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A legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira

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V. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLITIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Parafraseando Barroso (2010), o direito não transforma metal em ouro, a alquimia não é um atributo do direito. Tivesse o direito tal poder, tautologicamente, estaríamos imunes as mazelas sociais, a arbitrariedade, a imoralidade pública e privada, ao desrespeito a direitos fundamentais, enfim, viveríamos em plenitude o grande escopo do direito e do estado: a paz social.

Essa pequena e lúdica afirmação serve para dizer que, embora o Direito não tenha dotes tão sofisticados, a Constituição tem poder suficiente para transformar o não-jurídico em jurídico. Tem poder para trazer para o campo da discussão jurídica algo que lhe era estranho. E é nessa esteira que a Constituição transforma a política em Direito.

Nesse sentido, assevera Ney de Barros Bello Filho:

Importante observar que todas as normas constitucionais possuem natureza política. O que caracteriza uma Constituição, muito além de sua gênese formal, é a sua natureza política, e a sua posição como decisão fundamental de um povo. Assim, todas as normas constitucionais fatalmente possuem uma natureza política que lhes é peculiar, muito embora não se trate de um espaço inteiramente político. Não se trata de um espaço puramente político, porque o direito constitucional é o momento do confronto entre o jurídico e o político, mas há uma tonalidade, uma intensidade política superior ao matiz jurídico. Por essa razão, o momento constitucional não é integralmente imune a conteúdo político, ao revés, representa uma verdadeira interpolação de dois conceitos, criando um terceiro, que se denomina sistema constitucional.[18]

Por esta senda, Luís Roberto Barroso vislumbra como fenômeno natural a judicialização das questões de viés político:

Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.[19]

Por esta mesma senda, malgrado esboce o seu temor a postura ativista, Lenio Streck assim compreende o papel do poder judiciário:

Em face do quadro que se apresenta – ausência de cumprimento da Constituição, mediante a omissão dos poderes públicos, que não realizam as devidas políticas públicas determinadas pelo pacto constituinte – a via judiciária se apresente como a via possível para a realização dos direitos que estão previstos nas leis e na Constituição. Assim, naquilo que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle de constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso judicial ou a ineficácia de diretos individuais e sociais. Dito de outro modo, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade.[20]

É de se concluir, portanto, que a partir dessa metamorfose, isto é, da transmutação do que era alheio ao Direito para a esfera do jurídico, encontra-se o canal que leva o Judiciário a se pronunciar sobre aspectos políticos[21] da realidade.

A sonhada separação estanque entre política e Direito disseminada pelo positivismo-formalista há muito não prospera, mormente diante do advento do movimento neoconstitucionalista que permitiu a penetração do Direito pela moral, abrindo a discussão jurídica ao intercâmbio com outros campos do saber: a filosofia, a sociologia, a ética e a política.  Nessa toada, o diálogo jurídico torna-se mais complexo, pois uma demanda jurídica dificilmente (ou jamais) será uma questão puramente jurídica, ante a profusão de elementos metajurídicos que interpenetram o Direito.

Assim, quando o Judiciário se pronuncia sobre determinada questão, inevitavelmente, estará fazendo um juízo político.

Na mesma linha, Daniel Sarmento enfatiza o novo espaço ocupado pela Jurisdição Constitucional no ambiente neoconstitucionalista:

Neste contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário. Com freqüência cada vez maior, questões polêmicas e relevantes para a sociedade passaram a ser decididas por magistrados, e sobretudo por cortes constitucionais, muitas vezes em razão de ações propostas pelo grupo político ou social que fora perdedor na arena legislativa. De poder quase "nulo", mera "boca que pronuncia as palavras da lei", como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo.[22]

A judicialização, portanto, entendida como a atribuição conferida ao Judiciário de dar a última palavra sobre questões morais, políticas e sociais, dantes de competência exclusiva dos poderes majoritários, não é fruto de uma postura (ativismo judicial) expansionista do Judiciário, mas, sim, resultado do processo de constitucionalização do Direito engendrado pela CRFB/88.

Sobre a politização do Judiciário, necessário salientar que a queda do positivismo- formalista tradicional, que implicava um modo de interpretar/aplicar o Direito com base no modelo de subsunção, ou seja, para cada crise jurídica o Direito teria uma resposta pré-concebida, proporcionou, como dito anteriormente, a entrada no debate jurídico de elementos até então estranhos ao Direito. Esse movimento de ingresso no diálogo jurídico de elementos valorativos significou a atribuição de força normativa aos princípios. E a partir do momento em que se traz para a esfera do jurídico princípios de alta carga axiológica, abre-se espaço para a discussão de ordem moral, em que pese os riscos que isso pode acarretar em um país com uma cultura mambembe de cumprimento das regras.

