mas sim, outro que decorrer da negociação volitiva.[66]     

Da mesma forma, Anielson da Silva:        

É consenso de quase todos doutrinadores trabalhistas no Brasil de que não se poderá flexibilizar direitos mínimos assegurados na Constituição Federal, salvo se permitido na própria Carta Magna, conforme previsão expressa nos incisos VI, XIII e XIV do artigo 7º. Nos referidos incisos, há previsão de redução de salário em caso de convenção ou acordo coletivo, compensação de horários e redução de jornada também em caso de convenção ou acordos coletivos, bem como jornada de seis horas em caso de trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo, novamente, convenção coletiva.[67]

No que tange às hipóteses em que se tem admitido a flexibilização dos direitos trabalhistas mediante negociação coletiva, Ives Gandra Martins destaca as seguintes:

a) pagamento proporcional do adicional de periculosidade ao tempo de exposição ao agente de risco (Súmula nº 364, II, do TST); b) redução do intervalo intrajornada para a categoria dos motoristas (conforme precedente jurisprudencial da SDC-TST); c) limitação do pagamento de horas in itinere a uma diária, independentemente do tempo efetivamente gasto pelo empregado em condução fornecida pelo empregador (precedentes da Corte); d) no que diz respeito aos minutos residuais, tolerância de 15 minutos antes e 15 minutos depois da jornada de trabalho sem o pagamento de horas extras (precedentes da Corte). No entanto, tem sido rejeitada a flexibilização nas hipóteses de: a) turnos ininterruptos de revezamento, quando não demonstrada a compensação com vantagem substitutiva (a matéria se encontra aguardando definição do Pleno do TST em Incidente de Uniformização de Jurisprudência em torno da Orientação Jurisprudencial nº 169 da SBDI-1 do TST); b) regime 12x36 horas, determinando-se o pagamento como horas extras das 11ª e 12ª horas (precedentes da Corte); c) não redução do intervalo intrajornada fora da hipótese de motoristas (Orientação Jurisprudencial n. 342 da SBDI-1 do TST); d) redução do período de estabilidade da gestante (precedentes da SDC-TST).[68]

5.4. A POLÊMICA DO ART. 618 DA CLT

Em outubro de 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso - FHC enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.483/2001. O referido projeto diz respeito à chamada “flexibilização das relações de trabalho” que pretendia-se implantar no país, alterando o art. 618 da CLT.

O art. 618 da CLT contém o seguinte texto:

Art. 618. As empresas e instituições que não estiverem incluídas no enquadramento sindical a que se refere o art. 577 desta Consolidação poderão celebrar Acordos Coletivos de Trabalho com os Sindicatos representativos dos respectivos empregados, nos termos deste Título.[69]

O Projeto de Lei conferia-lhe a seguinte redação:

Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho[70].

O Projeto foi aprovado, no entanto, com algumas alterações, chegando ao Senado da seguinte forma:

Art. 618. Na ausência de convenção ou acordo coletivo firmados por manifestação expressa da vontade das partes e observadas as demais disposições do Título VI desta Consolidação, a lei regulará as condições de trabalho.

§1º A convenção ou acordo coletivo, respeitados os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, não podem contrariar lei complementar, as Leis nº 6.321, de 14 de abril de 1976, e nº 7.418, de 16 de dezembro de 1995, a legislação tributária, a previdenciária e relativa ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço- FGTS, bem como as normas de segurança no trabalho.

§2º Os sindicatos poderão solicitar o apoio e o acompanhamento da central sindical, da confederação ou federação a que estiverem filiados quando da negociação de convenção ou acordo coletivo previstos no presente artigo.[71]

A polêmica instaurada em torno do supracitado Projeto de Lei gira em torno da revolução para o Direito do Trabalho, porquanto inverte a hierarquia das normas, fazendo com que o acordo coletivo se sobreponha às leis, ressalvadas as garantias constitucionais.

