1. Introdução
Os direitos das personalidades estão consagrados no Capítulo II do Código Civil pátrio como o conjunto de direitos inerentes à pessoa humana e que estão a ela ligados de modo permanente e sem os quais ela não existiria, razão pela qual são inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis.
Assim, é o caso do direito à vida, à liberdade física e intelectual, ao corpo, a imagem e ao que o indivíduo entende por honra[1]. A proteção destes direitos supera a tutela civilista e encontra guarida no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, alcançando a categoria de direitos fundamentais.
Dentre os direitos da personalidade, está o direito ao nome, previsto no artigo 16 do Código Civil, que assim prevê:
Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
Como leciona Nelson Rosenvald: "o nome é o sinal exterior pelo qual são reconhecidas e designadas as pessoas, no seio familiar e social. Na imagem simbólica de Josserand, ‘é a etiqueta colocada sobre cada um’. Enfim, é elemento designativo da pessoa"[2].
O nome é composto por duas partes: o patronímico familiar, conhecido como sobrenome, que se caracteriza como uma herança transmitida de pai para filho ou adquirida por ocasião do casamento; e o prenome, conferido à pessoa quando da abertura do assento de nascimento.
A lei de registros públicos, que versa sobre a inscrição do nome da pessoa nos registros públicos, dispõe em seu artigo 58 que o prenome é definitivo, consagrando o princípio da imutabilidade do nome, admitindo exceção concernente aos apelidos públicos notórios e no caso de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, mediante autorização judicial após de ouvido o Ministério Público.
Daí decorre a impreterível necessidade de se ter atenção extrema quando da escolha do nome, atributo este conferido aos genitores, que precisam estar atentos para o fato de que um nome mal formulado, por desconhecimento ou irresponsabilidade, acaba gerando sérios problemas e constrangimentos ao filho para sempre e, por vezes, até após a sua morte.
2. Hipóteses de substituição do prenome: nome vexatório e uso prolongado de nome diverso
Em razão da severidade com que é revestida a escolha e registro do nome de um recém nascido, a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 55, parágrafo único, assevera ser defeso aos oficiais competentes o registro de prenomes passíveis de expor ao ridículo seus portadores.
Não obstante a proibição legal imposta aos oficiais e, ciente da possibilidade de eventuais desrespeitos ao dispositivo de lei, o legislador buscou garantir a possibilidade de alteração do nome no primeiro ano da maioridade civil da pessoa, nos termos do artigo 56 da Lei 6.015/73, ressalvando a impossibilidade desta alteração prejudicar os apelidos de família, bem como a necessidade de publicação da alteração na imprensa.
Demais modificações do prenome pleiteadas após o primeiro ano da maioridade civil, somente serão deferidas excepcional e motivadamente, com base no disposto no artigo 58 da lei de registros públicos, substituindo-o por apelido público notório. Esta exceção fora incluída pela Lei 9.078/98 refletindo o posicionamento crescente em prol da relativização do princípio da imutabilidade do nome.
Assim, o entendimento sustentado pelos tribunais de justiça pátrios se modificou para permitir a referida alteração, o que foi consolidado no Superior Tribunal de Justiça:
AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - ALTERAÇÃO DE PRENOME - POSSIBILIDADE - Autorização em situações excepcionais - Apelido público e notório - Ocorrência no caso concreto - Recurso provido. (150863920098260602 SP 0015086-39.2009.8.26.0602, Rel. Luiz Antonio Costa, J. 31/08/2011, 7ª C. Direito Privado, Publicação 06/09/2011)
Não obstante a permissão de modificação no caso supramencionado, a doutrina passou a interpretar a referida lei de registros públicos para defender a possibilidade de alteração do prenome em outros casos específicos decorrentes de situações fáticas que ensejavam a substituição do prenome por motivos igualmente, ou até mais relevantes, do que a utilização de apelido notório.