A partir do momento em que se torna consenso dentro da Teoria do Direito que a norma jurídica não oferece a única resposta correta, e que a operação mecânica do intérprete de encaixar uma crise jurídica dentro da hipótese de solução pré-pronta pela norma não condiz mais com a abertura valorativa do Direito, entra em cena o papel criativo do juiz.

É desse papel de criação do juiz que se retira a politização do Judiciário, pois interpretar não é mais um ato mecânico de ajuste entre o texto legal ao evento da vida, e sim, um ato complexo que envolve diversificadas variantes, tais como a formação moral, ideológica e social do juiz, já que agora o Direito está impregnado desses elementos. E aí o campo se torna fértil para as cosmovisões do juiz. Embora esta seja uma crítica enfrentada pela Teoria da Argumentação, ainda que extrapolando o tímido propósito do presente trabalho, vale a pena salientar que o direito se abriu ao diálogo moral com a comunidade e não com o intérprete individual. Na interpretação adequada constitucionalmente o juiz deve suspender a sua convicção moral e ideológica em favor do sentimento constitucional da comunidade política a que está inserido. Faz-se mister salientar, todavia, que isto não lhe retira o poder de criação diante da norma.

Inobstante a criatividade do juiz que abriu espaço para uma argumentação politizada acerca da seara jurídica, pode-se dizer que o Judiciário é, em si mesmo, um poder político, senão veja-se:

Em princípio, os poderes judiciários não podem deixar de estarem “politizados” no sentido de que cumprem funções políticas. Admitindo-se a separação de poderes no nível especulativo ou, se se preferir, falando-se apenas de separação de funções em razão de que o poder estatal deva ser único, o certo é que sempre que se fala do judiciário se está mentalizando um ramo do governo, e até etimologicamente seria absurdo pretender que haja um ramo do governo (que não pode senão exercer um poder público, estatal) que não seja político no sentido de “governo da polis”. Não se concebe um ramo do governo que não seja político, justamente porque seja governo. O sistema de checks and balances entre os poderes — ou funções, se se preferir — nada mais é do que uma distribuição do poder político. Cada sentença é um serviço que se presta aos cidadãos, mas também é um ato de poder e, portanto, um ato de governo, que cumpre a importante função de prover a paz interior mediante a decisão judicial dos conflitos. A participação judicial no governo não é um acidente, mas é da essência da função judiciária: falar de um poder do Estado que não seja político é um contra-senso. Por conseguinte, não seria possível “despolitizar” o judiciário no sentido amplo da função essencialmente política que ele cumpre.[23]

À título de definição, se a constitucionalização torna o que é político em Direito, levando ao Judiciário questões morais, religiosas, políticas e sociais, movimento este que se convencionou chamar de judicialização da política, na mesma toada, a interpretação de um Direito impregnado de forte carga política, passa, inevitavelmente, por uma análise também política, e isso é o que se denomina de politização do Judiciário.

Por fim, fica fácil deduzir que além da judicialização e da politização serem movimentos de implicação recíproca, ambos nasceram da ruptura com o modelo positivista clássico que traçava uma linha divisória estanque entre o domínio da política e o domínio do Direito, reafirmando idealisticamente a idéia de um Direito puro e de um intérprete neutro. Todavia, tendo como marco histórico as barbáries cometidas na Segunda Grande Guerra em nome da aplicação do Direito posto, nasce o paradigma pós-positivista que traz para o campo do Direito o debate de cunho moral através da normatização de princípios de alta carga valorativa, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, o Estado Democrático de Direito e a igualdade.

Portanto, para concluir, necessário se faz dizer que judicialização e politização não significam necessariamente a adoção de uma postura proativa do juiz nas questões que lhe são levadas a conhecimento, posição esta que ganhou a alcunha de ativismo judicial, mas um fenômeno natural ocorrido nas democracias ocidentais que receberam influência do paradigma pós-positivista. Quer-se advertir com isso que as decisões de caráterpolítico-fundamental tomadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos não diz respeito a uma postura ativista da Corte, antes, porém, decorrência de um sistema arquitetado constitucionalmente. É bom que se afirme, todavia, que a Excelsa Corte é acometida de rompantes de ativismo, conforme se verá no próximo tópico, mas essa não é sua pauta de atuação.


