Sumário: Introdução. 1. A Evolução da Teoria da Empresa: Superação da Teoria Francesa dos Atos de Comércio. 2. A Teoria das Pessoas Jurídicas e sua Classificação. 3. Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios. 4. Desconsideração da Personalidade Jurídica. 5. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Aspectos Jurisprudenciais. Considerações Finais.
Resumo: A doutrina e jurisprudência há muito admitem a desconsideração da personalidade jurídica como mecanismo para coibir o uso abusivo ou fraudulento da autonomia patrimonial. Por outro lado, a possibilidade de aplicar-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, identificada pelo desvio de bens do sócio para a sociedade com fins fraudulentos, não era ainda reconhecida pela jurisprudência. No entanto, em decisão recente, o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação do instituto, recorrendo a uma interpretação teleológica do artigo 50 do CC/2002. A decisão, em sede de Recurso Especial, prevê ainda a excepcionalidade da medida, permitindo-se a sua utilização como forma de coibir a fraude e o abuso de direito.
Palavras-chave: Personalidade Jurídica; Desconsideração Inversa; Empresa.
Introdução
A Constituição Federal de 1988, atenta à necessidade de se promover o desenvolvimento econômico do país por meio da geração de emprego e incentivo ao empreendedorismo, consagrou os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um de seus fundamentos.
Caracteriza-se assim a preocupação do constituinte originário em promover a livre iniciativa, sobretudo seus valores sociais, dirigidos à geração de riquezas e redistribuição de renda.
Nesse contexto, o Código Civil Brasileiro de 2002, prevê a autonomia patrimonial entre os bens da pessoa jurídica e os de seu sócio, como medida protetiva àqueles que buscam por suas próprias forças desenvolver atividade empresarial.
No entanto, há que se levar em consideração que, em algumas situações, a utilização da pessoa jurídica e, consequentemente da autonomia patrimonial, se dirigem a fins fraudulentos.
É diante de tais situações que se mostra necessária a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e também de sua forma invertida, como forma de punição ao mau uso da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.
Foi nesse contexto que o STJ, em decisão recente, admitiu a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, como forma de preservação do instituto da autonomia patrimonial.
1. A Evolução da Teoria da Empresa: Superação da Teoria Francesa dos Atos de Comércio
A atividade fabril e comercial sempre foi fator fundamental para o desenvolvimento das nações. No início, a produção revelava-se extremamente artesanal. Com a Revolução industrial, esse modelo produtivo tornou-se obsoleto. Com o fenômeno da globalização, a produtividade passou a ser um diferencial competitivo para as empresas. [1]
A atuação cada vez mais significativa do capital privado e a intencional ausência do Estado tem sido a característica marcante das economias capitalistas. Nesse contexto, a atividade empresarial privada desempenha um papel fundamental no desenvolvimento econômico e social das nações.
Nesse novo ambiente de negócios marcado pela competitividade e pela falta de regulação estatal, era imperativo que a ciência jurídica fornecesse à empresa contornos jurídicos. A teoria francesa dos atos de comércio se mostrava inadequada aos novos rumos da relações empresariais.
É nesse contexto que nasce a teoria da empresa, que tem como marco inicial o Código Civil Italiano de 1942.
Conforme Coelho (2009), o texto italiano servirá de referência doutrinária porque é acompanhado de uma teoria que substitui à dos atos de comércio, de origem francesa.
O conceito de empresa é construção italiana – sistema da empresarialidade –, ao estabelecer regras próprias não mais àquele que pratica com habitualidade e profissionalidade atos de comercio, mas à atividade definida em lei como empresarial.[3]
O Código Civil Brasileiro de 2002 claramente adota a teoria da empresa. Não obstante a inexistência de definição legal de empresa, o conceito de seu titular, o empresário vem contido no artigo 966:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo Único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza cientifica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Assim, o Brasil segue a tendência mundial de substituição dos atos de comércio pela teoria da empresa.
