BREVE HISTÓRICO
O arrolamento de bens promovido pela Receita Federal vem sendo considerado pelas autoridades fazendárias como uma inovação extremamente positiva e que contribui em muito para garantir a liquidação do crédito tributário. Opinião diversa, como seria de se supor, possuem os contribuintes que tiveram ou estão na iminência de terem seus bens arrolados pelo fisco.
O instituto do arrolamento de bens adotado pelo fisco difere daquele contido em nosso Código de Processo Civil, haja vista não se tratar de um procedimento cautelar que, para sucesso, depende de uma decisão judicial. O arrolamento aqui discutido trata-se de um procedimento administrativo que, uma vez efetuado e não cumprindo o contribuinte com as normas preestabelecidas, serve de instrumento para propositura de uma medida cautelar fiscal, esta sim de âmbito processual e disciplinada pela lei nº 8.397/92.
O arrolamento de bens em tela foi instituído pelo artigo 64 da lei federal nº 9.532/97 e teve os seus procedimentos técnico-administrativos estabelecidos pela Instrução Normativa SRF nº 143/98. Consiste basicamente em:
a) sempre que o valor dos créditos tributários de responsabilidade do contribuinte for superior a 30% do seu patrimônio conhecido, deverá a autoridade fiscal proceder ao arrolamento de bens e direitos;
b) o termo de arrolamento será encaminhado aos respectivos órgãos de registro de bens e direitos, para fins de averbação;
c) uma vez efetuado o arrolamento, o contribuinte deverá comunicar ao fisco eventual transferência, alienação ou oneração dos bens e direitos arrolados;
d) o não cumprimento do disposto no item anterior, autoriza o fisco a requerer a medida cautelar fiscal;
e) os órgãos de registro ficam também obrigados a comunicar ao fisco a ocorrência dos eventos descritos no item (c);
Com o arrolamento de bens o fisco passou a ter um importante instrumento de controle dos bens do sujeito passivo, os quais, em última instância poderão vir a ser utilizados para solver a obrigação tributária.
POSIÇÃO CONTRÁRIA AO ARROLAMENTO
Os contrários ao arrolamento administrativo de bens alegam que tal instrumento fere os seguintes princípios constitucionais:
a)devido processo legal (due process of law);
b)ampla defesa e contraditório;
c)direito de propriedade.
A infringência às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório ocorreria quando da existência de processo administrativo em curso, ou mesmo ainda em não havendo a abertura de tal processo, tivesse o contribuinte a possibilidade de dar início a ele com vistas à impugnação do lançamento efetuado pelo fisco.
Entendem os contrários ao arrolamento, que a simples lavratura do auto de infração não é condição suficiente à constituição do crédito tributário, haja vista haver a necessidade de exaurimento da fase de defesa administrativa para que se tenha como certa a presunção de legalidade e veracidade do crédito reclamado pelo fisco. Dessa maneira já acenou o STF, conforme julgado abaixo transcrito:
"Somente a partir da constituição definitiva do crédito tributário é que ele se torna exigível (...) desde que contestado pelo contribuinte, sua constituição definitiva ocorre com a decisão final do processo fiscal. A partir daí, o crédito tributário, que estava suspenso em sua exigibilidade, de acordo com o art. 151, III, do CTN, passa a ser exigível" (STF, 1ª Turma, RE nº 93.871-SP).
