RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o pensamento de Jürgen Habermas contido no Capítulo III do Volume I da obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”. Assim, este estudo busca, sem a pretensão de esgotar o assunto, reconstruir passo a passo o pensamento habermasiano de aplicação da racionalidade comunicativa como uma das possibilidades de solução para as questões referentes ao princípio da democracia e a legitimidade do direito a partir da chamada teoria discursiva do direito.
Palavras-chave: Habermas; princípio da democracia; legitimidade; teoria discursiva do direito.
1 INTRODUÇÃO
A Modernidade, que indubitavelmente trouxe milhares de avanços em todas as áreas do conhecimento científico, não conseguiu afastar definitivamente as dúvidas da humanidade e as temíveis situações de crise social, política, filosófica e econômica. Partiu-se da cega crença que todos os problemas poderiam ser resolvidos pela ciência, num cálculo frio e puramente teórico. A razão assumiu o papel de poder reformador e mobilizador da sociedade, e logo identificada como o que se convencionou chamar de razão instrumental.
Assim como almejado pelo Iluminismo, a ciência, pelo uso da razão, dita as regras. Independentemente da moral e da ética, se é possível comprovar o resultado através da teoria científica, então a medida deve ser adotada já que correta. Não há espaço para indagações de cunho autônomo individual, estranho àquele que fora determinado como modelo pela razão instrumental. Notável, portanto, que a razão instrumental não só conquistou espaço marcante na filosofia moderna pela incessante busca a absoluta concretização de objetivos como impôs sua característica universalizadora e determinante.
Em contrapartida, esta característica revela um aspecto perverso, pois tende à homogeneização dos indivíduos, posicionando-os numa vala comum. Todos devem ser iguais e adequados ao modelo idealizado pela razão instrumental, independentemente das convicções pessoais e diferenças intrínsecas de cada um. As diferenças devem ser eliminadas.
O grande exemplo levantado pelos críticos da Modernidade e do uso indiscriminado da razão instrumental se encontra nos campos de concentração de Auschwitz, pois aqueles que não se encaixavam no modelo padrão de serem da raça alemã, deveriam não somente ser marginalizados como eliminados da sociedade. E a razão instrumental, origem das tomadas de decisões da sociedade moderna, se mostrou incapaz de explicar as atrocidades cometidas pelos nazistas.
A humanidade, a partir deste e outros episódios, entrou em um estado de perplexidade. Atrocidades como as cometidas em Auschwitz foram legitimadas pela própria legislação alemã, advinda do modelo de racionalidade predominante que até então trazia resposta a todos os questionamentos da humanidade. Consequentemente, o pensamento moderno a partir deste período começou a enfrentar uma grande crise: como superar o problema da legitimidade do Direito a partir do estudo da razão, categoria fundamental da filosofia?
Enfrentando este problema se destaca a teoria crítica da sociedade formulada pela Escola de Frankfurt[1]. Marcada por sua interdisciplinaridade, esta teoria fornece diversos conceitos de análise dos complexos fatores de transformação social da Modernidade. Desenvolve-se como uma forma aguçada de diagnóstico da sociedade moderna, de solidificação da base teórica sobre o seu desenvolvimento histórico, social e filosófico.
Sem ignorar os avanços trazidos pelo modelo de racionalidade moderno, a teoria crítica da sociedade é voltada principalmente para a prática, defendendo a emancipação social, a implementação das necessidades humanas em novos níveis e contra as injustiças sociais e opressões homogeneizantes. Acrescenta, dessa maneira, um ingrediente ético à filosofia, combatendo a tão marcante análise fria e calculista da Modernidade sobre o mundo da vida.
No tocante ao problema específico do direito, destaca-se na Escola de Frankfurt o pensamento de Jürgen Habermas que, através de sua teoria da ação comunicativa, busca solucionar o problema da legitimidade do direito ser originária da própria legalidade, tendo como pano de fundo o princípio da democracia. Assim, a partir de uma perspectiva discursiva, de uma filosofia própria da linguagem, Habermas dá novo significado à racionalidade, afastando-se da razão instrumental e aproximando-se da razão comunicativa.
