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O Caso Luciana Genro: para além do “aguilhão semântico”

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Luciana é hoje uma das maiores referências da oposição ao governo de seu pai, Tarso Genro. Contudo, a dogmática jurídica insiste em ver na Constituição uma hipótese de inelegibilidade que impediria sua candidatura ao cargo de vereador.

Apresentando o caso.

Há muito conhecida na política gaúcha e nacional, a ex-deputada Luciana Genro protagoniza atualmente um claro exemplo do descompasso em que vive a Teoria do Direito no Brasil, reafirmando o prejuízo que sofre a democracia quando se insiste em observar o novo com os olhos do velho.

Em poucas linhas, o senso comum jurídico tem alardeado aos quatro ventos que por força do art. 14º § 7º da Constituição Federal, Luciana teria seus direitos políticos cerceados a partir de 2011, eis que não se reelegera no ano anterior para o que seria seu terceiro mandato como Deputada Federal, agora pelo PSOL. Tudo em virtude do fato de que no mesmo pleito Tarso Genro (PT), seu pai, lograra êxito na disputa ao Governo do Rio Grande do Sul, o que deixaria devidamente caracterizada a subsunção do caso à previsão constitucional que torna inelegíveis, dentre outros, os parentes até segundo grau dos chefes dos poderes executivos dos três entes da Federação no âmbito de sua jurisdição.

É bem verdade que a relação política entre pai e filha é deveras peculiar, já que figuram em polos opostos desde 2003, quando ela fora expulsa do Partido dos Trabalhadores por divergências ideológicas com o Governo Federal (do qual seu pai fora ministro), tendo escrito, anos mais tarde, o livro “A falência do PT e a atualidade da luta socialista”[1], em que externa toda a sua discordância política com a agremiação da qual seu pai é uma das principais lideranças.

O fato de Luciana ser hoje uma das maiores referências da oposição ao Governo Tarso Genro em nada influenciou a postura da dogmática jurídica, que insiste em ver no inciso apontado uma intransponível barreira à sua intenção em candidatar-se ao cargo de vereadora em Porto Alegre. Uma liminar que impugnava sua candidatura foi derrubada à unanimidade pelo TRE-RS[2], o que (pasmem) não impediu que nova decisão fosse proferida dois dias depois, impedindo o registro da candidatura, eis que esse ato não fora mencionado no julgado do Tribunal[3]. Independentemente de a relação política ser de oposição, o fato de ser filha do Governador a enquadraria na vedação constitucional e a deixaria inelegível.  No máximo, admite-se a possibilidade de rediscutir o conceito de “jurisdição” para decidir se a do Chefe do Executivo Estadual abarcaria os municípios, sem notar que se repete um debate que já deveria ter sido superado juntamente com o positivismo sintático e que a questão reclama muito mais que uma análise de conceitos.


1.O antigo problema da relação entre texto e norma. Os fantasmas do positivismo exegético.

Umas das questões mais antigas no campo do direito é a discussão da relação “lei-direito”. Essa discussão se renova durante os dois milênios que se seguiram, chegando aos nossos dias com a mesma intensidade. Podemos nos surpreender, mas o cotidiano das práticas jurídicas nos mostra como essa equação “lei-direito” ainda não foi resolvida.  No direito, devemos lembrar que essa relação “texto-norma” foi trabalhada de forma originária por Friedrich Müller, secundado, no Brasil, por Eros Grau e, com um viés mais hermenêutico (filosófico), por Lenio Streck, que, de forma também originária, trouxe para o interior do problema o conceito de diferença ontológica de Heidegger.

Não é difícil perceber a quantidade de vezes em que juízes e tribunais apegam-se à “letra da lei”, como que a repetir a máxima do exegetismo francês “juiz boca da lei”. Por exemplo, para negar a possibilidade de pena abaixo do mínimo, o STJ se apega à “pura normatividade” (sic). Por outro lado, há inúmeras hipóteses em que juízes e tribunais chegam ao ponto de ignorar totalmente a aludida “letra da lei”. Streck[4] denuncia, com razão, privilegiado exemplo disso ao criticar decisão do STJ que nega a aplicação da “letra” do art. 212 do Código de Processo penal). O problema, portanto, está nas duas “pontas” do fenômeno.

