SUMÁRIO: 1. Princípio da Legalidade. 2. Dever de anular atos ilegais. 3. Direito de petição: provocação da Administração para anular atos ilegais. 4. Limites do direito de petição: não se destina a obter revisão de mérito. 5. Conclusão. Referências.
RESUMO: O artigo em tela tem como principal desígnio demonstrar que a invalidação de atos administrativos possui relação estrita com o princípio da legalidade, daí a necessidade de classificá-la como dever da Administração Pública. A figura do pedido de invalidação decorre do direito de petição, instrumento consagrado pela Constituição de 1988, assegurado a todos os cidadãos com fim último de defesa de direitos em face de ilegalidade ou abuso de poder. Por esta razão é que o pedido de invalidação deve ter por escopo demonstrar, exclusivamente, a ocorrência de vício de legalidade no ato administrativo.
PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública. Invalidação. Controle de Legalidade.
I. Princípio da Legalidade
Um dos princípios de grande relevância para o direito administrativo, em razão da indisponibilidade do interesse público para a Administração Pública[1], é o princípio da legalidade, o qual se fez presente desde a consolidação do modelo de Estado liberal, que surge alicerçado nas doutrinas de Thomas Hobbes, John Locke e Montesquieu.
Frise-se que a legalidade está diretamente ligada à legitimidade da ação estatal, quer dizer, a Administração pública depende do ordenamento jurídico para atuar de forma legítima por meio de seus atos administrativos, a fim de que sejam assegurados, em última instância, aos governados seus respectivos direitos fundamentais.
Na mesma linha:
[...] a referência à legalidade deve ser entendida prevalentemente como parâmetro da legitimidade, sendo claro que esta, ao revés daquela, não se esgota no juízo de não contradição com o sentido do texto legal, adquirindo conteúdo sobremaneira rico e variado na medida em que, por ter raiz constitucional, pauta-se no senso de conformidade com todo o sistema jurídico, neste incluídos os princípios expressos e implícitos que o informam como calibradores de sua eficácia no contexto histórico.[2]
Com relação à estrita submissão da Administração à legalidade, reputa-se importante tecer breves comentários. Note-se, desse modo, que o princípio da legalidade, indispensável ao Estado de Direito está intimamente relacionado à noção de interesse público primário. Além disso, vale mencionar, que o estabelecimento do Estado de direito teve a pretensão de limitar o poder do Estado com vistas a proteger os cidadãos, o que se traduz na versão da legalidade aos administrados, preconizada pelo art. 5, inciso II da Constituição “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.”
Sob esse prisma, o princípio da legalidade não deve ser compreendido como “um atendimento míope e limitadamente formal da norma escrita”[3]. Busca-se, assim, uma visão panorâmica do ordenamento jurídico e não circunscrita apenas a um de seus elementos: a lei, conforme lecionam os positivistas. Dessa forma, “legal é a conduta cujo fundamento é extraído do ordenamento jurídico”[4], e não unicamente da norma escrita.
Como ressaltou Cármen Lúcia Antunes Rocha:
[...] não se bastou o Estado de Lei, ou Estado de Legalidade. Fez-se um Estado de Direito, num alcance muito maior do que num primeiro momento se vislumbrava no conteúdo do princípio da legalidade, donde maior justeza de sua nomeação como ‘princípio da juridicidade’.’[5]
Com isso, não se pretende fazer menoscabo da lei, mas valorizar a ideia de que o Direito é mais do que norma posta. Assim, a legalidade deve ser observada concomitantemente aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Em seu art. 37[6], a Constituição Brasileira preceitua que a Administração Pública se submete ao princípio da legalidade, o qual compreende, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes[7], o postulado da supremacia da lei, no sentido de que a administração está vinculada ao Direito, daí ser inválido o ato administrativo que estiver em oposição ao ordenamento jurídico.
Nessa toada, vale mencionar o que leciona Fábio Medina Osório a esse respeito:
É comum dizer que toda a atividade do Estado, particularmente a Administração Pública, está vinculada ao princípio da legalidade, que significa uma exigência prévia de habilitação legal para justificar os atos e inclusive as omissões legítimas das mais diversas entidades estatais.[8]
Desta feita, se os atos da Administração decorrem de previsão legal, aqueles que forem contrários ao Direito, integram a categoria de atos que merecem ser extintos, nesse caso, através do instituto da invalidação, tendo em vista a existência de ilegalidade.
