Resumo: Com este artigo procura-se introduzir a questão da origem social das normas morais e jurídicas a partir da obra de Hans Kelsen e solucionar, de forma breve, o problema da conciliação do método lógico-transcendental da Teoria pura com a filosofia positivista e empirista do autor.
Palavras-chaves: Normas. Direito. Moral. Kelsen. Fundamentação.
Introdução
O artigo trata da exposição dos conceitos necessários para compreender o problema epistemológico da distinção entre Direito e Moral em Kelsen e as dificuldades daí resultantes, mais especificamente o problema da origem social das normas e a fundamentação lógico-transcendental da Teoria pura do Direito (TPD). Desde a pureza metódica ao relativismo moral há pressupostos cognitivos que necessitam de esmerado esclarecimento: fundamentalmente a distinção entre conhecimento e seu objeto representa uma densa variável: problema advindo da formação humiana antimetafísica e do seu aprofundamento kantiano. Esse problema vem expresso inicialmente na Teoria pura e é a partir da confusão entre conhecimento e objeto, isto é, entre a origem das normas e a formação da ciência do direito, que advém a cultura jusnaturalista.
A abordagem do problema se dará enfrentando a primeira variável epistemológica da Teoria pura – a origem social das normas jurídicas e morais. Tal questão inicia-se na forma de um subtítulo preambular do segundo capítulo da Teoria pura, o qual explicita de maneira muito clara quais são as origens das normas e o próprio conceito de norma. Com tal postura verificam-se os problemas envolvidos na distinção entre a pureza do método e a confusão política entre Direito e Moral, ou a confusão em termos de prática e teoria, sendo a pureza referente à inexistência de um fim determinado ao conhecimento jurídico, diverso da questão da prática jurídica. Ou seja, um corte axiológico ao conhecimento jurídico que não distingue o Direito da Moral a partir da forma empírica deles, mas do método utilizado.
Os trabalhos sobre Kelsen e sobre a Teoria pura geralmente pecam por abarcar apenas parcialmente a obra do autor. Com o procedimento adotado neste artigo procura-se evitar tal superficialidade, investigando o problema do conceito de Direito e Moral através das hipóteses supra, correlacionando-as e buscando examinar a coerência e a profundidade dos argumentos. Comumente críticas ao trabalho são formuladas levando em consideração uma parcela restrita da TPD, ignorando o fato de que os conceitos inicias da Teoria são de necessário enfrentamento, assim como a referências a obras políticas e tardias, tal como a Teoria geral das normas. Argumentos, como se verá, de conexão involuntária do ser com o dever-ser são críticas facilmente contestadas através de uma atenta leitura acerca do método e das origens do sentido das normas.
A origem social das normas morais e jurídicas e o método da TPD
Encontra-se no início do segundo capítulo da Teoria pura à origem das normas morais. Para Kelsen, tais normas apresentam-se sempre como sociais, nunca individuais, isto é, jamais como obrigações para consigo mesmo. Os deveres jurídicos ou morais, diz o autor, adquirem sentido apenas em sociedade, ou seja, para um indivíduo só, tais seriam sem significado algum - as normas morais que prescrevem deveres do homem em face de si mesmo apresentam-se sempre na consciência dos homens em sociedade, refutando o próprio conceito de deveres para consigo. O não suicídio, a castidade ou a coragem não são deveres individuais, alheios à sociedade, mas obrigações relativas perante os outros. Portanto, a compreensão da origem do ato de vontade normativo está sempre empiricamente condicionada – a partir dos efeitos que estas normas apresentam na sociedade é que serão reconhecidas e eficazmente aplicas, isto é, existentes jurídico e moralmente. (KELSEN, 2006, p. 68)
Mesmo quando o caráter empírico-social das normas jurídicas e morais é posto em dúvida, Kelsen ressalta que a conduta do indivíduo mediatamente refere-se sempre aos homens em sociedade, ou de uma determinada comunidade. Há, afirma o autor, uma relação causal entre os efeitos da conduta individual na sociedade, a qual, a partir da conduta só, transforma-se numa norma jurídica ou moral. Por isso os chamados deveres para consigo mesmo, referência não explícita à fundamentação metafísica kantiana, são sempre deveres sociais, a qual se vivesse isolado, não teriam sentido. (KELSEN, 2006, p. 68)
Assim, a diferença fundamental questionada por Kelsen no inicio da Teoria pura, a se o Direito é objeto de uma ciência natural ou social não pode ser respondida sem uma prévia crítica, pois mesmo o Direito ou a Moral estão presentas na natureza, fazem parte de um mundo com dimensões espaço-temporais. (KELSEN, 2006, p. 2) Normas jurídicas e morais dão a entender, afirma Kelsen na Teoria geral das normas, que alguma coisa deve acontecer, isto é, um ato, existente no espaço e no tempo, cujo sentido expressa, em um primeiro momento, uma vontade, um querer, o desejo de que alguma conduta humana seja executada. Esta é a origem empírica a ‘fabricação’ da positividade da norma. (KELSEN, 1986, p 3)
Contudo, como o autor da TPD pode afirmar a origem factual das normas jurídicas e morais? Tal procedimento não impediria a pureza metódica almejada, a qual discriminaria o Direito dos fenômenos naturais através de um corte metodológico e axiológico? Ou seja, o procedimento com que Kelsen justifica a postura empírica das normas jurídicas e morais representa o problema inicial a ser enfrentado. Essencialmente, a forma como Kelsen dá suporte à sustentação do dualismo entre ser e dever-ser através da ideia de pureza metódica e de diversidade fundamental entre conhecimento e objeto.