Reconstruindo a história da teoria do direito, verifica-se que o século XIX foi a época áurea do positivismo jurídico[5]. Na França, o direito feito pelos legisladores era sustentado pela proibição de os juízes interpretarem a lei, a partir de um discurso (ideológico) denominado “positivismo exegético”. A revolução burguesa não confiava nos juízes, e via necessidade de consolidar sua vitória. Por isso os proibiam de fazer juízos de validade. Esta já estava dada de forma antecipada.

No mesmo século, a Alemanha aposta num direito feito pelos professores, naquilo que se denominou de Jurisprudência dos Conceitos, para assegurar as pandectas. Ali também o juízo de validade estava feito previamente. Ou seja, lei e direito eram a mesma coisa. No mundo do common law, o fenômeno se repetiu, sob a denominação de Jurisprudência Analítica, teoria produzida para sustentar o direito feito pelos juízes e a cultura de atrelamento ao precedente.

O que havia em comum nesses três tipos de positivismo que atravessaram o século XIX? A resposta é simples: a tese de que o direito cabia na lei. Texto e norma  se equivaliam para aquele primitivo positivismo. Na dimensão sintática da lei deveria estar abrangida toda e qualquer futura hipótese de aplicação. Os conceitos deveriam abarcar todas as hipóteses fáticas, passadas, presentes e futuras.[6]

Somente  no século XX se constatou a superação desses três tipos de positivismo (embora de raiz comum). O “século da razão” foi substituído pelo “século da vontade”. Para superar aquilo que Ferrajoli tão bem chama de paleojuspositivismo e Castanheira denomina de “positivismo legalista”, diversos movimentos e posturas teóricas se apresentaram: A jurisprudência dos interesses, O movimento do direito livre, A jurisprudência dos valores, As teorias da argumentação, O positivismo normativista kelseniano, As teorias realistas de cariz norte-americano e escandinavas, As teses advindas das correntes discursivos-procedimentais como Habermas, As teses decorrentes da hermenêutica filosófica e o interpretacionismo dworkiniano.

Em comum: todas elas, de algum modo, buscaram suplantar o “aprisionamento do direito no interior da lei”. Já na contemporaneidade, especialmente no Brasil pós-constituição de 1988, surgiram muitas teses buscando superar o formalismo juspositivista primitivo. O grande problema é que, no lugar do juiz bouche de la loi, considerável parcela da doutrina e da jurisprudência colocaram no seu lugar um juge des principe, que, por vezes, produz discursos para além da permissão legislativa/constitucional.

Esse fenômeno, entretanto, faz parte da evolução da teoria do direito. Entre sístoles e diástoles, o pensamento jurídico avança. Aos poucos, vamos derrotando o velho positivismo que, mesmo reconhecendo a importância de seu papel histórico, imperativo que se reconheça a necessidade de sua superação. Vale, então, compreender como esse movimento jus-filosófico funciona para que se evite injustiças quando o sistema jurídico padece do “ferrão semântico”, que, ao que consta, está vitimando o processo democrático-eleitoral, no qual está inserida a ex-deputada Luciana Genro que  aqui entra como um pano de fundo para uma discussão teorética mais profunda.


2.Ingressando no território (ainda) dominado pelas dimensões semânticas do direito.

Assimilando diferença ontológica entre  “as coisas” (a faticidade) e palavras, Tem-se que o direito – em sua complexidade – não cabe na lei, eis que esta não consegue abarcar todas as hipóteses de sua aplicação. Como na psicanálise, sempre fica algo de fora do conceito, dos significantes e dos significados. As palavras não refletem a essência das coisas (paradigma essencialista), como bem ilustra Lenio Streck[7]. E isso quer dizer, também, que a pretensão do século XIX – de aprisionar o direito na lei –  foi derrotada pelo avanço do paradigma da linguagem. Clara demonstração disso é o exemplo de Recaséns Siches. Se existisse uma lei que estabelecesse a proibição de levar cães na plataforma do trem, ela seria posta em xeque pelo primeiro cego que chegasse com seu cão-guia

