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Lógica jurídica, argumentação e racionalidade

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21/07/2012 às 10:35
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4. RECASÉNS SICHES E A LÓGICA DO RAZOÁVEL.

Partindo de premissas metodológicas bastante diversas daquelas utilizadas por Kelsen, o espanhol Luis Recaséns Siches defende a tese de que a lógica do direito não é a lógica formal, mas a Lógica do razoável, uma lógica não-formal que procura soluções mais corretas e adequadas para os casos concretos naquelas hipóteses em que a aplicação da lógica formal leva a conclusões evidentemente injustas ou divorciadas das finalidades da norma (COELHO, 2009, p.84). Para Siches,

La lógica de lo humano o de lo razonable es una razón impregnada de puntos de vista estimativos, de criterios de valoración, de pautas axiológicas, que además leva a sus espaldas como aleccionamiento las enseñanzas recibidas de la experiencia, de la experiencia propia  o de la experiencia del próximo a través de la historia[9].(apud PRADO, 1995, p. 65)

Segundo Siches, seria um grande erro pretender tratar o Direito com os métodos da lógica tradicional, dado que os pensamentos dos operadores do Direito, sejam legisladores, sejam juízes,  advogados ou filósofos do direito não constituem um pensamento sistemático, mas um pensamento construído sobre problemas. Por essa razão ele sustenta  que

Hay que explorar [...] la razón jurídica de los contenidos de las normas de Derecho, la cual nos permitirá superar el azoramiento y la confusión que sintieron muchos juristas al percatarse de que la lógica tradicional quiebra en el mundo de la interpretación y del desarrollo del Derecho.  Ahora bien, esa razón jurídica material habrá de ser, al fin y al cabo, una especie de la razón vital e histórica, o mejor dicho una lógica de la acción, la cual es razón, ratio, logos, riguroso concepto (apud MANSON 1977, p. 196).[10]

A lógica do razoável, portanto, é uma lógica material, ligada não ao estudo das conexões ideais entre as proposições e das correções formais das inferências, mas sobretudo voltada especificamente ao tratamento dos assuntos humanos, como a economia, a política e o direito.  Siches defende que todos os métodos de interpretação tradicionalmente defendidos pela doutrina (gramatical, histórico, analógico, teleológico, sistemática, etc.) são meros recursos técnicos utilizados quando o jurista sente a necessidade de justificar uma dada interpretação que lhe parecia justa, quando na verdade, “a única regra que se deve formular, com validade universal, é a seguinte: o juiz deve interpretar, sempre, a lei de modo que leve à solução mais justa dentre todas as possíveis [...]”(apud PRADO,1995, p. 66).

Siches compartilha com Kelsen a idéia de que a atividade do juiz é criadora de normas, e não meramente declaratória.  Para ele, ao sentenciar, o juiz reconstrói o fato, pondera as circunstâncias às quais atribui relevo, escolhe a norma aplicável e só então lhe confere o sentido e o alcance (AGUIAR JÚNIOR, p. 11). Este processo, ao contrário do que ocorre no campo da aplicação da lógica tradicional, que se pretende neutra e meramente explicativa, é profudamente marcado por seu caráter axiológico ou valorativo, já que o que se busca é entender os sentidos e nexos entre as significações dos problemas humanos.  Como afirma Prado (1995, p. 66)

Ao juiz e mesmo ao legislador não interessa a realidade pura, mas sim decidir sobre o que fazer de certos aspectos de determinadas realidades.  E, precisamente, os aspectos que dessas realidades interessam acham-se interligados com critérios estimativos.  O que ao juiz cabe averiguar é se a valoração, que serviu ao legislador como determinante do preceito inserto na norma, seria aplicável ao novo caso colocado.

Daí que o cerne da criação legislativa não é o texto da lei, mas os juízos de valor que foram acolhidos pelo legislador na elaboração da norma. Assim, o juiz, ao decidir um caso concreto, frente a situações particulares, deve atentar para os valores que guiaram o legislador.  Siches (apud Manson, 1977, p. 204) exemplifica essa forma de atuação retomando o caso narrado por Radbruch, ocorrido na Polônia, em que, numa estação ferroviária onde havia um cartaz proibindo a entrada de pessoas com cães, certo dia chegou um camponês trazendo consigo um urso.  O funcionário da estação proibiu o camponês de entrar, ao que este protestou, alegando que o cartaz proibia unicamente a entrada de cães, fazendo surgir um conflito quanto à aplicabilidade da norma ao caso. 

Afirma Siches que se na resolução deste caso forem aplicados unicamente os instrumentos da lógica tradicional, a entrada do camponês na estação deveria ser garantida, ao passo que a entrada de um cego acompanhado de seu cão-guia deveria ser proibida. Assim, para ele, a solução em ambas as situações somente poderia ser adequadamente encontrada caso o aplicador da norma deixasse de lado as regras da lógica formal e se utilizasse de critérios não-formais, como o argumento a fortiori (se está proibido A e B é mais grave que A, então B também está proibido), buscando nos valores que levaram à edição da norma o fundamento para justificar sua conclusão.