Este artigo, sem a pretensão de esgotar o assunto, tem como objetivo analisar cada um destes conceitos, bem como reconstruir passo a passo a teoria habermasiana discursiva do direito, na tentativa de apresentá-la de forma sucinta ao leitor a partir do Capítulo III do Volume I da obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Direito subjetivo e legitimidade
Habermas inicia seu estudo a partir das diversas concepções de direito subjetivo que surgiram ao longo da história. Através de sua obra[2], é possível identificar cinco diferentes conceitos de direito subjetivo que ora se adéquam a desdobramentos morais independentes, ora são limitados a planificações no direito objetivo.
O primeiro deles é ligado à corrente idealista de Kant, para quem os direitos subjetivos são direitos negativos que protegem os espaços da ação individual, impedindo intervenções ilícitas na órbita da liberdade, vida e propriedade, garantindo, assim, a autonomia privada. É uma teoria com preponderância subjetiva
O segundo conceito apresentado por Habermas tem origem no pensamento de Windscheid, o qual entende que os direitos subjetivos são somente reflexos de uma ordem jurídica, ou seja, o indivíduo só possui tais direitos porque estes estão objetivamente incorporados. O agir é assegurado pela ordem jurídica, mas a vontade é essencial. Dessa forma, Windscheid “enxerga essencialmente o direito subjetivo em função do elemento volitivo[3]”.
Posteriormente, Ihering insurge-se contra esta concepção, apresentando um novo conceito de direito subjetivo apoiado em sua visão utilitarista, para o qual o proveito constitui a substância do direito, e não a vontade. O direito subjetivo é um poder jurídico, mas sua finalidade é a satisfação dos interesses humanos. Não diz respeito apenas ao indivíduo, mas também à participação em realizações organizadas. Portanto, “o direito subjetivo é um interesse juridicamente protegido[4]”.
O quarto conceito de direitos subjetivos na linha desenvolvida por Habermas é aquele concebido por Kelsen, o qual entende que direitos subjetivos são liberdades asseguradas objetiva e juridicamente. A validade do direito é encontrada de maneira deontológica, isto é, as proposições jurídicas é que estabelecem as liberdades de ação. Não há, pois, proteção do direito subjetivo, mas sua previsão no plano deontológico da ordem jurídica. Direito se confunde com Estado. O conceito de direito e moral, dessa forma, são separados, abrindo caminho para uma visão funcionalista dos direitos subjetivos.
Por fim, Habermas apresenta o conceito de Raiser, que tenta reintroduzir no direito privado o conteúdo moral, transferindo a responsabilidade para a própria pessoa mas sem se esquecer dos direitos sociais. O indivíduo é visto não só como um particular, mas também como membro da sociedade.
Apesar do grande avanço do pensamento e concepção de direito subjetivo ao longo do tempo, Habermas entende que nenhum destes conceitos consegue satisfatoriamente explicar a fonte da legitimidade do direito positivo. Afinal, ao dar autonomia aos direitos subjetivos como desdobramentos morais independentes, não é possível fundamentá-los no âmbito da teoria do direito. Por outro lado, ao planificá-los no direito objetivo, colocam-se os direitos subjetivos em plano inferior, com sua legitimidade limitada à legalidade de uma dominação política.
É preciso, então, buscar nova solução para a questão da legitimidade, que Habermas tenta encontrar pela análise dos pensamentos de Hobbes através de uma visão kantiana. Habermas assevera que Hobbes tenta estabelecer um sistema de direitos burgueses sem o uso de argumentos morais, levando em conta somente o auto-interesse esclarecido dos participantes.
Partindo de uma visão kantiana, Habermas entende que Hobbes teoriza um Estado sem democracia, em que o soberano através de suas ordens propicia liberdades subjetivas às pessoas. Dessa forma, a questão da legitimação é resolvida já no momento em que se outorga poder ao soberano na constituição do Estado, instrumentalizada pelo chamado contrato de dominação.
É da própria finalidade dos participantes do Estado que o poder seja colocado dessa forma e, portanto, não há qualquer necessidade de se fundamentar normativamente a dominação política conforme o direito. O soberano irá fazer com que o maior número de pessoas possível se sinta bem por mais tempo possível.
Apesar de toda construção teórica, Habermas encontra diversas falhas no pensamento hobbesiano, A primeira falha apresentada em sua obra é a presunção de que se todos se encontram em um estado natural antes da celebração do contrato, eles teriam que compreender o significado de uma relação social apoiada no princípio da reciprocidade. Todavia, os sujeitos, individualistas em decorrência de seu estado natural, não consideram a perspectiva de uma segunda pessoa e, sendo assim, sua própria liberdade só possui obstáculos fáticos. Para entender esses conceitos, os indivíduos já teriam que já ter todo esse conhecimento prévio.