Assim,  imperioso constatar que as leis não são feitas para abarcar todas as hipóteses fáticas pelo simples fato de que isso não é possível![8] Assim, a lei simbolicamente retrata a realidade. Só que a linguagem que a constrói não consegue alcançar a complexidade fática do real. No caso da lei que proíbe cães, há um sem número de situações não abarcadas pela semântica legal, a começar por uma criança carregando seu filhote de cãozinho (não perigoso e devidamente acondicionado). STRECK[9] também problematiza esse exemplo: se a lei proíbe cães, os ursos estariam permitidos? Mas, se fizermos uma interpretação extensiva da lei, colocando no lugar de cães a expressão “animais perigosos”, ainda assim ficaríamos face à um universo infindável: existe um catálogo que abrange todos os animais perigosos? A quem cabe(ria) definir o sentido de “animal perigoso”?

Portanto, a “hipótese do cego”, ao contrário do que se pode pensar, não arruína a semântica da lei. Na verdade, enriquece-a. E a cada novo fenômeno não abarcado pela lei, o intérprete será chamado para fazer uma atualização hermenêutica. Este é o paradoxo que enriquece a hermenêutica jurídica.

E, porque isso é assim? Porque hermenêutica é sempre aplicação (applicatio). Interpretar é aplicar, explica Gadamer, em Verdade e Método.[10] Não interpretamos em partes ou em fatias. É preciso que se supere essa fase da hermenêutica em que primeiro se conhecia, depois interpretava (compreendia) e só depois se aplicava (as três subtilitas: intelligendi, explicandi e aplicandi).

Na hermenêutica contemporânea, de cariz filosófico, todo ato de interpretação já é um ato de aplicação. Isso quer dizer que não existem respostas antes das perguntas. O sentido só exsurge no ato aplicativo, no caso concreto. Antes do caso, há apenas uma imaginatio. A applicatio é a concretude. É o sentido que se dá diante do caso concreto.[11]

Pois no “Caso Luciana” ocorreu exatamente essa “hipótese do cego com o seu cão guia”. Quando o legislador constituinte elaborou o texto, não imaginou hipóteses como a do caso que ora se discute. Como imaginar que pai e filha adversários políticos concorreriam no mesmo pleito, um a cargo majoritário e outro a proporcional e, um se elegendo – no caso, o pai – viesse a impedir a filha de concorrer a vereadora, sendo ele Governador e ela uma das principais opositoras do seu governo? Nem o mais detalhista filigraneiro! Nem a mais perfeita engenharia jurídica, no sentido mais estrito da palavra, conseguiria uma imaginatio desse jaez.

Para ser mais claro: o que quero dizer é que não se pode fazer a mesma interpretação do art. 14, §  7o da CF antes e depois da “hipótese Luciana”.  Tal qual “hipótese do cego” no exemplo do SICHES, sem a “hipótese Luciana” – isto é, o fator contingencial – tem-se uma situação e uma resposta. Depois, a interpretação se altera, porque os sentidos somente se dão no caso concreto, na faticidade.


Qual é a razão da existência do dispositivo constitucional? Quais são as situações alcançáveis pela semântica legal? 

A suposta inelegibilidade se daria, como dito, em razão do art. 14, §7º da Constituição Federal que estatui:

“São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos e afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.

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É bem verdade que Tarso Genro (PT) tomou posse como Governador do Estado do Rio Grande do Sul em 2011 e Luciana Genro (PSOL), sua filha, é/seria candidata ao cargo de vereadora da cidade de Porto Alegre, conforme se tema noticiado. Contudo, o parágrafo que estabelece a vedação não pode ser interpretado em apartado ao restante do texto constitucional. Interpretação não se faz em fatias, de maneira que não se pode negligenciar que o Brasil é uma Federação que compreende entes independentes e autônomos. Vejamos o estabelecido nos arts. 1º e 18:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

V - o pluralismo político.