Assim, constatamos atualmente as seguintes hipóteses permissivas de retificação do registro para alteração do prenome:
- quando expuser o titular ao ridículo ou à situação vexatória, inteligência do art. 55, parágrafo único da Lei de registros públicos;
- houver erro gráfico evidente;
- para incluir apelido notório (art. 58 e parágrafo único, LRP);
- pela adoção (ECA, art. 47, § 5º, e CC, art. 1.627);
- pelo uso prolongado e constante de nome diverso;
- quando ocorrer homonímia depreciativa, gerando embaraços profissionais ou sociais;
- pela tradução.
Dentre as hipóteses relacionadas, ter um prenome vexatório é uma situação corriqueira em que a pessoa busca o amparo legal para se livrar das chacotas e constrangimentos sofridos, o que a leva a utilizar e ser reconhecida por nome diverso do constante em seu registro civil, visando consolidar a modificação por ela adotada ao longo de anos.
Há, portanto, a junção de duas hipóteses permissivas de alteração do prenome: a primeira e a quinta, pois em decorrência de um nome que causa embaraços, a pessoa acaba por se auto-intitular por prenome diverso do que consta em seu registro civil, sendo deste modo conhecida pelos demais que com ela convivem.
Natural que em dado momento a pessoa se canse de situação tão desconfortável e busque os meios legais para resolvê-la definitivamente, com a alteração do prenome que fora registrada pelo que utiliza na sua vida cotidiana.
A referida substituição é possível com base na inteligência do parágrafo único do artigo 55 combinado com o artigo 58 da lei 6.015/73, corroborada com a construção doutrinária majoritária e a ampla jurisprudência existente acerca do tema em testilha.
Isso porque a Lei 9.708/98, que alterou a redação do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, promoveu verdadeira relativização do princípio da imutabilidade do nome, confirmando o entendimento traçado não apenas pela doutrina, como também pelo Superior Tribunal de Justiça e tribunais de justiça pátrios:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME. PRESENÇA DE MOTIVOS BASTANTES. POSSIBILIDADE. Peculiaridades do caso concreto. - Admite-se a alteração do nome civil após o decurso do prazo de um ano, contado da maioridade civil, somente por exceção e motivadamente, nos termos do art. 57, caput, da Lei 6.015/73. Recurso especial conhecido e provido. 576.015 (538187 RJ 2003/0049906-9, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, J. 01/12/2004, T3 - TERCEIRA TURMA, Publicação DJ 21.02.2005 p. 170RDDP vol. 25 p. 153RDTJRJ vol. 63 p. 97RSTJ vol. 193 p. 363RT vol. 836 p. 147). (grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DO PRENOME. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO DO APELO. O princípio da dignidade da pessoa humana "assegura a todos os cidadãos a consideração do Estado como sujeitos de direitos e titulares do respeito comunitário. A consideração por parte do Estado se revela garantia de uma gama de direitos que assegurem aos cidadãos condições essenciais a uma vida saudável. Por isso, cabe ao Poder Judiciário atender aos pedidos de alteração de nomes que causam constrangimentos, com intuito de garantir a estes cidadãos que não sofram situações desagradáveis e humilhantes". (Ap. Cível 2010.064652-2, de Concórdia. Procurador de Justiça, Dr. Paulo de Tarso Brandão. 646522 SC 2010.064652-2, Rel Jorge Luis Costa Beber, j. 12/01/2012, Câmara Especial Regional de Chapecó, Publicação). (grifo nosso).
AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – ALTERAÇÃO DO PRENOME – POSSIBILIDADE – Alegação de que a parte há muito deixou de utilizar o prenome "Socorro " que considera vexatório, sendo conhecida no meio familiar e social por "Paula " - Recurso provido. (994040146800 SP, Rel. Luiz Antonio Costa, j. 01/09/2010, 5ª T. Cível, Publicação 02/09/2010).
A famigerada alteração legal ampliou, portanto, a aplicação do artigo 58 e conferiu ao Magistrado a prerrogativa de analisar o caso concreto de forma individualizada e desprovida de convicções legais pré-estabelecidas, atendo-se tão apenas a eventuais afrontas relevantes à segurança jurídica.