Como consequência disto, há outra falha apontada por Habermas que diz respeito aos partidos que celebram o contrato de dominação. Estes têm que se entenderem como “nós”, algo inadmissível para um estado natural. O pensamento é a partir do “eu” (individualista) e, portanto, no estado natural não é possível avaliar se as leis gerais são do interesse simétrico de todos.
Em seguida Habermas passa a se valer das críticas formuladas por Kant, o qual entende que direitos subjetivos não podem ser fundamentados em um modelo do direito privado. Há diferenças substanciais em um contrato de socialização e um contrato privado. O contrato privado, que tem como escopo atingir determinada finalidade desejada pelas partes. Diverso é o contrato social, que é um fim em si mesmo, criado para institucionalizar o direito natural a iguais liberdades de ação subjetivas. Fundamenta
o direito dos homens (a viver) sob leis coercitivas públicas, através das quais pode ser determinado a cada um o que é seu e assegurado contra a usurpação por parte de todos os outros[5].
Para Kant, de forma imprecisa e levando em consideração o pensamento de Rousseau, o princípio do direito realiza uma mediação entre a moral e a democracia. Baseia a autonomia privada que fundamenta os direitos do homem na construção do imperativo categórico que, em última análise, possui uma perspectiva privada. Tais direitos são positivados democraticamente. Há, assim, uma verdadeira interligação entre os princípios da moral e da democracia, encobertas pela doutrina do direito. Habermas critica esse posicionamento, pois entende que existe na verdade uma relação de concorrência entre os direitos humanos fundamentados moralmente e a soberania do povo[6].
2.2 Direitos humanos e princípio da soberania do povo
Habermas passa então a examinar a questão da relação entre direitos humanos e o princípio da soberania popular. Para tanto, utiliza-se da dicotomia política de liberais e republicanos, principalmente como meio de entender a interpretação dos direitos humanos “como expressão de uma autodeterminação moral e a soberania do povo como expressão da auto-realização ética[7]”, relacionando-se de forma concorrente e não como elementos complementares.
Observa em primeiro lugar as duas correntes que buscam fundamentar a existência dos direitos humanos, relacionando-as de acordo com o ramo político seguido. Republicanos os encaram como um elemento tradicional assumido conscientemente, adquiridos através da auto-organização espontânea do povo. Em contrapartida, liberais entendem que os direitos humanos são uma garantia pré-política do indivíduo[8]. Verificando uma aproximação de uma ou de outra corrente política do pensamento de Kant e Rousseau, Habermas passa a analisá-las para compreender o papel da autonomia política na relação entre direitos e soberania popular.
Kant, ao extrair o princípio geral do direito da aplicação do princípio moral a “relações externas[9]”, se aproxima mais da concepção liberal, haja vista que os direitos subjetivos advêm da própria humanidade. Entende que é uma regra primordial que regulamenta o “meu e teu interior”, de maneira irrenunciável e imperecível. É, pois, precedente à discussão de leis públicas, independente da autonomia política dos cidadãos e se legitima a partir de princípios morais. Assim, há uma passagem da moral para o direito, sem levar em consideração o contrato da sociedade.
O pensamento de Rousseau, por sua vez, se alinha mais à doutrina republicana, já que introduz a fortiori um nexo interno entre soberania popular e os direitos humanos. O conteúdo normativo dos direitos humanos está dissolvido no modo de realização da soberania popular. As liberdades subjetivas são garantidas igualmente - e somente as que dessa forma podem ser garantidas – a todos por meio de um processo de legislação democrática.
Habermas critica esta visão de Rousseau, não concordando que o conteúdo normativo dos direitos humanos surja a partir da gramática de leis gerais e abstratas. A igualdade não pode ser alcançada por meio de qualidade lógico-semântica, até porque não esclarece a questão da sua validade. A evidência da igualdade é encontrada somente sob condições pragmáticas, de superioridade do melhor discurso.