A resposta às questões formuladas logo acima podem ser encontradas no capítulo que antecede a questão do Direito e da Moral. Estudando a ideia de pureza metódica verifica-se que tal significa não a exclusão da análise empírica da sociedade e das suas normas. No primeiro capítulo da sua Teoria pura, Kelsen distingue o Direito do âmbito daquelas disciplinas que se ocupam da natureza, portanto do ser e fundamentalmente abstraídas do sentido dos atos de vontade, isto é, do dever-ser. Aquelas envolvem o conhecimento também de certo aspecto do Direito e não são em si ignoradas, mas não constituem por si só a disciplina autônoma da ciência jurídica, pois do contrário haveria um sincretismo metódico. Desta forma, o autor separa a ciência do direito das ciências que estudam a natureza do comportamento humano e, por conseguinte, não tratam de deveres, de normas, mas de fenômenos naturais. (KELSEN, 2006, p. 2)
Assim, quando denominada pura, a teoria, explica Kelsen, propõe-se a garantir um conhecimento dirigido apenas ao Direito, excluindo deste tudo o quanto não pertença ao seu objeto. Esta exclusão ocorre de maneira crítica, delimitando seu campo em face das disciplinas tradicionalmente confundidas com o Direito, tal como a psicologia e a sociologia ou e ética e a teoria política, evitando-se, assim, um sincretismo metódico obscuro. Esta pureza metódica kelseniana advém de um declarado neokantismo do autor. Confessadamente positivista, Kelsen, no entanto, escapa do início da corrente contiana, cujo empirismo acrítico dominava significativamente o pensamento científico herdado pelos contemporâneos de Kelsen, marcado essencialmente pela confusão entre Direito e Sociologia, visto haver apenas o critério empirista de definição conceitual. (Vide BOBBIO, 1995 para a compreensão da parte histórica do positivismo e a mudança de paradigma jurídico operada por Kelsen)
A definição do Direito teve como ponto de partida, visto supra, um problema capital para a Filosofia do Direito dos séculos XIX e XX – o caráter social do Direito. Ocorre que a posição característica do pensamento positivista restrito concebia a ciência do direito segundo o modelo das ciências naturais, cujo objeto da ciência jurídica é o comportamento social e psicológico observável. Isto é, o próprio conhecimento jurídico era confundido com a sociologia e a psicologia. Libertar o conceito de Direito da ideia de justiça, a partir daí, tornou-se extremamente difícil, porque ambos são constantemente confundidos no pensamento político não científico. (Vide KELSEN, 2006, p.1)
Neste sentido é que o neokantismo de Kelsen contribui e acrescenta para com o empirismo positivista, reformulando e dando originalidade à filosofia do autor, além de justificar seu método. Como se analisará posteriormente, a pureza do método é o núcleo de argumentação da Teoria pura, pois traz seu caráter de criticidade através da corrente analítica, onde o sintético tem um papel subserviente em relação ao método, embora não seja de forma alguma excluído. O a priori tem uma função lógica imprescindível. Ou seja, Kelsen não abandona os princípios positivistas do verificacionalismo, mas dá sentido crítico ao mesmo, reformulando conceitos já consagrados pela jurisprudência tradicional. Libertar do Direito destes elementos, afirma Kelsen (2006, p.1), foi uma grave falta da ciência jurídica tradicional dos séculos recentes, quando a jurisprudência era confundida, acriticamente, com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política.
