4. Direito a uma morte digna
Como dito inicialmente, Roberto DIAS defende que a partir choque entre direitos fundamentais podem surgir novos direitos. Posto que quando ocorrem essas colisões entre normas constitucionais, o interprete deve encontrar uma solução na qual nenhuma das normas seja totalmente sacrificada, mas sim harmonizadas.[44] Então, na presente análise, a colisão entre direito à vida, dignidade da pessoa humana e liberdade (como autonomia) resultaria no direito a uma morte digna.
Em alguns casos, o choque entre normas é resolvido no sentido de estabelecer a prevalência de uma das normas no caso em concreto. Situações como essas ocorrem quando há o conflito entre o direito à liberdade de expressão e direito à honra.
Por outro lado, o choque entre direitos pode culminar num novo direito. Na verdade, a colisão entre normas nessas ocasiões poderia ser considerada como fonte do direito. Entende-se a última de maneira mais ampla, ou seja, “como os fatores que influem na criação e desenvolvimento do Direito, como processo de produção das normas jurídicas, como o conjunto de elementos que dão origem a elas”.[45]
Essa nova fonte de direito é expressamente recepcionada pela Carta Magna de 1988, pois seu art. 5º, parag. 2º prevê que os direitos fundamentais não se resumem àqueles previstos no catálogo. Eles também podem decorrer do regime e dos princípios ou por tratados internacionais, nos quais o Brasil seja signatário.[46]Nesse contexto, Roberto DIAS afirma:
(...) quando a Constituição contempla a hipótese de existência de direitos fundamentais decorrentes dos princípios por ela adotados, admite de forma clara o surgimento de tais direitos como resultado da ponderação entre eles, que fará surgir, no caso concreto, uma regra diretamente aplicável. Emoutras palavras, da colisão também pode surgir um direito fundamental, veiculado por uma norma subsumível ao caso concreto, direito esse que não se confunde com aqueles decorrentes das normas que colidiram, como autoriza o art.5 paragrafo 2 da Constituição Federal.[47]
A partir disso, é possível traçar algumas considerações a respeito do direito a uma morte digna. Primeiramente, esse novo direito, fruto da colisão entre direito à vida, autonomia e dignidade humana tem conteúdo próprio, embora esteja relacionada com esses direitos já estudados em momento anterior.
Desse modo, entende-se que o direito à morte digna origina-se da ideia de que o titular da vida deve goza-la de modo a promover sua dignidade humana. Entretanto, o conteúdo mínimo dessa dignidade se reporta, de maneira predominante, à capacidade do indivíduo em conduzir sua própria existência segundo seus valores, concepções, e outros (ou seja, autonomia).
Assim, o direito à morte digna envolve morrer de acordo com a personalidade do enfermo, de que modo ele considera mais pertinente o fim de sua vida, tendo por base suas concepções próprias atinentes à vida. É por isso que as palavras de Adeline Garcia MATIAS são importantes: “Logo, morrer com dignidade é morrer da maneira e no momento que se considera mais adequado para si, preservando sua personalidade e dando uma correta e coerente continuidade, ou melhor, um coerente término para sua vida, de acordo com o modo como sempre foi conduzida”.[48] Posição semelhante é a defendida por DWORKIN quando ele explica que “A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte-a ênfase que colocamos no morrer com dignidade-mostra como é importante como a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido”.[49]
Nessa perspectiva, a pessoa que cultiva durante a sua vida a concepção de que a vida deve ser conduzida com o mínimo de qualidade, não bastaria apenas uma existência resumida no aspecto biológico, tem respeitado seu direito a morte digna quando, em fase terminal, por exemplo, seu processo de morrer não é prolongado com tratamentos fúteis ou extraordinários que não lhe proporcionem nenhuma perspectiva de melhora. Visto que o adiamento da morte através desses métodos desenvolvidos pelos avanços na medicina apenas concedem maior quantidade de vida, mas nunca maior qualidade.
5.Conclusões
O presente artigo enfrentou diversas questões preliminares muito importantes antes de iniciar uma abordagem sobre o que viria a ser o direito à morte digna para pacientes em fase terminal.
Primeiramente, buscou-se uma abordagem a respeito da bioética, sendo que esta estuda as implicações de cunho ético do desenvolvimento científico, notadamente a medicina. No mesmo sentido, foi de importância fundamental analisar os princípios da bioética (autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência), já que eles iluminam a relação entre médico e paciente. Não se pode olvidar das implicações entre bioética e morte, já que com os avanços médicos, a vida humana pode ser preservada por muito tempo, mesmo que seja desprovida de qualidade.