Os defensores entendem que a flexibilização já tinha sede constitucional (CF, art. 7º, VI,XIII e XIV), limitando-se a alteração a permitir a flexibilização de normas infraconstitucionais, sem deixar de respeitar as conquistas com a Constituição de 1988. Outros, porém, sustentam que a filosofia da flexibilização inserida no Projeto de Lei constituiria verdadeira derrocada de conquistas trabalhistas obtidas a duras penas, fragilizando-se o sistema protetivo laboral.

Outrossim, para o leigo, o discurso parecia ser "modernizador, neoliberal”, especialmente porque antecedido da promessa de geração de novos empregos e de uma sistemática campanha nos meios de comunicação pertencentes ao Governo.

Porém, ao esvaziar o papel da legislação e maximizar o papel de um combalido sindicalismo, o projeto renderia ensejo a um retrocesso histórico na área trabalhista, prestando-se apenas para agravar o empobrecimento com exclusão social e incremento do caldo da cultura da violência, é o que afirmou Dallegrave Neto.[72]

Isto porque, pretendia o Projeto ampliar as hipóteses de flexibilização autorizadas expressamente pelo art. 7º da CF. Assim, em razão da frágil estrutura sindical brasileira, a perspectiva seria o agravamento da crise e a concentração de renda.

Segundo Marília Budó:

Sendo a convenção ou acordo coletivo superior à lei, várias das garantias estabelecidas poderão ser objeto de modificações, dependendo do poder de barganha do sindicato ou da classe em questão no caso concreto. Como se sabe, poucos sindicatos profissionais no Brasil possuem um grande poder de discussão junto aos respectivos sindicatos patronais. Por isso dificilmente conseguiriam manter suas garantias frente às propostas dos patrões, e, principalmente, à constante ameaça do desemprego.[73]

Semelhantemente Francisco Lima Filho:

Nesse quadro, penso que a proposta de alteração do art. 618 da CLT, contida no Projeto de Lei aprovado pela Câmara dos Deputados, na medida em que estabelece que por força de convenção ou acordo coletivo de trabalho os direitos trabalhistas assegurados por preceito constitucional possam ser precarizados e até mesmo extintos, fere de forma inadmissível o art. 7º da Suprema Carta, pois as condições negociadas em convenção ou acordo coletivo de trabalho deverão respeitar, em qualquer caso, os direitos mínimos inscritos pelo constituinte originário no art. 7º do Texto Maior, constantes do Título dos Direitos e das Garantias Fundamentais do cidadão, que não podem ser derrogados nem mesmo pela vontade das partes, quanto mais por lei ordinária como se pretendeu com a mencionada proposição legislativa. E tanto isso é verdadeiro, que o constituinte exigiu Lei Complementar para regulamentar os direitos decorrentes da relação de emprego, inclusive a indenização por despedida arbitrária ou sem justa causa, porém desde logo garantindo um mínimo que inscreveu no próprio Texto Supremo com a cláusula do não retrocesso.[74]         

Nesse sentido, Vinícius Ongaratto:

É necessário muito cuidado para a flexibilização, pois a partir do momento em que se permite uma relativização de direitos, é trilhado um caminho onde se torna muito fácil o não cumprimento do que está previsto em lei. Corre-se o risco de que esse caminho leve a uma nova realidade ainda pior do que se vive atualmente: uma desregulamentação do direito do trabalho, ou seja, uma revogação das normas de proteção ao trabalhados, deixando a cargo dos sindicatos e entidades representativas de classe a negociação e disponibilidade dos direitos, conquistados a duras batalhas.[75]