Neste sentido, o nexo interno entre soberania popular e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade. Tal nexo não foi encontrado por Kant nem Rousseau. E assim defende Habermas:
Se a vontade racional só pode formar-se no sujeito singular, então a autonomia moral dos sujeitos singulares deve passar através da autonomia política da vontade unida de todos, a fim de garantir antecipadamente, por meio do direito natural, a autonomia privada de cada um. Se a vontade racional só pode formar-se no sujeito superdimensionado de um povo ou de uma nação, então a autonomia política deve ser entendida como a realização autoconsciente da essência ética de uma comunidade concreta; e a autonomia privada só é protegida contra o poder subjugador da autonomia política através da forma não-discriminadora de leis gerais[10].
Na visão de Habermas, como o discurso forma a vontade racional, então a legitimidade do Direito está contida num arranjo comunicativo. Através dos debates e dos argumentos apresentados, será avaliado se uma norma merece ser institucionalizada juridicamente.
2.3 Direito e moral
Para compreender a relação entre a racionalidade comunicativa de Habermas e o que ele chama de forma jurídica, é preciso em primeiro lugar entender como Kant distingue o direito da moral. Afinal, é a partir desta distinção que em sua obra Habermas justifica o entrelaçamento de todos os conceitos que serão apresentados.
Kant identifica algumas características essenciais tanto do direito quanto da moral que justifica a sua diferenciação. No seu pensamento, a moral deve ser autônoma, isto é, deve ter a aptidão de por a si mesma a sua lei. Esta autonomia indica a exigência suprema que existe no plano moral de uma adequação ou de uma conformidade absoluta entre a regra e a vontade pura do sujeito obrigado[11].
Invertendo o pensamento tradicional, Kant entende que por ser responsável, o homem é livre. A moral kantista, pois, está centrada na ideia do imperativo, sendo o homem livre porque deve agir conforme a sua consciência. Assim, o dever está inserido no imperativo categórico que prescreve uma ação que por si mesma é objetivamente necessária. Por isso, a autonomia da moral, independente de qualquer outra justificação, denota o caráter de ser um fim em si mesmo.
O direito, por sua vez, é um instrumento de fins, de motivação externa. Daí decorre a sua característica heterônoma, pois visa à manutenção da ordem pública. Não é necessária a correspondência íntima do sujeito com a norma jurídica, apenas a conformidade extrínseca[12]. À normatividade do direito devem ser submetidos todos que vivem em determinada sociedade ao qual ele é aplicado, pois imposto como expressão de uma vontade coletiva ou do legislador. E sendo assim, invoca-se a coação como elemento necessário ao direito, como forma de dar-lhe efetividade. O direito está intimamente ligado à faculdade de coagir. A forma jurídica, pois, tem como elementos a liberdade subjetiva de ação e a coação.
A distinção entre direito e moral é clara, mas nem por isso são incompatíveis. Habermas, ainda que se aproveitando parcialmente da concepção kantiana, não adota em sua teorização a visão abstrata e reducionista de Kant. Pelo contrário, defende que o direito e a moral possuem uma relação de complementaridade. A moral não é limitada pela legalidade, mas é autônoma. Ela pode se posicionar de forma crítica a todas as orientações da ação. É um sistema de saber.
Para Habermas, direito e moral são tipos diferentes de normas de ação. A moral representa uma forma do saber cultural, enquanto que o Direito adquire obrigatoriedade também no nível institucional. “O direito não é apenas um sistema de símbolos, mas também um sistema de ação[13].” Seu texto é repleto de proposições e, ao mesmo tempo, de um complexo de regulativos da ação organizados formal e sistematicamente.
Nas palavras do filósofo:
Normas morais regulam relações interpessoais e conflitos entre pessoas naturais, que se reconhecem reciprocamente como membros de uma comunidade concreta e, ao mesmo tempo, como indivíduos insubstituíveis. Eles se dirigem a pessoas individuadas através de sua história de vida. Ao passo que normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre atores que se reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, criada através das normas do direito[14].
Além disso, o agir moral possui certas exigências cognitivas, a saber: motivacionais, organizatórias e inauditas. As exigências motivacionais significam que a moral da razão configura apenas um procedimento para a avaliação imparcial de questões controversas. É a formação pelo próprio indivíduo de seu juízo, para que depois haja, se possível, a normatização do direito. É a situação em que o sujeito deve advogar em favor de seu discurso em busca de uma solução consensual.
As exigências organizatórias podem ser traduzidas no sentido em que a moral da razão cria expectativas no indivíduo em relação a sua força de vontade. Neste segundo momento, o ator deve demonstrar se possui uma vontade forte o suficiente para harmonizar o dever e a obrigação com suas intuições morais. No caso de uma vontade fraca, há a imputabilidade, devendo o ator se sujeitar a normatização do direito.