Sobre o tema, Fábio Ulhoa Coelho anota que:
Mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, pode-se afirmar que o direito brasileiro já vinha adotando fundamentalmente a teoria da empresa. A evolução do nosso direito não ficou dependendo da reforma da codificação. [4]
No mesmo sentido, Waldirio Bulgarelli:
[...] o direito comercial, nos dias que correm, transmudou-se de mero regulador dos comerciantes e dos atos de comércio, passando a atender à atividade sob a forma de empresa, que é o atual fulcro do direito comercial. [5]
2. A Teoria das Pessoas Jurídicas e sua Classificação
A discussão sobre o conceito e natureza das pessoas jurídicas é antiga entre a doutrina. De um estão os adeptos da denominada teoria pré-normativista que tendem a conceber a pessoa jurídica como um ser preexistente e com total independência da ordem jurídica. A doutrina pré-normativista tende a considerar a natureza das pessoas jurídicas como semelhante à dos homens. [6]
De outro lado, a doutrina normativista segundo a qual as pessoas jurídicas são criações jurídicas, fruto de previsão legal. Para Coelho (2009, p. 9):
A pessoa jurídica não preexiste ao direito; é apenas uma idéia, conhecida dos advogados, juizes e demais membros da comunidade jurídica, que auxilia a composição de interesses ou a solução de conflitos. [7]
Pessoa jurídica é pessoa só no universo jurídico. Resulta de uma ficção pragmática necessária que atribui personalidade e regime jurídico próprios a entes coletivos, tendo em vista a persecução de determinados fins.[8]
Também, pode-se afirmar que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações. É de notar que o empresário tem existência natural ou jurídica, isto é, as pessoas jurídicas, embora criadas por lei, têm, para todos os fins, existência, deveres e direitos assemelhados aos da pessoa natural, sendo, como tal, sujeitos de direitos e obrigações. [9]
Tradicionalmente, as pessoas jurídicas são classificadas, fundamentalmente, em dois grupos: as pessoas jurídicas de direito privado e as de direito publico. É o que aduz o Código Civil de 2002:
Art. 40. As pessoas jurídicas são de direito publico, interno ou externo, e de direito privado.
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I – a União;
II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;
III – os Municípios;
IV – as autarquias, inclusive as associações publicas;
V – as demais entidades de caráter publico criadas por lei.
As pessoas jurídicas de direito privado dividem-se em duas principais categorias: as particulares, constituídas apenas por recursos particulares e as estatais, aquelas que, para formação do seu capital, houve contribuição do Poder Publico. [10]
Em linhas gerais, as pessoas jurídicas de direito publico estão sujeitas às disciplinas do direito público, enquanto as pessoas jurídicas de direito privado submetem-se às disciplinas de direito privado.
Na visão de Fábio Ulhoa Coelho, esse é o grande traço diferencial dos dois grupos. Significa dizer que as pessoas jurídicas de direito publico gozam de prerrogativas não titularizadas pelas de direito privado, exatamente porque os interesses daquelas são reputados de maior importância que os desta. [11]
3. Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios
Dada a importância dos empreendimentos empresariais para a economia como fonte geradora de riquezas, sobretudo tributos e empregos, a legislação põe a salvo os bens particulares dos sócios, por dívidas da sociedade, prevendo sua responsabilidade subsidiária. É nesse sentido a disposição expressa do CC/2002:
Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
Para Coelho (2009, p. 28), pode-se, dessa forma, afirmar que, em razão do instituto da personalização a responsabilidade dos sócios da sociedade empresária é subsidiária, quer dizer, enquanto não esgotado o patrimônio social, não se pode atingir os bens do sócio para a satisfação de dívidas da sociedade.
Essa sistemática de responsabilização funda-se na necessidade de proteção ao patrimônio particular do sócio, sob pena de grave desestimulo à abertura de novos empreendimentos
Nesse sentido é a visão de Fábio Ulhoa Coelho:
Se todo o patrimônio particular dos sócios pudesse ser comprometido, em razão do insucesso da sociedade empresária, naturalmente os empreendedores adotariam posturas de cautela, e o resultante poderia ser a redução de novas empresas, especialmente as mais arriscadas. [12]
4. Desconsideração da Personalidade Jurídica
Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado. É nesse contexto, que a Constituição Federal de 1988 dirige especial proteção à atividade produtiva:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
No entanto, há de se registrar que tal proteção dirigida à livre iniciativa, diga-se, às empresas, deve ser conjugada com os interesses maiores dos trabalhadores e da sociedade como um todo. Nesse sentido é o entendimento emanado pela nossa Corte Suprema:
"É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus arts. 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar a formação dos estudantes." (ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006.) No mesmo sentido: ADI 3.512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006. [13]
Dessa forma, é atribuída à empresa papel fundamental no desenvolvimento social e econômico do país. A atuação dos agentes responsáveis pela empresa deve ser pautado pela responsabilidade social e probidade na direção dos negócios.
É nesse sentido o disposto na lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976, ao definir os deveres e responsabilidades dos administradores das Companhias:
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.
Apesar da existência de dispositivos legais que coíbem a utilização da empresa para fins nocivos aos interesses sociais, não é raro sua utilização como instrumento para encobrir fraudes nas suas mais diversas modalidades.
