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Uma crítica interdisciplinar quanto ao exercício do poder pelo juiz: a correlação entre o juiz pacificador dos instrumentalistas e o líder carismático weberiano

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O PRESSUPOSTO DA IMPARCIALIDADE DO JUÍZO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA DO PROCESSO

A crise do Estado Social exigiu o surgimento de um novo paradigma. A solução proposta foi o Estado Democrático de Direito, o qual foi apresentado formalmente no Brasil na Constituição da República de 1988.

A adequação de todos os ramos do direito ao novo modelo constitucional é indispensável. Por isso, o Direito Processual contemporâneo necessita de uma nova visão a respeito do processo compatível com o Estado Democrático de Direito.

Defendendo uma nova releitura do Direito, Menellick de Carvalho Netto assim dispõe:

Em qualquer tema que formos abordar no Direito, a questão da interpretação, sobretudo a da interpretação constitucional, é sempre uma questão central. Isso porque estaremos sempre falando da reconstituição do sentido de textos e, desse modo, uma noção básica é hoje requerida: a noção de paradigma, que abre inclusive a nossa Constituição, a do Estado Democrático de Direito. (CARVALHO NETTO, 2001, p. 220)

Uma alternativa trazida foi a Teoria Neo-Institucionalista do Processo formulada pelo Professor Rosemiro Pereira Leal. Trata-se, segundo o autor, de um entender pós-moderno sobre o instituto do processo.

Na pós-modernidade, o conceito de PROCESSO, como instituição, não se infere pelas lições de Maurice Harriou ou dos administrativistas franceses do século XIX ou posições sociológicas de Guasp e Morel, mas pelo grau de autonomia jurídica como se desponta no discurso de nosso texto constitucional, como conquista histórica da cidadania juridicamente fundamentalizada em princípios e institutos de inerência universalizante e ampliativa em réplica ao colonialismo dos padrões repressores de ‘centração psicológica e política’ dos chamados Estados hegemônicos. (LEAL, 1999, p. 49)  

Segundo a Teoria Neo-Institucionalista, o processo não pode ser concebido como mero instrumento, combatendo a Teoria Instrumentalista de Cândido Rangel Dinamarco surgida no contexto do Estado Social. A relação entre processo e jurisdição, para Rosemiro Pereira Leal, se estabelece de outra maneira.

[...] a jurisdição, face ao estágio da Ciência Processual e do Direito Processual, não tem qualquer valia sem o PROCESSO, hoje considerado no plano do direito processual positivo, como complexo normativo constitucionalizado e garantidor dos direitos fundamentais da ampla defesa, contraditório e isonomia das partes e como mecanismo legal de controle da atividade do órgão-jurisdicional (juiz) que não mais está autorizado a utilizar o PROCESSO como método, meio, ou mera exteriorização instrumental do exercício da jurisdição. (LEAL, 1999, p. 42)

O processo não é tido somente como procedimento em contraditório, consoante ao disposto pela Teoria de Fazzalari. Ressalte-se, inclusive, que Rosemiro Pereira Leal formula um novo conceito para o princípio do contraditório.

[...]o contraditório há de ser princípio regente (direito-garantia constitucionalizado) do procedimento e não atributo consentido por leis ordinárias processuais (codificadas ou não) ou dosado pela atuação jurisdicional em conceitos e juízos personalistas de senso comum, conveniência ou de discricionariedade. (LEAL, 1999, p. 52)

O processo, segundo a Teoria Neo-Institucionalista, é um direito-garantia constitucional, balizado pelos princípios institutivos da ampla defesa e da isonomia, além do princípio do contraditório trazido pela Teoria Fazzalariana.

A elevação do processo a instituto constitucional demonstra a aproximação entre a Teoria de Leal e a Teoria Constitucionalista do Processo, desenvolvida no Brasil pelo professor José Alfredo de Oliveira Baracho.

No entanto, a Teoria Constitucionalista ainda não está ligada ao Estado Democrático de Direito, diferentemente da Teoria de Leal, sendo que esta última possui como característica peculiar a participação do povo.

O que distingue a teoria neo-institucionalista do processo que estamos a desenvolver da teoria constitucionalista que entende o processo como modelo construído no arcabouço constitucional pelo diálogo de especialistas (numa Assembléia ou Congresso Constituinte representativo do povo estatal) é a proposta de uma teoria da constituição egressa de uma consciência participativa em que o povo total da sociedade política é, por autoproclamação constitucional, a causalidade deliberativa ou justificativa das regras de criação, alteração e aplicação de direitos. (LEAL, 2001, p. 95)

Diante do exposto, constata-se que a Teoria Neoinstitucionalista é a mais adequada ao Estado Democrático de Direito, sendo que Rosemiro Pereira Leal formulou o seu próprio conceito para esse paradigma constitucional.

Ora, se objetiva-se reformular o conceito de imparcialidade do juiz no contexto do Estado Democrático de Direito, a Teoria do Processo utilizada como referência também deve estar de acordo com os elementos desse paradigma.

A defesa da imparcialidade do juiz nos termos do Liberalismo é incompatível com os ideais do Estado Democrático de Direito. Conceber o juiz como um mero aplicador da lei na atualidade provocaria um retrocesso do Direito Processual.

Não é possível atribuir imparcialidade a um magistrado, na medida em que essa qualidade é entendida como a capacidade do julgador de se desprender de suas pré-compreensões. Trata-se de um conceito pragmaticamente inviável, já que o juiz é um ser social como qualquer outro e é influenciado pelo ambiente em que vive e por suas experiências vividas.

Neste passo, constata-se que o resgate do conceito liberal de imparcialidade do juiz não seria cabível. Por outro lado, conforme já se salientou, a defesa da discricionariedade do julgador também não é a solução.