Nessa linha, cabe ressaltar o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho acerca da invalidação: a “anulação (ou invalidação) é a forma de desfazimento do ato administrativo em virtude de estar inquinado de vício de legalidade.”[9]
Ainda sobre a invalidação, os dizeres de Miguel Reale:
Um ato de tutela jurídica, de defesa da ordem legal constituída, ou, por outras palavras, um ato que sob certo prisma pode ser considerado negativo, visto não ter o efeito de produzir consequências novas na órbita administrativa, mas antes a de reinstaurar o statu quo ante.[10]
É importante que a Administração evite o cometimento de ilegalidades, antes de centrar-se em suas correções, porém, desde que, por descuido, aquelas existam e sejam percebidas pela Administração é imprescindível que haja mobilização direcionada a restaurar a situação de regularidade[11].
II.Dever de anular atos ilegais
No regime jurídico-administrativo contemporâneo, a Administração tem o dever de anular os atos que contrariem a legalidade, o que pode ocorrer de ofício ou em face de provocação, embora não haja unanimidade a esse respeito na doutrina pátria, uma vez que há quem prefira falar em faculdade tendo em vista o foco no interesse público, em detrimento da legalidade.
Consoante já ressalvado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro[12], a Administração tem o dever de anular atos ilegais em função do princípio da legalidade, contudo, poderá deixar de fazê-lo em casos concretos, nos quais os prejuízos gerados pela anulação sejam maiores do que aqueles que resultam da manutenção do ato ilegal.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello[13] existem algumas limitações ao dever de invalidar da Administração Pública: decurso do tempo e consolidação dos efeitos produzidos. O primeiro, relacionado ao princípio da segurança jurídica, traz estabilidade a situações fáticas que se tornam jurídicas com o transcurso do tempo, enquanto o segundo exprime a ideia de que os ônus decorrentes da invalidação do ato e aqueles decorrentes da manutenção sejam ponderados com vistas a atender o interesse público.
O fundamento do dever da Administração de anular seus atos ilegais se encontra em sua estrita submissão à legalidade, o que, está estabelecido constitucionalmente no supracitado art. 37, caput e no art. 2°da Lei de Processo Administrativo n.° 9.784 de 29 de janeiro de 1999[14].
No âmbito infraconstitucional, o artigo 53 da Lei n.° 9.784/1999, dispõe que “a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade [...].” (grifei)
Na mesma linha, a Súmula n.° 473 elaborada pelo Supremo Tribunal Federal prenuncia que: "a Administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los por motivos de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."
Com vistas, portanto, à restauração da legalidade dos atos administrativos é que a Administração, em virtude de seu poder de autotutela[15], tem o dever, e não a faculdade de anular atos ilegais. De acordo com Fernando Gustavo Knoerr e Cibele Fernandes Dias Knoerr, “o poder de autotutela constitui-se num corolário do princípio da legalidade, pois permite à Administração invalidar atos ilegais por ela emitidos.”[16]
No entanto, vale ressaltar que a invalidação não é a única solução para atos administrativos ilegais, há também o instituto da convalidação[17] preceituado no art. 55[18] da Lei n.° 9.784/1999, que se aplica quando existe a possibilidade de repraticar o ato de modo a sanar eventual desconformidade preservando seus efeitos. Em geral, a convalidação se aplica aos atos que apresentam vício de competência ou formalidade.
Entretanto, havendo impugnação do particular, em tese, se esvai a possibilidade de convalidação, exceto, de acordo com Weida Zancaner[19], em caso de vício de formalidade uma vez que estes seriam sempre convalidáveis.
Sendo o vício insanável, haverá que se recorrer à invalidação do ato administrativo, dado que este caminho não é uma faculdade da Administração, tal como é a convalidação, mas um dever que precisa ser cumprido, levando em consideração a supremacia do interesse público.