Nesse sentido é a lição de Carvalhosa e Latorraca:
A empresa é a racionalização dos fatores econômicos, tecnológicos e humanos da produção, instituída sob a forma de pessoa jurídica. Tem a empresa uma obvia função social, nela sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.[14]
A utilização indevida da pessoa jurídica atinge negativamente os interesses da sociedade e de terceiros que com a empresa mantenham relações comerciais.
Elucidativa é a lição de Ricardo Negrão:
A concessão de personalidade jurídica, tendo em vista seus efeitos, leva, muitas vezes, a determinados abusos por parte de seus sócios, atingindo direitos de credores e de terceiros. Nesse caso, vem-se admitindo o superamento da personalidade jurídica com o fim exclusivo de atingir o patrimônio dos sócios envolvidos na administração da sociedade. [15]
A teoria da desconsideração ou superamento da personalidade jurídica tem como embasamento legal disposição contida no CC/2002:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Dessa forma, possibilita-se a imposição da desconsideração da personalidade jurídica sempre que os sócios das empresas atuem com desvio de finalidade e permitam a confusão patrimonial.
Mais uma vez, leciona Negrão:
Por abuso da personalidade jurídica entende-se, objetivamente, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, que se podem materializar por uma infinidade de formas fraudatórias e que causam prejuízo aos credores. [16]
Nesse sentido, importante esclarecimento sobre a extensão da desconsideração da personalidade jurídica é fornecida por Coelho:
O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros. [17]
Também, esclareça-se que o princípio a ser respeitado como regra geral é o da autonomia patrimonial, não se confundindo os bens da sociedade com os bens do sócio.
Deve-se atentar no sentido de que, necessariamente, a desconsideração deve ter natureza excepcional, episódica, não servindo ao questionamento da subjetividade própria da sociedade. [17]
Na mesma linha, ao comentar sobre a desconsideração da personalidade jurídica, Fazzio afirma que esta consiste em colocar de lado, episodicamente, a autonomia patrimonial da sociedade, possibilitando a responsabilização direta e ilimitada do sócio por obrigação que, em principio, é da sociedade. Afasta-se a ficção para que aflore a realidade. [18]
5. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Aspectos Jurisprudenciais
Se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem recebido crescente atenção por parte da doutrina jurídica, sobretudo a empresarial, ainda são raros os estudos sobre a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica.
A transferência de bens do sócio para a pessoa jurídica com o objetivo de fraudar interesses de terceiros, acobertando fraudes sob o manto da autonomia patrimonial é uma realidade que não pode ser desconsiderada pela doutrina e jurisprudência.
Nesse sentido é a lição de Fábio Ulhoa Coelho:
A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em principio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. [19]
Em relação à jurisprudência, só recentemente nossos tribunais têm enfrentado a questão da possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, delineando as hipóteses e abrangência de sua incidência.
Em decisão recente, ao analisar um Recurso Especial, o STJ enfrentou a questão da possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO
DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.
[...]
III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.
IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.
V – A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, “levantar o véu” da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.
VI – À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.
VII – Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.
Recurso especial não provido. [20]
Sinteticamente, a questão suscitada no Recurso Especial restringia-se à verificação da possibilidade de a regra contida no art. 50 do CC/2002 autorizar a aplicação do instituto da desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Da análise da Ementa, verifica-se o acolhimento da tese que possibilita a aplicação, ainda que de forma excepcional, da desconsideração inversa da personalidade jurídica, baseada em uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/2002.
Na decisão supracitada, a relatora, Ministra Nancy Andrighi ponderou que a mesma razão que acolhe a desconsideração da personalidade jurídica, também fundamenta a desconsideração inversa, qual seja, impedir a indevida utilização da personalidade jurídica pelos sócios. Destaque-se ainda, as seguintes razões:
De início, impende ressaltar que a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio. Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal. A interpretação literal do art. 50 do CC/02, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade e não o inverso, não deve prevalecer. Há de se realizar uma exegese teleológica, finalística desse dispositivo, perquirindo os reais objetivos vislumbrados pelo legislador. Assim procedendo, verifica-se que a finalidade maior da disregard doctrine , contida no referido preceito legal, é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. A utilização indevida da personalidade jurídica da empresa pode, outrossim, compreender tanto a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, quanto no caso de ele esvaziar o seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integralizar na pessoa jurídica, ou seja, transferir seus bens ao ente societário, de modo a ocultá-los de terceiros.
Ainda, em seu voto, a eminente Ministra esclarece que ao juiz cabe agir com especial cautela quando da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, sobretudo em sua forma inversa. Tal cuidado deve-se ao fato de que a autonomia patrimonial entre o ente societário e a pessoa de seus sócios é importante fator de estimulo à criação de novos empreendimentos.