 Para Siches, o juiz, ao decidir um caso concreto, criando a norma jurídica individualizada, deve valorar a prova colhida e qualificar juridicamente os fatos com vistas a alcançar a solução mais justa para o caso, o que condiciona inclusive a escolha da norma aplicável, de vez que, como afirma Prado (1995, p. 67)

(...) o verdadeiro cerne da função judicial não é o silogismo, mas a eleição de premissas.  Uma vez eleitas as premissas, a mecânica silogística funcionará com toda facilidade, mas funcionará com idêntica correção, quaisquer que sejam as premissas que o juiz tenha escolhido. 

A lógica do razoável ou lógica o humano, assim, seria uma lógica do concreto, pautada fundamentalmente por critérios estimativos ou axiológicos e condicionada à realidade concreta do mundo, à situação concreta sobre a qual devem incidir as normas. É uma lógica que procura entender o sentido e os nexos entre as significações dos problemas humanos – e portanto dos políticos e jurídicos – assim como estabelece operações de valoração e estabelece finalidades ou propósitos.  Por isso é que, segundo Siches (apud PRADO, 1995, p. 70), em todos os casos, em que os métodos de lógica tradicional se revelam incapazes de oferecer a solução correta de um problema jurídico ou conduzem a um resultado inadmissível, a tais métodos não se deve opor um ato de arbitrariedade, mas uma razão de tipo diferente, fundada na lógica do razoável.


5. A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO DE ROBERT ALEXY

Na teoria do Direito por ele desenvolvida, Robert Alexy sustenta que a dogmática jurídica (isto é, a “Ciência do Direito” ou a “Ciência jurídica”) em grande medida é uma tentativa de se dar uma resposta racionalmente fundamentada a questões axiológicas que foram deixadas em aberto pelas normas existentes (2008, p. 36).

  Alexy entende que a dogmática jurídica é uma disciplina pluridimensional, de modo que a Ciência do Direito, em seu sentido próprio e restrito, teria três dimensões[11]: a dimensão lógico-analítica, em que são analisadas as estruturas lógicas do Direito, desde a análise dos conceitos elementares, passando por construções jurídicas até o exame das estruturas do sistema jurídico; a dimensão descritiva-empírica, que diz respeito ao conhecimento do direito positivo válido, bem como à descrição e ao prognóstico da praxis dos tribunais, e, finalmente, a dimensão normativa-prática, em que se busca elaborar propostas para a solução dos casos jurídicos problemáticos, buscando determinar, a partir do direito válido, qual a decisão correta a ser tomada em um caso concreto (Alexy, 2001, p. 241). 

Vale ressaltar que para Alexy essas três dimensões da dogmática devem ser combinadas se o Direito quiser cumprir sua função sua função prática, qual seja, a de responder, em face de um caso real ou hipotético, aquilo que deve ser, posto que “combinar as três dimensões é uma condição necessária de racionalidade da ciência jurídica como disciplina prática” (ALEXY, 2008, p. 37).  Alexy se contrapõe à visão que resume a dogmática jurídica a um conjunto de operações lógico-dedutivas, afirmando que

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A análise lógica demonstra exatamente que, nos casos minimamente problemáticos, a decisão não tem como ser tomada com base nos meios da Lógica, a partir de normas e conceitos jurídicos pressupostos. Para tanto, são necessários valores adicionais e, como fundamento desses valores, conhecimentos empíricos.  Um tratamento lógico que, prescindindo dessas premissas adicionais, alcance resultados e, nesse sentido, pretenda ser produtivo só pode ser um método pseudológico, que encobre as premissas normativas necessárias para uma fundamentação lógica realmente concludente. (ALEXY, 2008, p. 48).

Dessa afirmação não decorre, todavia, que a importância da dimensão lógico-analítica possa ser subestimada, posto que, “sem uma compreensão sistemático-conceitual a Ciência do Direito não é viável como uma disciplina racional. [...] Portanto, a despeito das falhas do ‘tratamento lógico’, não há como ignorar o que nele há de correto e imprescindível para o Direito” (ALEXY, 2008, p. 49).  Nesse sentido, vale notar que na teoria alexyana, um dos pontos centrais é a análise das normas e de suas estruturas, e a distinção das normas entre regras e princípios.

Para Alexy, essa distinção não é feita em função de uma diferença de grau, ou seja, não se diferencia uma regra de um princípio em função do “grau de importância” ou do “grau de abstração” das normas, mas em razão de uma qualidade da norma.  Os princípios, assim, são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. São, portanto, mandamentos de otimização, caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variado, dependendo o seu cumprimento não só das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (ALEXY, 2008, p. 90).

 Por outro lado, as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas.  Diferentemente dos princípios, aplicam-se na maneira do “tudo ou nada”, de modo que se uma regra é válida, deve ser aplicada da maneira como preceitua, nem mais nem menos, conforme um procedimento de subsunção silogístico. “Regras contém, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau.” (ALEXY, 2008, p. 91).