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Assim, mesmo que se faça um raciocínio mais singelo, é possível concluir que a tese de que o Município esteja compreendido pela “jurisdição” do Governador, redunda em estabelecer uma hierarquia que afronta o texto constitucional. Despiciendo lembrar que inexiste subordinação entre Município e Estado Federado e isso fica claro até quando a CF define os bens do Estado:

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;

Alegar em contrário é ferir a autonomia estabelecida na Lei Maior, de forma a legitimar que intervenções de outra natureza se deem por parte da União com relação ao Estado. Passados cento e vinte e três anos da proclamação da República, e em razão do peso atribuído a essa expressa autonomia e independência, a “jurisdição” (sic) do Governador se dá no âmbito do Ente Federado que governa e tão somente. A questão é saber o que a Constituição quer dizer com “jurisdição”... Seria no sentido de juris dictio?


5 – As palavras da Lei e a função alográfica da teoria: Uma parada na “estação hermenêutica”.

Como já demonstrado, na interpretação de um texto – que é sempre um evento (fenômeno) – não podemos nos limitar à analise semântica (embora ela seja importante, por óbvio) acerca do que pode/deve ou não ser abarcado pelo conceito de uma expressão. No caso concreto, o busilis está na palavra “jurisdição.

O direito não é como as artes plásticas. Ele necessita de um intérprete e de uma teoria para ser compreendido. No dizer de Eros Grau[12] - e a problemática é retrabalhada por Streck em Hermenêutica Jurídica e(m) crise - o direito é alográfico. O sentido é atribuído “de fora”. As palavras da lei assumem um sentido próprio em um primeiro nível e, em um segundo, um sentido decorrente da applicatio. Não fosse assim e o marceneiro poderia ser intérprete da lei. Mas, ao ser intérprete – com o que estaríamos admitindo que o direito não é alográfico (ele seria autográfico!) – o marceneiro[13] poderia pensar, facilmente, que uma lei que dissesse que três pessoas disputarão uma cadeira no senado estaria tratando da disputa pelo móvel da casa legislativa. Na palavra furto estão as milhares de modalidades de furto? Na palavra jurisdição está o conceito de que?

Na mesma esteira, o conceito de contrato é repetido por qualquer calouro de direito: objeto lícito e contratantes maiores e capazes. Ainda assim, nas portas de qualquer colégio se veem crianças e sorveteiros subvertendo-o. Efetivamente, o direito não cabe na lei. Os sentidos da lei somente se dão na concretude. Se o direito não fosse alográfico, um bom linguista poderia ser o intérprete perfeito, dispensando qualquer formação jurídica.

Alguém picado pelo “aguilhão semântico” – termo cunhado por Ronald Dworkin para definir/criticar a postura justeórica de acreditar que as bases do direito estariam fixadas de forma incontroversa por meio de regras semânticas compartilhadas - poderia pensar que a dicção da palavra “jurisdição” seria autoexplicativa. Mas – e ainda bem – o direito é alográfico. Necessita do intérprete. Necessita da teoria. Necessita da faticidade.

Se uma lei proíbe o uso de topless na praia, o sentido na praia de Ipanema será um e em uma praia de nudismo exatamente o contrário (homenagem que se faz a Luis Alberto Warat, que gostava muito de usar esse exemplo para explicar a questão pragmática da linguagem). No primeiro caso se proíbe a falta e no segundo, o excesso. A palavra é a mesma. O contexto e a finalidade é que se alteram. Textos iguais produzindo normas diametralmente opostas. É evidente que, hermeneuticamente, todo texto tem (muita) importância, de maneira que não deve ser interpretado como se tivesse uma essência, nem ser descartado, como não tivesse importância.

Isso quer dizer que a palavra “jurisdição” não tem e não pode ter o sentido que lhe é dado pela processualística. Parece evidente que ela – a palavra jurisdição – aqui tem um sentido absolutamente próprio, ou seja, quer dizer algo como “a área de abrangência da dimensão do poder”. O que é jurisdição? O juiz tem jurisdição sobre a Comarca. O Presidente do Tribunal tem a sua jurisdição estendida para determinado território. Mas, onde está escrito que Governador tem jurisdição? Unicamente no art. 14, § 7º, da CF.