Por fim, as inauditas que, como consequência do caráter universalista da moral da razão, diz que a imputabilidade das obrigações exige esforços cooperativos ou realizações organizacionais. Assim, é necessária uma cadeia de ações anônimas, que só encontrarão destinatários claros dentro de um sistema de regras auto-aplicáveis.
Fica afastada, pois, a visão platônica de que o direito é uma mera cópia da moral e vice-versa, apenas diferenciando-se por serem projetadas em níveis diferentes. As normas partem daquelas de ação geral e se dividem entre regras morais e jurídicas. Essa dicotomia é equivalente a co-originariedade da autonomia moral e política à luz do princípio do discurso, este que fundamenta imparcialmente as normas de ação, já que reconhece simetricamente as formas de vida estruturadas comunicativamente.
2.4 Princípio do discurso, princípio da democracia e direito: a teoria discursiva do direito
Este mencionado princípio do discurso fundamenta a validade das normas de ação as quais todos os possíveis atingidos podem dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais[15]. Neste diapasão, a validade deve ser compreendida como normas de ação, que são expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente, e proposições normativas gerais correspondentes. Atingidos são aqueles que terão seus interesses afetados pelas prováveis consequências da regulamentação. Por fim, discurso racional é toda tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas através da argumentação no espaço público.
Tais requisitos também são explicitados por Alexy, que foram resumidos por Dutra da seguinte maneira:
a) todos podem participar de discursos;
b) todos podem problematizar qualquer asserção;
c) todos podem introduzir qualquer asserção no discurso;
d) todos podem manifestar suas atitudes, desejos e necessidades;
e) todos podem exercer os direitos acima[16].
Neste sentido, é verificado que o princípio do discurso pode ser desdobrado pelo princípio da universalização, pois a regra é aplicada a todos indistintamente e sem ser de maneira coativa, e o princípio da democracia, já que o discurso racional é aferido a partir do assentimento de todos num processo jurídico de normatização discursiva. Além disso, vale lembrar que o princípio do discurso formulado por Habermas é neutro, isto é, aplicável tanto às normas morais quanto jurídicas. Por isso, possui consequências próprias em cada tipo de norma de ação.
Quando se relaciona com a moral, o princípio do discurso, especificamente o princípio da democracia, revela que aquela só ganha efetividade em domínios vizinhos em sociedades complexas quando é traduzida para o direito. Esse pensamento parte da legitimidade da normatização do direito através do princípio da democracia, que traz validade às normas com o assentimento de todos os envolvidos na normatização discursiva.
Por isso mesmo, o princípio democrático não se encontra no mesmo nível que o da moral. Princípio moral “funciona como regra de argumentação para a decisão racional de questões morais[17]”, ele é interno. Princípio da democracia, que é externo,
pressupõe preliminarmente a possibilidade da decisão racional de questões práticas, mais precisamente, a possibilidade de todas as fundamentações, a serem realizadas em discursos (e negociações reguladas pelo procedimento), das quais depende a legitimidade das leis[18].
Nota-se, portanto, que a construção de Habermas do princípio do discurso, embora geral, engloba as normas de ação ramificadas em normas de ações morais e normas de ações jurídicas, verificando uma diversificação quanto o âmbito de aplicação, se interno ou externo, sendo que este último dependente do crivo do princípio da democracia.
Parte daí a noção de autolegislação dos cidadãos. Há um direito de liberdades subjetivas iguais fundamentado moralmente que necessita de positivação do legislador político. Além disso, é necessário que a normatização seja politicamente autônoma para a correta compreensão da ordem jurídica. Como esclarecido alhures, sendo o direito autônomo, a sua coercitividade apenas faculta os destinatários a exercer sua liberdade comunicativa, podendo esta faculdade ser renunciada. Deve ser permitido que o ator calcule as vantagens e decida arbitrariamente.
Liberdade comunicativa dos atores deve ser entendida como um pressuposto para o entendimento entre atores sobre algo quando já realizado o debate de pretensões de validade reciprocamente levantadas. Advém da autonomia privada garantida pelas liberdades subjetivas de cada indivíduo, que a exerce em um espaço público próprio para tanto.