Neste diapasão, impor um arrolamento de bens antes de findar todas as possibilidades de defesa do contribuinte seria uma clara desobediência aos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal, que dizem:
"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"
Os detratores do arrolamento fiscal de bens procuram a todo custo fazer crer que há uma clara privação dos bens do contribuinte, sem que tenha havido obediência ao due process of law, ou seja, o contribuinte se vê a mercê de um ato unilateral e arbitrário do fisco, que sequer respeita o seu sacrossanto direito à ampla defesa e contraditório. E mais ainda, ao fazer constar da declaração negativa de débitos (CND) menção relativa ao débito fiscal e ao respectivo arrolamento de bens, estaria o fisco atribuindo ao contribuinte uma indevida roupagem de inadimplente, bem como inviabilizando qualquer tipo de operação comercial ou financeira desejada pelo contribuinte e que tenha por garantia os bens "indevidamente" arrolados pelo fisco, fato este que configuraria uma restrição ao direito de propriedade. Procurando corroborar tal entendimento é extraído o seguinte comentário de Dejalma de Campos:
"As alterações procedidas pela Lei 9.532/97, e mesmo a criação do arrolamento administrativo, tratado em tópico anterior, procuram dar maior eficácia a esse instrumento. Ocorre que a remoção de determinados dispositivos de segurança dos contribuintes previstos na legislação pretérita chegam a colocar em risco o direito de propriedade." (Dejalma de Campos, Direito Processual Tributário, 5ª ed. pg. 74, Ed. Atlas.
Por outro lado, há de se ressaltar que o instituto do arrolamento de bens é de caráter cautelar, ou seja, é uma medida judicial provisória que procura, quando haja fundado receio, evitar danos a um dos litigantes. Dessa forma, não poderia o arrolamento de bens ser transportado do campo processual civil para o campo do direito tributário, pois o que acabou se ultimando foi a existência de uma medida cautelar, o arrolamento de bens, que visa dar ensejo a outra medida cautelar, a fiscal.
NOSSO ENTENDIMENTO
Em que pesem as bem fundamentadas alegações dos contrários ao arrolamento de bens promovido pelo fisco, acreditamos que as mesmas não passam de meros exercícios de retórica, os quais acabam por resultar em um argumento falso formulado com propósito de induzir alguém a erro, ou seja, um verdadeiro sofisma.
Entendemos que o arrolamento de bens não vai de encontro aos princípios do devido processo legal, ao da ampla defesa e do contraditório, nem tampouco ao do direito à propriedade. Hodiernamente o princípio do devido processo legal vem sendo entendido como o direito ao procedimento adequado, procedimento este fundado em dois outros princípios aqui em discussão, o do contraditório e o da ampla defesa.
É cediço que o processo administrativo há de respeitar, em todo o seu curso, as garantias constitucionalmente outorgadas ao cidadão, sob pena de ser considerado como não válido. Ao que se sabe o fisco sempre respeitou tais garantias, tanto assim que em momento algum é negado ao contribuinte o exercício de suas prerrogativas. A bem da verdade o que não se pode é procurar fazer crer que o arrolamento de bens promovido pelo fisco é uma afronta ao devido processo legal, pois se assim fosse há tempos estaria derrogado todo o livro III do nosso Código de Processo Civil, que trata do processo cautelar. É inegável a similaridade de objetivos e efeitos desejados quando da adoção de um procedimento cautelar, quer seja em sede judicial, quer seja administrativamente, e disto não nos podemos olvidar.
O grande argumento dos detratores do arrolamento de bens promovido pelo fisco de que há inobservância dos princípios constitucionais é o fato de que, enquanto não houver a decisão final do processo administrativo o crédito tributário não está constituído e, portanto, não pode o fisco tomar uma medida como o arrolamento de bens.
Ora o que se está aqui a discutir não é a existência de um direito líquido e certo, condicionante de uma medida como o arrolamento de bens. Existem procedimentos que podem ser tomados sem que haja a existência de um título líquido e certo a ser executado, bastando, pois, a existência de interesse e legitimidade do autor além, é claro, da previsão legal. Sob estes dois pêndulos, interesse e legitimidade, agem aqueles que procuram a tutela jurisdicional para a pacificação de conflitos, bem como aqueles outros que buscam as raias da administração pública para resolução de conflitos que envolvam os órgãos do Estado e o particular.