3. Princípio da Segurança Jurídica e Instrução Probatória
O respeito ao princípio constitucional da segurança jurídica é o grande cerne da questão envolvendo a retificação do registro público, vez que, em tendo a pessoa irregularidades legais ou pendências perante terceiros, não poderá alterar o seu nome justamente porque deverá arcar com suas responsabilidades legais.
Trata-se de preocupação fundada. Não pode o juízo ser conivente com uma situação de tentativa de “limpeza do nome” pela pessoa para se esquivar das obrigações assumidas com outrem e eventuais pendências legais indesejadas.
É justamente a falta de comprovação da inexistência destas irregularidades ou pendências que gera o atraso do processo e, muitas vezes, a improcedência da ação.
São muitos os âmbitos legais e extralegais em que pode a pessoa ter envolvimentos indesejados. Por isso, os documentos tidos como imprescindíveis para o prosseguimento da demanda podem variar de juiz para juiz.
Todavia, temos que, na busca da comprovação da boa-fé do autor na alteração de seu prenome, mister se faz a apresentação dos seguintes documentos ainda na exordial:
- Certidão de Nascimento;
- Registro Geral de identificação;
- Cadastro de Pessoa Física;
- Certidão de casamento atualizada;
- Comprovante de endereço na Comarca do ajuizamento da ação;
- Título Eleitoral da residência do autor e Certidão de Quitação Eleitoral constando o período de domicílio da requerente na Comarca;
- Certidão do cartório de protestos da Comarca em que o autor reside nos últimos 10 (dez) anos;
- Certidão dos cartórios distribuidores cíveis e criminais da Justiça Federal e Estadual;
- Declaração de três testemunhas confirmando a utilização do prenome que pretende ser incluído no registro civil;
- Eventuais cartas, contas e até perfis de sites de relacionamento comprovando a utilização de nome diverso pelo autor.
Depreende-se que a juntada destas certidões e documentos tem o condão de comprovar que aquele que pleiteia a retificação de registro jamais se eximiu do cumprimento de suas obrigações como cidadão e não possui pendências judiciais ou comerciais.
Justifica-se a evidente intenção de ter o autor recorrido à tutela jurisdicional por não suportar mais os constrangimentos advindos de seu prenome, evitar que o problema se perpetue, bem como para visar a consolidação oficial do nome com o que vem se identificando ao longo dos anos.
Ocorre que, muitas vezes, estes documentos não são apresentados na inicial e ensejam a requisição pelo Juízo, e posterior aprovação do Ministério Público e do Magistrado, para prosseguimento do feito, o que, com a demora que infelizmente assola o Judiciário, pode prolongar em demasia uma questão que seria facilmente resolvida.
Muito embora amealhar tantas certidões custe tempo e dinheiro, certamente o benefício é maior do que o custo do prolongamento da ação em decorrência da ausência dos documentos necessários.
4. Procedimento Especial
4.1. Competência da Ação
Muito já se discutiu acerca do foro competente para o ajuizamento da ação de retificação de registro público. Isso porque o artigo da Lei de Registro Públicos que versa sobre a questão (artigo 57) dispõe que a alteração será promovida mediante autorização do juiz a que estiver sujeito o registro.
Contudo, trata-se de determinação pouco útil em um país com as dimensões territoriais do Brasil, em que muitas vezes uma pessoa nascida no Amapá e que reside no Rio Grande do Sul pretende a alteração de seu prenome e não possui condições de retornar ao local do registro.
Por esta razão, passou-se a interpretar o artigo 109, §5º da Lei supramencionada para indicar a relativização do foro competente, que dispõe:
“Se houver de ser cumprido em jurisdição diversa, o mandado será remetido por ofício, ao juiz sob cuja jurisdição estiver o cartório do Registro Civil e, com o seu “cumpra-se” executar-se-á.”
Da interpretação do início do texto legal “se houver de ser cumprido em jurisdição diversa (...)” verifica-se uma brecha legal autorizando que a retificação de registro civil ocorra em juízo diverso daquele competente para ordenar o cumprimento da decisão.
Assim, em se tratando de questão vinculada aos direitos de personalidade, que afetam a dignidade da pessoa e, consequentemente, um direito fundamental, não é crível que se sujeite a pessoa a tamanho óbice para buscar seu direito.