Talvez, o que se poderia defender é a reconstrução do conceito de imparcialidade do juiz, sendo possível e necessária essa releitura conceitual no contexto do Estado Democrático de Direito.

Tomando como marco teórico a Teoria Neoinstitucionaista do Processo, construída sob o enfoque do Estado Democrático de Direito, percebe-se que é possível a reconstrução desse conceito se o processo for entendido como direito-garantia constitucional. 

Segundo a Teoria Neo-Institucionalista, a imparcialidade não é um atributo da pessoa do juiz, mas sim um dever imposto pelo ordenamento jurídico. Exige-se que o julgador se abstenha de atuar no processo caso verifique a impossibilidade de promover o devido processo legal, tendo em vista o surgimento de circunstâncias que afetariam o princípio da isonomia.

Aqui, portanto, a figura do juiz como pacificador social é combatida, afastando-se, portanto, da ideia de líder carismático, a qual, assim como o modelo de processo dos instrumentalistas, também é incompatível com o denominado Estado Democrático de Direito previsto na Constituição de 1988.


CONCLUSÃO: DO INADEQUADO CARÁTER CARISMÁTICO E DISCRICIONÁRIO DO JUIZ PACIFICADOR

Revela-se incontestável a relação entre o tipo de dominação carismática proposta por Weber e a ideia de juiz como pacificador social defendida pelos instrumentalistas. Verifica-se que os adeptos da Escola Instrumentalista, decorrida da Teoria da Relação Jurídica, consideram como fatores legitimadores da decisão judicial os fatores metajurídicos, sociais.

A decisão judicial se torna legítima quando o magistrado, com sua sabedoria, promove a paz social.

Para tal corrente doutrinária, o juiz é considerado um indivíduo capaz de disseminar a justiça social. Suas convicções estão acima das partes, mostrando-se como um “ser superior” capaz de identificar a melhor maneira para a condução do processo e resolução do conflito.

Essa discricionariedade do juiz que demonstra o paternalismo de um ser sábio, onipotente e promovedor de justiça é que aproxima a concepção de líder carismático de Weber com a Escola Instrumentalista do Processo.

O que se constata é que são concepções compatíveis com os ideais do falido modelo do Estado Social, em que se objetiva o bem-estar da sociedade e dos indivíduos, dando prevalência a um interesse público, a uma vontade do Estado.

Por consequência, fica clara a inadequação aos objetivos do Estado Democrático de Direito, que propõe uma participação ativa dos cidadãos na defesa e construção de seus direitos.

O ponto em comum entre o juiz pacificador e o dominador carismático é a situação de passividade a que são submetidos os destinatários da sua decisão em razão da concepção de que referidos líderes são seres com uma sabedoria ímpar e com características de protetores sociais.

É quanto a isso que esse trabalho pretendeu tecer uma crítica.

Para isso, como marco teórico, foi adotada a Teoria Neoinstitucionalista do processo, elaborada por Rosemiro Pereira Leal, para apresentar uma nova visão do juiz na condução do processo e no exercício do poder estatal através da jurisdição.

Sabiamente, Rosemiro, ao formular sua teoria, abandona a tese de que o processo seja uma relação jurídica triangular entre autor, réu e juiz, em que este último está em posição de superioridade.

Para a Teoria Neoinstitucionalista do processo, o juiz não é um ser onipotente, superior às partes, razão pela qual não possui discricionariedade e não pode decidir com base em argumentos não racionais objetivando, uma paz social a todo custo.

Nesse sentido, Rosemiro critica os estudos da escola instrumentalista, entendendo que a mesma desconsidera o pressuposto da imparcialidade do juízo.

 Tal teórico faz a ressalva de que realmente é impossível o juiz se desvincular de seus preconceitos aos julgar uma causa. Entretanto, isso não impede que sua decisão seja imparcial.

A imparcialidade seria um pressuposto do juízo que exige que o juiz somente decida com base nos argumentos trazidos pelas partes através do contraditório e da ampla defesa, devendo o magistrado se desvincular da causa quando existir algum interesse pessoal nela.

Diante disso, a defesa pelos instrumentalistas de um juiz, próximo à ideia weberiana de líder carismático, que desconsidere o debate processual realizado pelos destinatários da decisão e impõe o seu pensamento, que seria superior, demonstra-se completamente equivocada, contrariando princípios institutivos como o contraditório e, por consequência, o Estado Democrático de Direito.   


ABSTRACT

This is the article in order to perform a critical analysis in interdisciplinary areas of Procedural Law and Sociology of Law, where the central problem is to demonstrate how the design of a judge of the School's instrumental process and the idea of ??Weber's charismatic leader are related and at the same time with the disconnection model of a democratic state. To this end, an analysis was initially performed on the Theory of Weber on the types of social domination, especially charismatic. Later, lectures about the school is instrumental in this process and the relationship with the idea of ??charismatic ruler. Then spoke up about the theoretical framework adopted: the neo-institutionalist theory of the process, from there the criticism of the discretion granted to the judge by the instrumentalists, feature very compatible with the dominant Weberian charismatic, which demonstrates the complete disregard for the presumption of impartiality of trial, due process and, therefore, the democratic state.Keywords: Charismatic Domination. School instrumental. Discretion. democratic state.

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REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Diogo Henrique Dias da Silva

Pós-Graduado em Processo Civil no CEAJUFE. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em Belo Horizonte. Advogado.

Simone Amalia Calili

Mestranda em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Camara.Pós- graduanda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011).Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Diogo Henrique Dias ; CALILI, Simone Amalia. Uma crítica interdisciplinar quanto ao exercício do poder pelo juiz: a correlação entre o juiz pacificador dos instrumentalistas e o líder carismático weberiano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3314, 28 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22320. Acesso em: 25 abr. 2024.

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