Portanto, parece claro que a palavra jurisdição deve ser entendida no contexto daquilo que está no âmbito das possibilidades concretizadoras da norma-programa. A lei – o dispositivo constitucional – foi feita para evitar a exploração do prestígio, e nesse sentido existe uma tradição de julgados. Logo, ficam de fora do caso concreto as hipóteses em que essa exploração se mostrar impossível, como no caso de pai e filha serem de partidos diferentes (e politicamente opostos) e no caso da “jurisdição” (sic) ser de outra alçada.


6. A questão da vontade da lei e da vontade do legislador: quem sabe falemos em uma “possibilidade hermenêutica”?

Malgrado superado o vetusto debate entre mens legis e mens legislatoris, é evidente que sempre é possível vislumbrar a finalidade de um texto jurídico. Isso sempre será feito a partir da investigação principiológica. Qual é o princípio que está por trás da regra? No exemplo, o que a regra da proibição de conduzir cães na plataforma protege? Evidentemente a segurança dos passageiros.

Todo enunciado normativo deve passar pelo filtro das hipóteses aplicativas decorrentes da norma-programa. O dispositivo constitucional deve passar pelo texto das várias possibilidades que se colocam objetivamente. No caso do art. 14, § 7º, da CF: se o objetivo da proibição constitucional de haver candidaturas entre pai e filho diz respeito - e vamos nos fixar no acordão do Ministro Eros Grau (RE 543.117-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24-6-2008, Segunda Turma, DJE de 22-8-2008.) - é o de impedir a formação de dinastias politicas, esse dispositivo resistiria a uma hipótese fática em que a filha concorresse ao cargo de governador contra o pai? A resposta a essa pergunta é fatal. É condição de possibilidade. Se, em um determinado caso, a única forma popular-representativa de derrubar/derrotar uma dinastia – e assim ir ao encontro da finalidade do texto constitucional – é o filho ou filha concorrendo contra o pai (este em candidatura à reeleição), ainda assim se manteria a proibição? Em caso de resposta positiva, ao proibir que uma filha não possa concorrer contra o pai (atual ocupante) pelo cargo de governador, a lei estará sendo aplicada contra a sua exata finalidade e obstaculizando a democracia em vez de reafirma-la.

Contudo, se finalmente entendermos que um filho pode tentar desbancar o pai do cargo de Governador – porque ele faz oposição política àquele -, então estaremos admitindo que o dispositivo possui exceções, e com isso, concluindo que o texto não se basta.

Consequentemente, poderemos fazer uma leitura constitucionalmente adequada do mesmo, no sentido de que a vedação não se aplica às hipóteses em que a candidatura estiver fora do âmbito da abrangência do cargo do parente detentor do mandato e nas hipóteses em que o parente candidato for de partido opositor ao detentor do mandato. Afinal, não estamos em democracia de partidos? Logo, há que se respeitar e entender que, na democracia brasileira, os partidos têm importância. Fala-se, obviamente, de uma real e ideológica oposição, descartando-se as de “fachada” que visem escamotear a vedação constitucional.. 

Dessa forma, admitindo a finalidade principiológica como sustentáculo da regra e que este aponta para o impedimento de que o cargo no Poder Executivo influencie o mandato no legislativo, evitando-se a formação de dinastias (e está correto neste ponto o TSE), temos que admitir que, no caso em tela, isso inexistiria, pela simples razão de que Luciana fora expulsa do Partido por fazer oposição ao Governo Federal do qual seu pai fazia parte. Na verdade, ao que consta, ela segue na oposição à gestão que seu pai faz no Governo Estadual, conforme constatável nos diversos meios de comunicação.