Ocorre que não basta simplesmente ao Estado querer garantir a pacificação de conflitos, há, isto sim, a premente necessidade de o Estado criar mecanismos que garantam a efetiva aplicação do valor eterno, a justiça. É o que nos leciona o eminente Humberto Theodoro Júnior:
"Para consecução do objetivo maior do processo, que é a paz social, por intermédio da manutenção do império da lei, não se pode contentar com a simples outorga à parte do direito de ação. Urge assegurar-lhe, também, e principalmente, o atingimento do fim precípuo do processo, que é a solução "justa" da lide.
Não é suficiente ao ideal de justiça garantir a solução judicial para todos os conflitos; o que é imprescindível é que essa solução seja efetivamente "justa", isto é, apta, útil e eficaz para outorgar à parte a tutela prática a que tem direito, segundo a ordem jurídica vigente." ( Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil-Vol. III, 3ª ed., pg. 1104, Forense).
Nesse enredo criou o legislador a figura das medidas cautelares, dentre elas a do arrolamento de bens previsto nos artigos 855 a 860 do Código de Processo Civil, com o claro objetivo de garantir a plena e justa solução da lide. Neste momento é bom de se lembrar que o procedimento cautelar independe de qualquer decisão definitiva quanto ao bem da vida em questão, vale dizer, não se exige que haja uma decisão final para que o mesmo seja válido, até porque se assim fosse não haveria o porquê da cautela. O que dá luz ao procedimento cautelar é o fundado receio de que não se venha a obter a justa solução do conflito.
Admitindo-se o argumento dos detratores do arrolamento de bens, de que para validade de tal instituto haveria a necessidade de uma decisão final em sede administrativa, seríamos obrigados a admitir que os procedimentos cautelares adotados em sede judicial, muito embora previstos no CPC, seriam também contrários ao devido processo legal, porquanto não teriam, tal qual no processo administrativo, uma decisão final que garantisse a presunção de legalidade e veracidade.
Quanto à alegação de que o arrolamento de bens promovido pelo fisco seria uma violação ao direito de propriedade é falaciosa, pois o que há é apenas uma averbação nos registros competentes sobre a existência do arrolamento promovido pelo fisco. Este fato não impossibilita o contribuinte de usar, gozar ou dispor de seus bens e, portanto, não pode ser considerado como uma limitação ao direito de propriedade. O que se exige é tão somente a comunicação ao fisco quando da alienação, transferência ou oneração dos bens arrolados.
De toda forma, o que devemos considerar é o fato de a questão ser relevante, pois confere ao fisco um novo instrumento a garantir a solvabilidade da obrigação tributária e põe, por outro lado, o contribuinte sob a ameaça de ver seus bens indisponíveis, caso comece a dilapidar o seu patrimônio com o propósito de não honrar seus compromissos. Cabe ressaltar que a questão também é polêmica em nossos tribunais, havendo decisão contrária ao arrolamento de bens, como a proferida pelo Juízo da 3ª Vara Federal de São José dos Campos, que diz:
"Com efeito, a exigência contida no art. 64 da Lei nº 8.532/97, afronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, inseridos no rol dos direitos e garantias fundamentais de nossa Carta Política, posto que extrapola o Poder de Polícia conferido à Administração Fazendária, ao permitir, em última análise, uma garantia antecipada do valor do crédito tributário constituído pelo Fisco unilateralmente, antes de qualquer decisão definitiva, seja na esfera administrativa, seja na judicial.
Afora isto, não se perca de vista que o Estado é um credor privilegiadíssimo, dispondo de um sem número de medidas destinadas a garantir e satisfazer seus créditos, porém sempre por intermédio do Poder Judiciário, o que consiste em inegável garantia aos direitos dos cidadãos, característico de um Estado que se quer Democrático de Direito." (MS nº 1999.61.03.004654-0).
Por fim, consideramos que seria interessante e necessário aprofundar-se nesta questão, pois o que aqui foi exposto consiste apenas em uma visão parcial do assunto.