VI. ATIVISMO JUDICIAL

Ativismo Judicial, lançando mão da definição de Barroso (2010), é entendido como uma postura, uma posição, uma maneira de o Judiciário interpretar e aplicar o Direito, expandindo ao máximo a incidência de preceitos constitucionais, ainda que não expressos claramente. O problema é que, através dessa expansão dos preceitos constitucionais que não estejam expressos claramente somado a uma fundamentação débil em princípios constitucionais, o julgador acaba por deixar vazar mais o seu sentimento pessoal acerca do comando normativo do que a disposição do texto constitucional. Mas o ativismo é mais do que isso. O ativismo judicial é a encampação/penetração eventual pelo Judiciário no domínio de decisão dos poderes eleitos pelo voto popular.

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Frise-se que o ativismo judicial por ser uma postura não se confunde com a judicialização, que tem respaldo não em uma atitude proativa, mas numa opção do sistema constitucional vigente. Assim é bom salientar que a significativa participação do Supremo Tribunal Federal em questões de forte apelo popular nos últimos anos (v. todos os casos elencados na nota de rodapé nº 08) não é resultado de uma postura da Excelsa Corte, mas do sistema judicializante da CFRB/88.

Segundo Barroso (2010), o ativismo judicial encontra terreno fértil em situações em que há um encolhimento, um acanhamento, uma contração, dos órgãos de representatividade popular em efetivar as atribuições que lhes foram conferidas pelo texto constitucional, deixando aberto um espaço a ser preenchido, no caso, pelo Judiciário.

Inquestionavelmente que a prática do ativismo, dentro de um ambiente institucional em pleno funcionamento, promove o esvaziamento de sentido do poder popular, o que nunca se justificará num Estado Democrático de Direito, até porque, lançando mão da expressão cunhada por Sarmento (2009), a ditadura de toga não é melhor que a ditadura de farda.

Acontece que, na atual quadra histórica brasileira, enxerga-se um Legislativo refém das demandas imediatistas do Executivo por Medidas Provisórias, o que o leva a abandonar suas prerrogativas mais comezinhas, em detrimento da efetivação de direitos da coletividade que se encontra à mercê da inércia de seus representantes. É preciso dizer mais. É preciso dizer que não é só pela subserviência ao Executivo que o Legislativo não cumpre suas atribuições, também é pela acomodação voluntária em não colocar em pauta assuntos que são caracterizados pelo “desacordo moral razoável” dentro da sociedade. E não é só isso. Não legislam também por atender mais aos anseios do Poder Público do que ao interesse público primário[24]. Veja-se o exemplo da ausência de lei que regulasse a greve dos servidores públicos, aqui, não havia sequer desacordo moral razoável, mas o Congresso se manteve inerte. O Supremo, nesse caso, depois de muitos anos adotando postura tradicional de autocontenção judicial[25], resolveu adotar a teoria concretista geral e garantiu a aplicação da lei de greve dos trabalhadores da iniciativa privada para o serviço público.

Na linha do que alertou Barroso (2010), há que se advertir que a prática do ativismo judicial é de uso tópico e ocasional, nunca podendo ser utilizada de maneira contínua e irrestritamente. A postura proativa do Judiciário, além de ser eventual, deve se restringir a proteger dois valores constitucionais: a efetivação de direitos fundamentais e proteção do regime democrático. Fora disso, seu uso é pernicioso e enfraquece a democracia. 

Contudo, na ilustração de Barroso (2010), além do caso da greve de servidores públicos, há exemplos de posturas ativistas do Supremo Tribunal Federal no contexto atual, tais como: a questão da perda de mandato por infidelidade partidária foi uma interpretação expansiva do texto constitucional, pois não havia disposição expressa para tanto; a questão da proibição do nepotismo extensivo aos Poderes Legislativo e Executivo; a declaração de inconstitucionalidade de novas regras eleitorais que seriam aplicadas a menos de um ano de sua aprovação; bem como o reconhecimento de união estável entre casais homoafetivos.

Ocorre que, embora nos casos acima mencionados se tratasse de uma aplicação expansiva da constituição em que o Supremo não rompera teleologicamente com o que se ousou chamar de “sentimento constitucional” da comunidade, os problemas oriundos da prática do ativismo judicial são intermináveis. O maior deles diz respeito a vulnerabilidade da comunidade que fica à mercê de uma decisão que sobrevalora a visão individual do “justo”, diante de uma argumentação jurídica vacilante, em detrimento do imperativo constitucional construído por consenso democrático.

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Sobre os autores
Allender Barreto Lima da Silva

Advogado, pós-graduado em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Allender Barreto Lima ; BRAGA, Marina Lisboa. A legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3294, 8 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22156. Acesso em: 18 abr. 2024.

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