Em seguida, a diferenciação entre diversos métodos de interferência na morte foram analisados, mais especificamente a eutanásia, ortotanásia, distanásia e suicídio assistido (ou auxílio ao suicídio). A partir dessa análise, não foi difícil perceber que se trata de práticas diversas, tanto é que recebem tratamentos jurídicos totalmente distintos (embora, o tratamento jurídico da distanásia não tenha sido objeto de análise).
Com isso, o estudo focou-se na análise dos seguintes direitos e princípios constitucionais: direito à vida, princípio da dignidade da pessoa humana e autonomia. Após o estudo de cada direito e princípio em separado, foi possível trazer a abordagem de Roberto DIAS para este trabalho. Em outras palavras, defendeu-se que a partir do choque entre direitos fundamentais poderiam surgir novos direitos. Na seguinte situação na qual havia a colisão entre o direito à vida, dignidade humana e autonomia, o resultado desse choque refletiu no direito a uma morte digna.
Por fim, explicou-se o que seria esse direito à morte digna. Ora, é o direito pelo qual se reconhece que a vida deve ser vivida de maneira digna. E essa mesma dignidade está relacionada com o modo pelo qual cada indivíduo cultivou sua personalidade (autonomia), ou seja, dependem dos valores, entendimentos e concepções que cada indivíduo tem a respeito da sua própria vida. Por isso, a maneira como alguém morre deve respeitar a personalidade de cada indivíduo. Assim, um paciente terminal que defendeu durante toda sua vida que o significado desta estaria atrelado à qualidade não tem seu direito à morte digna respeitado quando este mesmo enfermo é submetido a prática da distanásia, a qual apenas adia o processo de morrer e não proporciona nenhum benefício ao paciente.
6.Bibliografia
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Acervo digital:
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Notas
[1] “Na década de 1950, aconteceram descobertas importantíssimas, tais como a técnica da respiração artificial, desenvolvida para as vítimas da pólio, como também a angiografia coronária. Na década de 1960, registrou-se progresso médico ainda maior: introdução da diálise renal, transplante de órgãos (coração, rim, etc.) e unidades coronárias, entre outros avanços. Na década de 1970,tomografias computadorizadas e a mais recente novidade, a partir dos anos 1980, a ressonância magnética, hoje digital.”. PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida, p.76.
[2] O termo “processo de morrer” é empregado, haja vista que a morte não é um evento, mas sim um fenômeno progressivo. Em primeiro lugar, morrem os tecidos mais sensíveis à falta de oxigênio, como o cérebro. É por isso que a falta de oxigênio, num período entre três à cinco minutos, é suficiente para lesionar de maneira irreversível o córtex do paciente, resultando em vida vegetativa deste.
[3] SCHAEFER, Fernanda. Bioética, Biodireito e Direitos Humanos. In:Bioética e Biodireito em Discussão, p.37
[4] “São desse tempo a criação das UTIs, a realização dos primeiros transplantes ( cardíaco, em 3-12-67- ChritianBarnard; Brasil- Zerbini, em 26-5-68; renal, em 1965, no HC, pelo Prof. Geraldo Campos Freire), o diagnóstico da morte cerebral, as descobertas da farmacologia, o diagnóstico pré-natal e alguns avanços no conhecimento dos mecanismos imunológicos de rejeição (ciclosporina, em 1978)” MALUF,adriana caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Bioética e Biodireito, p. 8
[5] PESSINI, Leo;BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética, p.31.
[6]“Assim foram fundados os primeiros Grupos de debates, quederam origem aos Comitês de bioética: Johns Hopkins Hospitak, em Baltimore; hasting Center, em New York; em Madison, na Faculdade de medicina de Wiscosin”.MALUF, Adriana Caldas do Rego ReitasDabus. Curso de Bioética e Biodireito, p.8.
[7] Na íntegra o Juramento de Hipócrates: “No momento de ser admitido entre os membros da profissão médica, tomo o compromisso solene de consagrar a minha vida ao serviço da humanidade. Manterei perante os meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. Considerarei a saúde do meu doente como primeira preocupação. Respeitarei o segredo que me foi confiado. Manterei com toda possibilidade dos meios que disponha a honra e as nobres tradições da profissão médica. Os meus colegas serão meus irmãos. Não permitirei que considerações de religião, de nação de raça, partido social venham interpor-se entre o meu dever e o meu doente. Guardarei respeito absoluto pela vida humana desde a concepção, mesmo perante ameaças não admitirei fazer uso de meus conhecimentos médicos contra as leis da humanidade. Faço solenemente estas promessas, livremente, sob palavra de honra”.