Fábio Ulhoa Coelho (2001, p. 3) sustenta que para a Teoria pura o princípio metodológico fundamental prescinde do conhecimento relativo às produções das normas, bem como abstrai totalmente os aspectos valorativos envolvidos na sua aplicação. Considerar esses aspectos metanormativos obscureceriam o conhecimento das normas, comprometendo a cientificidade dos enunciados formulados acerca dela. A desconsideração, afirma Coelho, pela doutrina dos limites do seu objeto aglutina proposições ideológicas. A pureza da ciência do direito, assim, decorre da definição de seu objeto (um corte epistemológico) e de sua neutralidade (um corte axiológico).
Constata-se principalmente que a intenção de Kelsen é definir um método de conhecimento que possa limitar o objeto da ciência jurídica, contudo de forma alguma afirma que exista uma pureza metodológica na construção política do Direito.[1] O direito e o conhecimento jurídico devem ser distintos, sob pena de recair em ideais metafísicos de conhecimento absoluto. Mesmo o sistema da TPD não exclui a decisão judicial livre negativa ou positivamente, isto é, não restringida por outras normas, ou autorizada por outras normas, respectivamente, na criação jurisprudência do Direito.
Ou seja, fica evidente que a pureza metódica não normatiza, não constrói do Direito, apesar de nada impedir que o legislador busque nas proposições científicas jurídicas embasamento para uma legislação coesa logicamente. No entanto, fica muito nítida esta divisão que Kelsen traça entre o conhecimento das normas jurídicas e a produção normativa. As proposições normativas possuem inicialmente um caráter factual, mas não se limitam a tal e são compreendidas através do sentido de comando que representam. Ou seja, a TPD não tem a intenção de legislar, de fazer política, porém reconhece que o processo jurídico é aberto e socialmente considerado.[2]
Essa abertura oriunda da própria origem social do Direito reflete em todo o escalão judicial, desde a norma constitucional, até a concretização das normas na decisão do magistrado. Ocorre que a partir da concretização das normas, isto é, o momento em que a norma está na base do ordenamento, na realização do seu sentido objetivo de comando, permissão ou autorização, a autoridade vê-se incumbida de interpretar as normas ao caso concreto. Observa Kelsen que esse é um momento crítico do sistema, pois toda a legislação é constituída pela linguagem humana e, como tal, possui falhas – o ordenamento nunca é absolutamente claro, gerando certa ambiguidade e proporcionando ao interprete uma discricionariedade na decisão. Afirma Kelsen acerca da relativa indeterminação do ato de aplicação do direito (KELSEN, 2006, p. 388):
A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior regula – como já se mostrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior (...)
Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer poderia prever.
Assim, dentro do quadro teórico observa-se em Kelsen nitidamente uma abertura no sistema. Obviamente o legislador não pode prever todos os fenômenos necessários de legislação para a efetiva concretização das normas. [3] O intérprete possui certo grau de liberdade na escolha do sentido de uma norma. Esta liberdade sempre é política, pois depende do arbítrio judicial, isto é, o sentido subjetivo do querer do juiz transforma-se, depois de transitada a sentença, em sentido objeto, vinculando o ato à norma e dando sentido jurídico a ele. Desta forma, afirma o autor, a decisão judicial não tem um caráter apenas declaratório, mas sempre constitutivo. (KELSEN, 2006, p. 264)
Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do Direito ou “jurisdição” (“declaração” do Direito) neste sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo, mas um caráter constitutivo.
Portanto, a decisão judicial é sempre um ato político[4] e, logo, um ato de vontade, só podendo ser interpretado, conforme Kelsen, de maneira relativista, pois a decisão não proporciona uma legitimidade absoluta ao julgado. As interpretações contrárias à sentença não possuem o status de incorretas ou injustas, mas são politicamente indesejadas pelo magistrado. Ou seja, a interpretação autêntica não é uma questão de conhecimento, mas de vontade, e esta é sempre relativa presente no esquema de hierarquia normativa (KELSEN, 2006, p. 393)[5]
Dentro deste aspecto volitivo da base do ordenamento, fica evidente a distinção absoluta entre conhecimento jurídico e direito. A interpretação dita autêntica faz parte do jurídico, referindo-se à vontade política do juiz; a interpretação não autêntica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas, com o único fim de determinar os vários sentido das normas, sem, no entanto, eleger qualquer um deles. Diz o autor (KELSEN, 2006, p. 394, 395 e 396):
A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. (...)
Sobretudo, porém, tem de distinguir-se rigorosamente a interpretação do Direito feita pela ciência jurídica, como não autêntica, da interpretação realizada pelos órgãos jurídicos.