Com a finalidade de melhor compreender o instituto da invalidação adotou-se como ponto de partida a teoria das nulidades dos atos da Administração Pública. A teoria das nulidades[20] está relacionada aos planos de existência, validade e eficácia dos atos administrativos, de sorte que aqueles que não respeitarem os requisitos de validade, os quais abrangem competência, finalidade, forma, motivo e objeto ou, de forma geral, consonância com o ordenamento jurídico, em regra, não estarão aptos a produzir efeitos no plano da eficácia.
Ainda, no que tange à teoria das nulidades os doutrinadores se dividem em duas correntes: a monista e a dualista[21]. A primeira corrente enuncia que não é viável que o Direito Público absorva a dicotomia de nulidades do Direito Civil, portanto atos administrativos apenas podem ser considerados nulos (inválidos). Já a segunda, apresenta ponto de vista oposto, enfatizando que um ato administrativo será nulo ou anulável a depender da gravidade do vício. Assim, o ato nulo deverá ser inválido e o anulável convalidado.
Posteriormente à publicação do ato administrativo, este goza de presunção de legitimidade e, enquanto não for constatado vício de legalidade, o ato existe no mundo jurídico até que se proceda à sua invalidação.
Nesse aspecto, saliente-se o ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho:
O pressuposto da invalidação é exatamente a presença de vício de legalidade. Como já examinamos, o ato administrativo precisa observar seus requisitos de validade para que possa produzir normalmente os seus efeitos. Sem eles, o ato não poderá ter a eficácia desejada pelo administrador. Por isso é que para se processar a invalidação do ato é imprescindível que esteja ausente um desses requisitos. A presença destes torna o ato válido e idôneo à produção de efeitos, não havendo necessidade do seu desfazimento.[22]
No que tange aos efeitos da invalidação, há produção de efeitos ‘ex tunc’, isto é, o instituto tem o propósito de eliminar os efeitos produzidos pelo ato administrativo inválido até então, retroagindo, portanto, à origem do ato.
Ressalte-se a necessidade da ocorrência entre a constatação do vício de legalidade e a invalidação de um processo administrativo invalidador[23], o qual permita a participação dos administrados, em observância ao princípio constitucional do devido processo legal, e também ao contraditório e ampla defesa, consoante insculpido na Lei Fundamental, art. 5°, incisos LIV e LV.
Nesse sentido, veja-se julgado do egrégio Supremo Tribunal de Justiça:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO DE SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE PENSÃO DE VIÚVAS DE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PIAUÍ E PENSÃO PAGA PELO IAPEP. IMPOSSIBILIDADE. INVALIDAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO DEPENDENTE DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PRÉVIO. GARANTIA DE AMPLA DEFESA. POSSIBILIDADE DE ESCOLHA PELAS VIÚVAS DA PENSÃO A SER RECEBIDA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REPERCUSSÃO GERAL. SOBRESTAMENTO DO FEITO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. 1. É impossível a acumulação de pensão paga pelo Estado do Piauí a viúvas de membros do Ministério Público Estadual com a pensão paga pelo IAPEP. Precedentes da Corte. 2. Tratando-se de invalidação de ato administrativo que deferiu a acumulação de pensões, é mister a observância de prévio procedimento administrativo, em respeito ao art. 5º, LV, CR/88, garantindo a ampla defesa e o contraditório. 3. O fato de a matéria ter sido reconhecida como de repercussão geral perante o Supremo Tribunal Federal não impede o julgamento do recurso especial, apenas assegura o sobrestamento do recurso extraordinário interposto. Precedentes do STJ. 4. Embargos de declaração rejeitados.[24]
Dessa forma, a invalidação do ato administrativo, quando há possibilidade de prejudicar terceiros, implica dar oportunidade de manifestação ao administrado, em atenção aos princípios constitucionais supracitados.
III.Direito de petição: provocação da Administração para anular atos ilegais
Consoante já mencionado, atos administrativos podem ser invalidados pela Administração (controle interno), mas também pelo Poder Judiciário (controle externo). No primeiro caso, independente de provocação, uma vez que a Administração pode declarar, de ofício, a invalidade do ato, contudo, o funcionamento da máquina judiciária está vinculado à provocação do administrado.
Como instrumento que viabiliza a provocação da Administração para exercer a tarefa purgativa de atos ilegais, previu-se na Constituição Federal de 1988, artigo 5°, XXXIV, “a”, “o direito de petição [...] contra ilegalidade ou abuso de poder”.