Em contrapartida, João Humberto Martorelli,

O objetivo a ser alcançado é alterar um sistema que privilegia a legislação ediatada pelo Estado para um sistema que privilegie a negociação coletiva, resguardado o mínimo previsto na Lei Maior. Nesse sentido, a experiência internacional tem sido positiva. Basta verificar que é justamente nos países desenvolvidos, como França e Inglaterra, que a composição autônoma dos direitos trabalhistas tem sido a tônica do Direito Laboral. Não há motivo para temer a aprovação dessas mudanças e a consagração definitiva da flexibilização da legislação trabalhista no nosso País. Os contratos temporários de emprego e o banco de horas são exemplos de normas flexíveis que facilitam a contratação e que vêm dando certo. As mudanças agora são mais profundas e os sindicatos, podem crer, terão mais poder na medida em que prevalecer as regras estabelecidas entre as partes. O Estado precisa intervir cada vez menos nessas negociações e nos problemas decorrentes das relações de emprego.[76]

Da mesma forma, Ives Gandra:

O objetivo da alteração do art. 618 da CLT foi o de explicitar melhor o que já se encontrava latente na Constituição Federal de 1988, quando admitiu a flexibilização de direitos trabalhistas mediante negociação coletiva em relação a salário e jornada de trabalho (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV)...Ademais, aquilo que é passível de flexibilização pelas partes, através de negociação coletiva, não pode ficar à margem de alteração pelo legislador. Portanto, se a reforma proposta seria possível por via de emenda constitucional, quanto mais pela via da lei ordinária e de forma menos abrangente.[77]

Porém, deve entender que, a Carta Magna, quando desejou flexibilizar as condições de trabalho, fê-lo de forma expressa nos incisos VI (redução de salário), XIII (compensação de jornada) e XIV (turno ininterrupto de revezamento) do art. 7º, elencando taxativamente as hipóteses de negociação in pejus, não respaldando a ampliação dessas hipóteses, é o que afirma Marcius Souza.[78]

Assim é, porque são normas estranhas ao sistema, que devem ser interpretadas de maneira restritiva, não podendo ser alargadas em face do caráter de excepcionalidade.

Na visão de Dallegrave Neto, porém, o Projeto de lei não tem o condão de alterar a ordem jurídica positiva, pois não é possível que a simples modificação de um artigo infraconstitucional possa subverter a ordem axiológica constitucional, mormente a proteção do trabalho e ao trabalhador (art. 7º, 170 e 193 da CF).[79]

Sussekind listou algumas conseqüências oriundas da aprovação da Lei:

a) o valor da remuneração do repouso semanal, que poderá ser em qualquer dia da semana; b) redução dos adicionais de trabalho noturno, insalubre ou perigoso e de transferência provisória do empregado; c) ampliação do prazo para o pagamento do salário; d) ampliação da hora do trabalho noturno; e) ampliação das hipóteses de trabalho extraordinário; f) extensão da eficácia da quitação de direitos; g) redução do período de gozo das férias, ampliação do seu fracionamento e alteração da forma de pagamento da respectiva remuneração; h) redução dos casos de ausência legal do empregado, inclusive licença-paternidade; i) redução do valor de depósito do FGTS; j) transformação do 13º salário em parcelas mensais.[80]

Por derradeiro, felizmente o Projeto de Lei 5.483/2001 foi arquivado no Senado em 2003. Não há dúvidas de que a tutela e fiscalização do Estado devem existir, pois é inerente ao Direito do Trabalho o reconhecimento da hipossuficiência do empregado perante o empregador. Assim, a intervenção estatal não poderia deixar de existir no âmbito das relações trabalhistas, máxime em época de desemprego em que o trabalhador poderia ser levado a sujeitar-se às imposições do empregador renunciando, em troca de manutenção do posto de trabalho, direitos mínimos de natureza irrenunciável, porquanto muitos sindicatos não são fortes e nem mesmo independentes para poder manter-se em pé de igualdade em processo de negociação coletiva.

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Sobre a autora
Jullie Danielle do Carmo Almeida

Advogada e especialista em Direito e Processo do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Jullie Danielle Carmo. O “neoliberalismo sindical” e a prevalência do econômico sobre o social: a negociação coletiva como instrumento precarizador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3265, 9 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21952. Acesso em: 26 abr. 2024.

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