No núcleo do exercício dessa liberdade comunicativa na formação da norma jurídica está o princípio da democracia que Habermas define como o resultado da interligação entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Neste sentido, pode-se dizer que se faz democracia quando todos os possíveis atingidos podem dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais, sendo este o exercício e uma garantia originária da liberdade subjetiva de ação, dando por resultado a forma jurídica, que nada mais é do que a previsão de uma liberdade subjetiva de ação debatida e acompanhada de uma coação.
Antes de prosseguir com as consequências deste procedimento democrático, é importante ressaltar uma questão prática acerca da participação de todos os atingidos pela decisão a ser tomada. A depender da situação a ser regulamentada, não é complicado imaginar que nem todos os atores sociais poderão dar a sua opinião direta e livremente, sob pena de inviabilizar o debate e a resolução do problema. Transparecem limitações como a forma representativa ou delegada, adotada principalmente no Poder Legislativo, e a deliberação sobre determinado assunto através do voto da maioria que parecem em uma primeira leitura inviabilizar a teoria habermasiana. Como, neste contexto, sustentar a teoria do discurso como a aplicação do princípio da democracia?
No tocante a primeira limitação, a justificativa se encontra na própria influência que o espaço público, de natureza difusa e não-organizável, exerce sobre o sistema político oficial. O poder comunicativo exercido pela esfera pública e pela sociedade civil, gerador de conteúdos múltiplos, influencia o parlamento na sua tomada de decisões. Por isso mesmo, os representantes e delegados, na percepção do conteúdo dos interesses de cunho social, tomam decisões que podem ser consideradas representativas dos diversos atores sociais envolvidos.
A regra da maioria, por sua vez, é exigência da própria pressão para a tomada de decisão, isto é, meio facilitador de conclusão de determinada deliberação por conta de sua urgência. É, portanto, um mecanismo de celeridade e efetivação das deliberações.
Nítida a importante perda que a representatividade e a regra da maioria causam na menor participação dos atores e o consequente esvaziamento da inclusão de argumentos que, com certa probabilidade, poderiam influir numa conclusão diversa daquela alcançada. Esta distorção, todavia, não foi ignorada por Habermas e duas distintas posturas podem ser adotadas para evitá-la. A primeira consiste na utilização de medidas acautelatórias pré-estabelecidas e válidas – já que em consonância com a liberdade comunicativa – como uma triagem daqueles argumentos que, dada a sua relevância, tem o poder de convencimento necessário para acompanhar o debate em uma nova instância[19]. A segunda postura, adotada em momento posterior à chegada em um consenso e tomada de decisão, é a própria admissão de que decisões, embora tomadas em respeito à teoria discursiva, podem ser equivocadas. Neste sentido, Habermas retoma a ideia de co-originariedade das normas de ação moral e do direito, dando margem à revisão de uma decisão, pois “a ordem jurídica não pode contrariar princípios morais[20]”.
Retomando o procedimento democrático habermasiano, o princípio do discurso atrelado à forma jurídica e tendo como núcleo o princípio da democracia origina um sistema de direitos que Habermas classifica em cinco grandes grupos de direitos fundamentais. Conjuntamente, estes grupos são intitulados como código jurídico, haja vista que determinam o status das pessoas de direito.
O primeiro grupo de direitos fundamentais apresentado por Habermas são aqueles resultantes do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. Como correlatos necessários, existem os direitos fundamentais resultantes do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito e os direitos fundamentais resultantes imediatos da possibilidade de postulação judicial de direitos e da proteção jurídica individual.
O quarto grupo refere-se aos direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercem sua autonomia política e através dos quais criam direito legítimo. É a garantia jurídica de exercício da liberdade comunicativa.
O último grupo é consequência dos anteriores. É composto pelos direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos anteriores.
Habermas aduz um tratamento especial para os direitos fundamentais dos quatro primeiros grupos, atribuindo-os um caráter absoluto, pois “remetem à própria estrutura discursiva da racionalidade comunicativa[21]” e “remetem à possibilidade da própria legitimidade do ordenamento jurídico[22]”. O último grupo, contudo, são fundamentados de modo relativo, pois ainda que exigidos pelos anteriores, não haveria a necessidade de serem formulados se já efetivos numa sociedade. De qualquer modo, todos estes direitos, a sua maneira, contribuem para o tratamento igualitário entre os diversos atores, garantindo sua autonomia privada e participação no debate público para formulação das normas jurídicas as quais serão destinatários.