4. DA LEGITIMIDADE DO CONTROLADOR
Foi exposto que apenas em casos excepcionais o intérprete poderia privilegiar a eficiência em detrimento da legalidade, mas, mesmo nos casos em que o sacrifício da legalidade não fosse necessário, deveria o Administrador, dentro das várias hipóteses “legais”, escolher aquela que se revelasse a mais eficiente.
Ocorre que é inócuo falar-se em dever, sem que se fale em sanção ou em mecanismos jurídicos que possibilitem a imposição daquele dever que decorre do ordenamento jurídico.
Isto quer dizer que, afirmar que existe um dever de escolha da hipótese mais eficiente implica, necessariamente, na possibilidade de reforma dos atos que representem a escolha de hipótese menos eficiente, e até mesmo na possibilidade de aplicação de sanções àquele que implemente esta última escolha.
E é aqui que se faz necessário o enfrentamento daquele segundo problema, mencionado na introdução, ou seja, a necessidade de evitar que o Princípio da Eficiência se torne um “cheque em branco”, em poder do controlador, possibilitando que este substitua juízos de valor daquele que possui legítima atribuição para tomar determinadas decisões. Aqui se vislumbra uma íntima relação entre o tema ora tratado e a discussão em torno da discricionariedade e o controle jurisdicional do mérito do ato administrativo.[19]
Juarez Freitas, ao tratar da relação entre a discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração, afirmou a existência deste direito como norma implícita com eficácia direta e imediata em nosso sistema constitucional, que impele o controlador a agir como administrador negativo, reprimindo o exercício da discricionariedade fora dos limites, seja por ato comissivo, seja por ato omissivo[20].
O autor considera um equívoco acreditar na existência de uma zona juridicamente interditada à sindicabilidade, que permitiria, no seio do Estado Constitucional, a permanência de esfera exclusivamente política, imune ao controle negativo[21]. Por outro lado, também seria um equívoco acreditar que haveriam circunstâncias em que o agente público operaria como “vassalo da lei”, de forma automatizada, sem qualquer expressão de vontade e, por isso mesmo, livre de qualquer responsabilidade. Ou seja, tanto no exercício do poder discricionário, quanto na prática dos atos vinculados, o administrador estaria sempre obrigado a analisar se o ato praticado está em consonância, primeiro com os ditames constitucionais, em seguida com os legais, e finalmente com os infralegais.[22]
Este posicionamento deriva, por sua vez, de entendimento já exposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, quando tratou da discricionariedade e do controle jurisdicional. Nega a existência de um “poder discricionário” para afirmar, em seu lugar, a existência de um “dever discricionário”. Expõe o doutrinador que os institutos do direito administrativo não podem ser articulados em torno da idéia de poder, mas devem sê-lo em torno da idéia de dever, de finalidade a ser cumprida. Assevera que a discricionariedade somente é concedida ao Administrador, como meio para obter o cumprimento daquela finalidade.[23]
A discrição, portanto, é a prova cabal de que a lei sempre impõe um comportamento ótimo ao Administrador. Quando a lei regula discricionariamente determinada situação, tal ocorre porque não se aceita do administrador outra conduta que não aquela capaz de atender, com excelência, a finalidade legal. Partindo do pressuposto de que a lei não é um ato aleatório, sempre que for possível pré-determinar a conduta ótima em determinada situação, a mesma será regulada de forma vinculada. A concessão de discricionariedade não decorre da intenção de conferir margem de liberdade ao Administrador, mas da impossibilidade de pré-definir aquela conduta ótima. A discricionariedade concedida não é o fim da norma, mas tão somente o meio que possibilita ao Administrador, configurada a hipótese normativa, adotar a conduta ótima. Nesta situação, o Administrador não tem somente o dever de praticar um ato comportado pela regra, mas sim o dever de praticar exclusivamente aquele ato que atenda, da melhor forma possível, a finalidade da norma.[24]
Ao longo de todo o trabalho foi construída a visão sobre a necessidade construir uma hermenêutica que privilegie a defesa da ordem objetiva de valores prevista na Constituição. Chegou-se até mesmo à conclusão de que em hipóteses excepcionais o dever de legalidade pode ser mitigado em homenagem à essa concepção substancialista, inclusive com o fim de promover a realização da eficiência da Administração Pública. Mas, em termos práticos, como se pode evitar que esta visão implique numa hipertrofia do poder do controlador? Em última instância, como se pode evitar, por exemplo, que o “ativismo judicial” desemboque num despotismo judiciário e numa administração e legislação através de decisões judiciais?