Nesse sentido:
REGISTRO CIVIL RETIFICAÇÃO COMPETÊNCIA DECORRE DO ART. 109, § 5º, DA LEI Nº 6.015/73 A VIABILIDADE DE O REQUERENTE ELEGER O LOCAL ONDE PROPOR A AÇÃO, SE NO SEU DOMICÍLIO OU NO LOCAL ONDE LAVRADO O REGISTRO AGRAVANTE QUE NÃO COMPROVOU SER DOMICILIADA NA COMARCA EM QUE PROPOSTA A AÇÃO REMESSA DOS AUTOS A UMA DAS VARAS CÍVEIS DA COMARCA DE LIMEIRA. DECISÃO MONOCRÁTICA SUFICIENTEMENTE MOTIVADA E ADEQUADA INTELIGÊNCIA DO ART. 252 DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. DECISÃO MANTIDA.RECURSO IMPROVIDO.109§ 5º6.015 (5139637220108260000 SP 0513963-72.2010.8.26.0000, Relator: Neves Amorim, Data de Julgamento: 20/09/2011, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/09/2011)
COMPETÊNCIA. REGISTRO PÚBLICO. PEDIDO DE CANCELAMENTO DE ASSENTOS DE NASCIMENTO E LAVRATURA DE NOVOS EM VIRTUDE DE ADOÇÃO. O PEDIDO PODE SER FORMULADO A JUIZ DE JURISDIÇÃO DIVERSA DA COMARCA ONDE FOI LAVRADO O REGISTRO ORIGINAL DE NASCIMENTO (ART. 109, PARAG. 5., DA LEI N. 6.015, DE 31.12.73). CONFLITO CONHECIDO, DECLARADO COMPETENTE O SUSCITADO (cc 10861/MG, 2ª Seção, Rel. Min. Barros Monteiro, julgado em 14.12.1994, DJ 13.03.1995, p. 5245).
4.2. Jurisdição Voluntária
A ação de retificação de registro público é um processo de jurisdição voluntária em que deverão ser ouvidos eventuais interessados e o Ministério Público.
Por isso, deve o advogado se atentar às regras de jurisdição voluntária, tais como:
- inexistência de parte adversa, pois o que se pretende é o deferimento de efeitos jurídicos para o próprio demandante;
- inexistência de litígio a ser resolvido pelo juízo;
- inexistência de coisa julgada, mas há preclusão das questões decididas;
- não há parte, mas sim interessado.
- deve observar o procedimento geral previsto nos artigos 1.104 a 1.111 do Código de Processo Civil;
- necessidade de intimação do Ministério Público para se manifestar como custus legis;
- o juiz tem a prerrogativa de investigar os fatos e, de ofício, ordenar a realização das provas que entender cabíveis, inclusive designando audiência;
- o juiz não está adstrito ao princípio da legalidade para integrar ou abrandar as normas legais somente quando estas foram amplas, o que não o exime de prolatar decisão fundamentada;
- trata-se de procedimento informal, podendo os atos e termos ser alterados pelo juiz conforme for conveniente ao escorreito prosseguimento da ação.
. Conclusão
Verificamos, portanto, que a ação de retificação de registro público objetivando a modificação do nome da pessoa encontra-se, ainda, muito mistificada no meio jurídico o que não se coaduna com a realidade procedimental da mesma.
Trata-se de procedimento bastante simples e que conta com a boa-fé do interessado em se desfazer de uma situação que o constrange desde a época de infância, o que se comprova pela adoção de nome diverso do constante no registro civil.
Com a juntada dos documentos que corroborem a sua boa-fé e a substituição do prenome vexatório por apelido notório, o interessado terá grandes chances de êxito em um curto lapso de tempo.
Notas
[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Parte Geral.34. ed., atualizada de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002. Editora Saraiva, São Paulo: 2003. p.61, citando MAZEAUD E CHABAS, Leçons de droit civil, 6 ed., Paris, 1981, v.2, t.I, n. 624.
[2] ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil. Teoria Geral, 6. ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2007.