A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva obter Direito novo é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito. (...)
A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito.
Por certo a hipótese de considerar esta concretização da norma como única, correta, justa, não invalida a decisão. O interprete não autêntico vê tal situação como juridicamente válida, tal qual a validade de um Estado fascista, comunista ou democrático: a função do cientista não é julgar a política do magistrado, mas apenas descrever seu objeto. Contudo o cientista aponta a auto ilusão de uma decisão autocrática. (Vide a introdução da A Democracia, de LAVAZZIO, 2000, p. 3) Ou seja, a possível autocracia do magistrado, justificada na forma de justiça absoluta, tem apenas um caráter ilusório do juiz, mesmo que válido. Em suas obras finais, Kelsen vai além e considera este caráter ilusório como oriundo de um Eros perturbado do interprete absolutista (Vide a interpretação psicológica das normas morais absolutas in A Ilusão da justiça, KELSEN, 2000).
Em tal contexto, torna-se essencial observar a filosofia política de Kelsen como completamente coerente com a teoria. O fato de todos os valores serem relativos não significa de forma alguma que não existam valores e de que a autoridade não julgue conforme os seus valores, sob uma concepção política. Para tal processo interpretativo é essencial compreender a distinção entre Direito e ciência jurídica. Esta requer isenção, visto ter o fim de descrever seu objeto; contudo o direito em si sempre é um processo histórico e aberto; por oposto do conhecimento jurídico, que não determinará uma interpretação como correta. Kelsen afirma que o direito não é em si ciência, mas uma técnica de controle social. Como técnica o processo é sempre variável conforme o fim a que se destina, sendo sempre relativo ao seu tempo e espaço e referente a uma questão de poder. Esta técnica sempre evolui em relação a sua dinâmica – a criação e aplicação do direito. (KELSEN, 2001, p. 238)
Dentro de processo histórico, de poder, Kelsen fundamenta uma democracia, visto a posição autocrática ser uma ilusão dualista metafísica-religiosa inacessível ao conhecimento humano. O absolutismo filosófico, segundo nosso autor, é a concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta que permanece independentemente do conhecimento humano, além do espaço e do tempo. Isto revela um pressuposto da existência de valores absolutos, negados pelo relativismo filosófico. No absolutismo, os juízos de valor podem proclamar-se válidos para todos, sempre e em toda a parte, e não apenas em relação ao sujeito que julga, quando se referem aos valores inerentes a uma realidade absoluta. (KELSEN, 2000, p. 164)
O relativismo filosófico, por oposto, insiste na distinção entre realidade e valor, sendo os valores fundados nos fatores emocionais da consciência humana, nos desejos do homem. (KELSEN, 2000, p. 165) O relativismo não significa, como muitas vezes se entende, que não existem valores e que o juiz não julga dentro de seu quadro de interpretação conforme os seus valores. Significa, apenas, que não há valores absolutos, não existe uma justiça absoluta, e os valores constituídos através dos atos produtores de normas não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos. (KELSEN, 2006, p. 76) Ou seja, o relativismo não significa que o juiz julga de forma imparcial, mas que no ato de concretizar a norma define o sentido objetivo através do seu sentido subjetivo, sempre relativo.
A partir daí, torna-se necessário o estudo dos conceitos políticos de Kelsen para, através de uma interpretação sistemática, compreender corretamente as intenções e conceitos da Teoria pura do direito. A doutrina do direito natural analisada por Kelsen também se torna central para esta interpretação. As normas da justiça e a doutrina do direito natural são sistematicamente relacionadas ao processo de concretização e criação normativa por parte do magistrado, que não poderá justificar, sob pena da sentença ser tipificada como ilusão absolutista, a sua decisão como ‘a correta’, ‘a justa’ (Vide KELSEN, 2003)
Enfim, fica evidente que a filosofia política do autor está presente também na sua forma de fundamentar a Teoria pura. Conclui-se que há uma forte referência emotivista e empirista na interpretação do direito em Kelsen. O autor notoriamente repudia qualquer referência à metafísica e ao jusnaturalismo, negando fortemente a existência de normas além daquelas as quais se possam conhecer. Disso segue que também as normas morais e jurídicas apenas podem ser conhecidas estando postas em uma sociedade. Assim fica demonstrada a separação que Kelsen faz do direito e da moral, suas origens por atos empíricos de vontade e, fundamentalmente, a distinção entre o conhecimento deste ato e o ato como coisa em si.