Neste sentido, autores como Habermas e Ely já pronunciaram divergências contra a corrente substancialista aqui defendida. Habermas faz severas críticas ao modelo construtivo do Direito sugerido por Dworkin, por incorrer no que denomina de gigantismo do judiciário. Contrapõe-se à “leitura moral da Constituição” e recusa o processo hermenêutico orientado por princípios substantivos. Afirma que ainda não foi resolvida a questão de como esta prática de interpretação pode operar no âmbito da divisão dos poderes do Estado de Direito, sem que a justiça lance mão de competências legisladoras. Critica a “jurisprudência dos valores” desenvolvida na Alemanha e afirma que uma interpretação constitucional, orientada por valores e pelo sentido teleológico dos princípios constitucionais, ignorando o caráter vinculante dos sistema de direitos (aqui incluídos, presumivelmente, os formais) constitucionalmente assegurados, desconhece tanto o pluralismo das democracias contemporâneas quanto a lógica do poder econômico e do poder administrativo[25].
O referido autor, que inclusive afastava a auto-evidência da necessidade de tribunais constitucionais, entendia que nos locais onde os mesmos eram previstos, não deveriam ser guardiões de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais, mas sim zelar para que a cidadania dispusesse de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza de seus problemas e a forma de sua solução[26].
Trata-se, portanto, entre outras, da questão já anunciada linhas acima: delimitação do papel do intérprete na construção dos sentidos normativos, e impossibilidade de ignorar o trabalho do administrador e do legislador nessa tarefa.
Com efeito, o papel do administrador e do legislador, eleitos, é justamente atuar como representantes da sociedade, realizando opções políticas, inclusive no que diz respeito ao conteúdo concreto e alcance que os valores substanciais possuem apenas abstratamente no plano da constituição, bem como priorizando alguns valores em detrimento de outros, conforme as circunstâncias do momento da escolha.
Já o controlador por excelência dos atos da Administração Pública, o juiz, não é democraticamente eleito. Assim, o excesso de discricionariedade para o juízo no momento da construção do sentido da norma pode resultar em decisionismo ou, por assim dizer, num despotismo do poder judiciário.
É neste ponto que cresce em importância o desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica. O controle crítico das decisões judiciais é bastante complicado num contexto onde um dos elementos com maior grau de objetividade envolvido na argumentação, as regras, perderam em grande parte seu caráter determinante nas decisões judiciais.
Em artigo dedicado à relação entre o Estado Constitucional e a Argumentação Jurídica, Manuel Atienza afirma que o Estado Constitucional pressupõe a distribuição formal de poder, mas também a existência de certos conteúdos que limitam e condicionam a produção, a interpretação e a aplicação do Direito. Não bastaria a referência à autoridade (competência) e a procedimentos (validade formal), mas se requer também um controle quanto ao conteúdo material do Direito, o que supõe um incremento da tarefa justificativa dos órgãos públicos e uma maior demanda de argumentação jurídica.[27]
Num contexto positivista a tarefa do juiz, pelo menos em tese, envolvia menos oportunidades em que a solução do caso dependia necessariamente da realização de valorações subjetivas. Como justificar, de forma racional, decisões baseadas fundamentalmente na ponderação de princípios?
Robert Alexy parte do pressuposto de que, no limite, a fundamentação jurídica sempre diz respeito a questões práticas, ou seja, àquilo que é obrigatório, proibido e permitido. O discurso jurídico é, por isso, um caso especial do discurso prático geral, caracterizado pela existência de uma série de condições restritivas, às quais a argumentação jurídica se encontra submetida e que, em resumo, se referem à vinculação à lei, ao precedente e à dogmática[28].
Para Alexy, o conceito de argumentação jurídica consiste na apresentação de um número de regras que devem ser seguidas e de formas que ela tem que assumir para que possa reivindicar a condição de racional. Se a discussão está de acordo com as regras e formas propostas, seu resultado pode ser chamado de correto. Como caso especial do discurso prático, o discurso jurídico é limitado pelas leis (válidas), pelos precedentes e pela dogmática, ocorrendo num âmbito mais restrito que o discurso prático geral, o que possibilita um maior grau de racionalidade e controle[29].