7 – Conclusão: a hermenêutica como vacina/antídoto contra o ferrão semântico da interpretação.

a) O “caso Luciana” deve ser compreendido em seu sentido mais profundo: o hermenêutico-aplicativo. O direito necessita de uma teoria, logo, suas palavras não têm, necessariamente, o mesmo significado para todas as pessoas e em todas as áreas do conhecimento. Se a temática está fulcrada na palavra “jurisdição”, não podemos correr o risco de sermos atingidos-picados pelo aguilhão semântico.

b) Esse aguilhão faz com que se pense que a semântica resolve qualquer caso. É como se pudéssemos ter todas as respostas antes das perguntas.[14] Um olhar para além da semântica e para além desse “ferrão semântico” vai mostrar que a expressão “jurisdição” adquire um sentido próprio, um sentido que o harmonize com a norma-programa que exsurge do sentido do conjunto enunciativo da Constituição. Caso contrário, cairemos em uma espécie de “desvio de finalidade interpretativo”: ao entendermos a palavra jurisdição do modo como tem entendido o TSE, estaremos sepultando uma série de dispositivos e princípios constitucionais, todos vinculados a questão republicana, ao pluralismo político e à democracia participativa (ou participação da população na democracia representativa).

c) Os testes a que devem ser submetidos os textos jurídicos sempre dependerão do contexto aplicativo. Não podemos responder de antemão em que circunstâncias alguém será inelegível. Assim como o “legislador” do crime de furto não previu que alguém pudesse furtar para comer, também o legislador constituinte não poderia prever um caso tão intrincado como esse que acabamos de discutir. E se, no limite, chegássemos ao consenso no sentido de que efetivamente o texto não dá a margem que se pretende (vale lembrar dos sentidos diversos em contextos diferentes), ainda assim, antes de encerrar o caso, teríamos que fazer um teste final: se de fato um filho não pude ser candidato a mandato legislativo na esfera Municipal e Estadual quando seu pai for Governador, poderia ele tentar concorrer contra o pai, para desbancá-lo, candidatando-se por um partido de oposição? Se a resposta for afirmativa, então é porque a regra admite exceções. Do contrário, corremos o risco de continuarmos sendo picados pelo ferrão (aguilhão) semântico!


[1] GENRO, Luciana; ROBAINA,Roberto. “A Falencia do PT”. Porto Alegre: ed. LPM. 2006.

[2] Vide http://www.tre-rs.gov.br/index.php?item=1635 acessado em 27 de julho de 2012.

[3] http://polibiobraga.blogspot.com.br/2012/07/juiza-eleitoral-impugna-candidatura-de.html acessado em 27 de julho de 2012

[4] STRECK, Lenio Luiz. TOMÁZ DE OLIVEIRA, Rafael. “O que é isto? As Garantias Processuais Penais. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado. 2012.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4ª. Ed. São Paulo, Saraiva, 2011; do mesmo autor,  “Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista” disponível em: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308

[06] Cf. Streck, Verdade e Consenso, op.cit; tb. Hermenêutica Juridica em Crise, op.cit.

[07] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[08] STRECK, Lenio Luiz. “Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista” disponível em: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308

[09] Ver STRECK, Lenio Luiz. “Os Perigos do neopetencostalismo jurídico – parte II” disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jul-26/senso-incomum-perigos-neopentecostalismo-juridico-parte-ii

[10] GADAMER, Hans-Georg.Verdade e Método, V.1 e 2.. Vozes, 2008.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[12] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2 ed.

[13] STRECK, Lenio Luiz em: http://www.conjur.com.br/2012-abr-19/senso-incomum-jurisprudencia-transita-entre-objetivismo-subjetivismo

[14] Como bem diz Lenio Streck (em especial, em Verdade e Consenso, op.cit), há uma diferença entre a hermenêutica e as posturas positivistas em geral. Essa diferença está na seguinte questão: as posturas positivistas pretendem sempre dar respostas antes das perguntas; na hermenêutica, só teremos respostas depois de fazermos perguntas bem elaboradas. Ou seja, os sentidos somente se dão na aplicação.

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Sobre os autores
Edson Vieira

Professor Universitário. Mestre em Direito (UFPR). Doutor em Direito (Estácio de Sá - RJ).

Saulo Salvador Salomão

Advogado. Professor Universitário. Especialista e Mestrando em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Edson ; SALOMÃO, Saulo Salvador. O Caso Luciana Genro: para além do “aguilhão semântico” . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3316, 30 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22332. Acesso em: 28 mar. 2024.

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