Essencialmente, o direito de petição garante a qualquer pessoa a oportunidade de manifestar-se diante da violação de seus direitos, em decorrência de ilegalidade, por exemplo, produção de ato inválido ou abuso de poder.
Assim é que, a qualquer momento, e mesmo após o fim do prazo para apresentação de recurso no âmbito de processo administrativo já instaurado, abre-se a possibilidade para a provocação da Administração, através de petição, instrumento que permite ao administrado solicitar a análise de eventual ilegalidade no ato praticado, o que, em regra, é feito por meio de pedido de invalidação.
IV.Limites do direito de petição
No entanto, deve-se ter presente que o pedido de invalidação tem uma finalidade bastante específica: apontar ilegalidade no ato que fora praticado. Desde que seja outro o motivo da extinção do ato, se pode falar, nos casos de oportunidade e conveniência que se atém a questões de mérito, em revogação dos atos administrativos.
Cumpre, por oportuno, ressalvar o que afirma nesse sentido Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] parece-nos que os termos “invalidade” – antítese de validade – e “invalidação” reportam-se a defeito jurídico e não a problema de inconveniência, de mérito, do ato. Um ato ajustado aos termos legais é válido perante o Direito, ainda que seja considerado inconveniente por quem pretende suprimi-lo. Não se deve, pois, chamar de invalidação à retirada por motivo de mérito.[25]
Observa-se, então, que o pedido de invalidação é mais estreito que o recurso. No recurso, é possível impugnar-se qualquer elemento da decisão recorrida, seja questão de legalidade, seja questão de mérito (comprovação de fatos, valoração de provas, avaliação de juízos, etc.). No pedido de invalidação, a sua vez, cabe apenas ventilar questão de legalidade, ou seja, afronta direta ao ordenamento jurídico, o que vai ao encontro da definição feita por Celso Antônio Bandeira de Mello referente à invalidação “a supressão de um ato administrativo ou da relação jurídica dele nascida, por haverem sido produzidos em desconformidade com a ordem jurídica.”[26]
Uma forma eficaz de se controlar a admissibilidade desses pedidos de invalidação é exigir-se a indicação do dispositivo normativo que se reputa violado pelo ato administrativo, a exemplo da atividade que é realizada pelo Poder Judiciário no controle de admissibilidade dos recursos extraordinários (STF, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, AI-ED 623.562/SC, DJ em 29.02.2008) e especial (STJ, Sexta Turma, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ em 19.12.2008).
Assim, discussões relacionadas à reapreciação de fatos, revaloração de provas ou mero inconformismo não são hábeis a conduzir ao conhecimento pela Administração de pedido de invalidação, visto que fogem ao seu propósito.
Para além dessa limitação, deve-se pontuar que também não cabe a apresentação de pedido de invalidação com a finalidade de se rediscutirem questões de legalidade já discutidas ao longo de um determinado processo administrativo. Nesse particular, a interpretação sobre a questão de legalidade já foi fixada pela Administração e não mais poderá ser alterada para o caso concreto.
CONCLUSÃO
Procurou-se neste artigo demonstrar que o instituto da invalidação está atrelado à legalidade, a qual abarca a indisponibilidade do interesse público, remete à atuação conforme ao ordenamento jurídico, que compreende mais do que a lei positivada, e garante, em última análise, legitimidade à ação estatal.
Ademais, invalidar atos administrativos inquinados de vício de legalidade é dever da Administração, em vista de seu poder de autotutela e da própria submissão ao princípio da legalidade prevista constitucionalmente, porém, sempre em observância a outros princípios constitucionais como devido processo legal, ampla defesa e contraditório.
Por fim, o controle interno realizado pela Administração através da anulação ou invalidação funciona, tão somente, como controle de legalidade, o qual pode iniciar-se de ofício ou por provocação. O pedido de invalidação é cabível, a qualquer tempo, com fim último de defesa de direitos dos administrados, em casos de abuso de poder ou ilegalidade, o que corroborado pela Constituição de 1988 a partir do direito de petição.
Portanto, o pedido de invalidação não deve servir como artifício para que determinadas discussões se perpetuem no âmbito da Administração Pública. É, sim, instrumento destinado a trazer à tona questão de legalidade ainda não debatida.