O próprio Alexy ressalta que a racionalidade não pode ser confundida com objetividade absoluta ou com a noção de certeza. As formas, regras e condições especiais que circunscrevem a argumentação jurídica permite mitigar as incertezas que envolvem o discurso prático geral, mas não permite eliminá-las, o que não retira a relevância do tema ora discutido. Mesmo nas ciências naturais, costumeiramente opostas ao Direito como paradigmas de cientificidade, a certeza é inatingível. Assim, não é a certeza, mas a conformação com determinados critérios, condições e regras, que garantiria à jurisprudência seu caráter racional.[30]
A teoria da argumentação de Alexy envolve um intricado complexo de regras e procedimentos através dos quais defende que seria possível atingir um nível razoável de racionalidade nas decisões judiciais. Não é possível, nem mesmo de forma resumida, a reprodução de tais regras no presente trabalho. Entretanto, é possível ressaltar que a questão da falseabilidade é um ponto essencial da mesma. Ou seja, não basta apresentar os pontos a favor da interpretação eleita, mas, na medida do possível, há que apresentar argumentos que afastem outras interpretações possíveis.
Se uma norma é apenas discursivamente possível, então mesmo com um consenso não se pode falar de justificação definitiva. Pode haver muitas razões para a rejeição de uma norma que tenha sido geralmente aceita até o momento. As interpretações de necessidade podem mudar. Pode-se revelar que o conhecimento empírico usado até aqui é inadequado. Certas conseqüências diretas e indiretas podem não ter sido levadas em conta. [...] As normas discursivamente possíveis, portanto, só devem ser consideradas justificadas por enquanto. Permanentemente, elas são falsificáveis.[31]
CONCLUSÃO
Em vista de tudo quanto foi exposto adotam-se aqui algumas conclusões, provisórias, tão somente com o objetivo de instigar a discussão sobre o tema abordado.
Assim, defende-se que o Princípio da Eficiência pode ser utilizado como crivo para aferição de legitimidade do ato emanado da Administração Pública. Entretanto, esta tarefa deve ser exercida com extrema cautela, e com o respeito a alguns pressupostos.
Não há que se falar em uma oposição apriorística entre os Princípio da Eficiência e Princípio da Legalidade: esta oposição somente vai existir em determinadas situações, que deverão ser resolvidas através da ponderação de princípios.
Via de regra, o argumento de uma maior eficiência NÃO deve servir de justificativa para adoção de uma conduta que não se coadune com os parâmetros legais. Ou seja, a legalidade goza de um bônus na argumentação, devendo prevalecer sempre que houver dúvida na atividade de ponderação.
Por outro lado, a mera conformação aos parâmetros legais não implica, necessariamente, na legitimidade do ato. Sempre que houver duas ou mais hipóteses que respeitem a legalidade, o Administrador estará sempre obrigado a escolher a conduta mais eficiente. Não sendo possível definir esta conduta previamente, está o mesmo obrigado a escolher, pelo menos, uma opção que se revele razoavelmente eficiente.
Mesmo diante do exercício do denominado “poder discricionário” o controle do ato, pelo menos nos aspectos negativos, é sempre possível. Com efeito, a existência de discrição no comando da norma nem sem sempre implicará em discrição no caso concreto. Esta somente existirá quando não for possível antes da adoção do ato, determinar qual a solução mais eficiente, ou quando for possível afirmar que duas ou mais soluções apresentam o mesmo grau de eficiência.
Os atos deverão ser, na medida do possível, motivados, a fim de possibilitar o controle do mesmo nos âmbitos administrativo e judicial. Porém, a busca pela eficiência não deve jamais servir como instrumento para que o controlador substitua livremente o juízo de valor emitido pelo Administrador acerca da melhor solução.
Isto quer dizer que cabe ao controlador o ônus de produzir uma argumentação que seja capaz de demonstrar porque a solução por ele proposta se revela mais eficiente do que aquela proposta pelo Administrador. Quando tal não for possível, deve vigorar, em favor do ato perpetrado, a presunção de legalidade e legitimidade.
Finalmente, embora apenas em casos muito excepcionais, admite-se aqui a possibilidade da realização da eficiência servir como fundamento para mitigação da legalidade. Entretanto, além da excepcionalidade de tais casos, o intérprete que se vir obrigado a afastar a legalidade em prol da eficiência estará sujeito a pesadíssimo ônus de argumentação jurídica, uma vez que a legalidade é o dever maior da Administração Pública, base de sustentação da segurança jurídica e pilar do Estado de Direito.
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