 Esta distinção é de suma importância no campo das relações entre o Direito e a Lógica, posto que as regras se aplicam silogisticamente, obedecendo às regras da lógica formal, ao passo que os princípios, tendo uma dimensão de peso e precedência, são aplicados por meio de ponderação ou balanceamento, de tal modo que, “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”(ALEXY, 2008, p. 167). 

Ocorre, entretanto, que essa classificação das normas é ainda insuficiente para garantir a racionalidade nas justificações das decisões jurídicas.  Isso porque:

[…] el nivel de la regla y el de los principios, no proporciona un cuadro completo del sistema juridico. Ni los principios ni las reglas regulan por si mismos su aplicacion. Ellos representan solo el costado pasivo del sistema juridico. Si se quiere obtener un modelo completo, hay que agregar al costado pasivo uno activo, referido al procedimiento de la aplicacion de las reglas y principios. Por lo tanto, los niveles de las reglas y los principios tienen que ser completados con un tercer nivel. En un sistema orientado por el concepto de la razon practica, este tercer nivel puede ser solo el de un procedimiento que asegure la racionalidad. De esta manera, surge un modelo de sistema juridico de tres niveles que puede ser llamado “modelo reglas/principios/procedimiento” (ALEXY, 1997, p. 173).[12]

Assim, as condições para a racionalidade da dogmática jurídica e, portanto, das decisões judiciais, seriam dadas pela teoria do discurso, uma teoria procedimental segundo a qual “uma decisão é correta quando o resultado do processo pode ser definido pelas regras do discurso” (ALEXY, 2001, p. 301).

A tese da teoria do discurso racional como justificação racional das decisões, portanto, tem íntima ligação com a pretensão de correção das normas (gerais ou individuais), valendo notar que, na teoria alexyana, uma norma somente pode ser tida como correta se ela for resultado de um procedimento próprio de um discurso racional.  Por essa razão, para a adequada compreensão da natureza da teoria do discurso como uma teoria de justiça, é necessário que o procedimento do discurso seja um procedimento de argumentação, e não um procedimento de decisão. (Alexy, 2003, p. 12).

Para Alexy, portanto, o conceito de argumentação racional está ligado a certas regras a serem seguidas e formas a serem assumidas pela argumentação como condição parta que ela possa satisfazer a pretensão de correção, de modo que “quando uma discussão está de acordo com estas regras e formas, então o resultado oferecido por ela pode ser chamado de ‘correto’. As regras e formas do discurso jurídico assim constituem um critério para a correção das decisões jurídicas” (ALEXY, 2001, p. 273).

Tem-se, pois, que Alexy amplia o conceito de norma e, sem negar a importância da lógica formal (especialmente no que toca à justificação interna dos silogismos realizados nas aplicações das regras), reconhece a existência de uma categoria de normas cuja aplicação não se dá por subsunção, o que, todavia, não implica que se esteja abrindo espaço para o irracionalismo, dado que a vinculação às regras e formas de argumentação racional garantiriam a possibilidade do controle racional da justificação das decisões.


CONCLUSÃO

A busca por critérios racionais de avaliação da correção de um raciocínio jurídico constitui o objeto específico da lógica jurídica.   De fato, se por um lado não se pode restringir o fenômeno jurídico a meras deduções de normas individuais a partir da aplicação de normas gerais aos fatos, de outro não se pode, no âmbito de um regime que se pretenda minimamente democrático, abrir mão da busca pela redução da possibilidade de arbitrariedades e decisionismos, buscando razões legítimas e aceitáveis para as decisões judiciais.

Nesse aspecto, é extremamente relevante o papel a ser desempenhado pela Lógica jurídica, seja no que se refere à aplicação das leis e princípios da lógica formal à Ciência do Direito (categoria kelseniana), seja no âmbito da dimensão analítica da dogmática (Alexy), seja, ainda, nos processos não-formais de justificação das decisões, hipótese em que seu papel será o de fornecer a justificação externa que legitimará a escolha das premissas.

A Lógica jurídica, por óbvio, mesmo a despeito de ter uma íntima ligação com a pretensão de correção (segundo a visão procedimentalista de Alexy), não pode garantir, por si só, que a decisão tomada seja a mais acertada ou mesmo a mais justa. Entretanto, o desrespeito às suas regras é suficiente para que desde logo se possa afirmar a incorreção da decisão adotada. O papel da Lógica jurídica, portanto, consiste não só em garantir a possibilidade de que as conclusões silogísticas, quando cabíveis, sejam corretas, mas também, e fundamentalmente, em possibilitar que as escolhas das premissas sejam feitas de forma racional e justificada, garantindo que o Direito possa efetivamente ser qualificado como Ciência e possibilitando que se exerça um controle mais apropriado das decisões jurídicas.

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Sobre o autor
Marcio Luiz Coelho de Freitas

Juiz Federal titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. Professor da Escola Superior de Magistratura do Estado do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Marcio Luiz Coelho. Lógica jurídica, argumentação e racionalidade . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22271. Acesso em: 29 mar. 2024.

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