[8] PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética, p.351
[9] PESSINI, Leo. Eutanásia..., p.75.
[10] Além da eutanásia, para muitos outra, solução seria a ortotanásia. Sendo que esta será analisada posteriormente.
[11] Algumas delas serão levantadasadiante.
[12] Alguns exemplos são encontrados em: MATIAS, AdelineGarcia.A eutanásia e o direito à morte digna à luz da constituição, p.3-4.
[13] SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p.202.
[14] As principais críticas à eutanásia se encontram na obra de Roberto DIAS: O direito fundamental à morte digna. Na mesma, o autor, alémde apresentar argumentos contrários à eutanásia, refutou cada um deles.
[15] Código Penal: art. 121. Matar alguém:
Pena-reclusão, de 6(seis) a 20(vinte) anos.
Parag. 1º Se o agente comete crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de 1/6(um sexto) a 1/3(um terço).
[16] Anteprojeto do novo Código Penal: Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de
doença grave:
Pena – prisão, de dois a quatro anos.
§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
[17] ALBUQUERQUE, Lana Drupier. Eutanásia, ortotanásia e Suicídio Assistido: uma interpretação a partir da Constituição Federal de 1988. Revista Themis, n.22, ano: 2010/2011,p. 17-18
[18] Recomenda-se a leitura da sentença da ação civil pública nº 2007.34.00.014809-3.
[19] Anteprojeto do novo Código Penal: Art. 122...
Exclusão de ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.
[20] SANTORO, Luciano de Freitas. Morte Digna: O Direito do Paciente Terminal, p.124.
[21] Código Penal: art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena- reclusão, de 2(dois) a 6(seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão de 1(um ) a 3 ( três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
[22]Anteprojeto do novo Código Penal:
Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio
Art. 123. Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao suicídio:
Pena – prisão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, e de um a quatro anos,
se da tentativa resulta lesão corporal grave, em qualquer grau.
§ 1º Não se pune a tentativa sem que da ação resulte ao menos lesão corporal grave.
§ 2º Aplicam-se ao auxílio a suicídio o disposto nos §§1º e 2º do artigo anterior.
[23] PESSINI, Leo. Eutanásia..., p.220.
[24]BRANCO, Paulo; COELHO, Inocêncio; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional Brasileiro, p. 441.
[25]SANTORO, Luciano de Freitas. Morte Digna: O direito do Paciente Terminal, p.17.
[26]CANO, Ana Maríadel; CID, Benito de Castro. Eutanásia y debate sobre la jerarquia de los valores jurídicos. Persona y Derecho, n. 41, ano: 1999,p. 363-364.
[27]BRANCO, Paulo; COELHO, Inocêncio; MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional brasileiro, p. 446.
[28] “É o que sustentam aqueles que defendem a predileção do interesse social na vida do individuo em detrimento do seu próprio interesse em dar-lhe fim, como o faz Rita de Cássia Curvo Leite, defendendo que o homem não pertence a si mesmo, vivendo em prol de toda sociedade, devendo contribuir com seu progresso e nào apenas com seu próprio aperfeiçoamento pessoal”.revista Themis, p.24
[29]BRANCO, Paulo; COELHO, Inocêncio; MENDES, Gilmar. Op. Cit.,p. 447
[30] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela, p. 157.
[31] BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação, p.4.
[32] BARROSO, Luis Roberto. Idem, p.12.
[33] SANTORO, Luciano de Freitas, op. cit., p.64.
[34] A título de curiosidade, Ingo SARLET, ao conceituar dignidade da pessoa humana, leva em consideração o aspecto cultural que ela apresenta. Na verdade, o jurista propõe uma noção inclusiva de dignidade humana, que além de aspectos culturais, considera pertinente a questão ecológica para a formulação de um conceito de dignidade. Para SARLET, a dignidade da pessoa humana seria: “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”.SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, p. 73.
[35] BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit., p.3.
[36] Sugere-se a leitura do artigo (já citado) de Luis Roberto Barroso, cujo acesso é possível por meio desse link: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa_humana_no_direito_constitucional.pdf
[37] BARROSO, Luís Roberto; MARTEL,Letícia de Campos Velho. Morte como ela é: Dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Bioética e Direitos Fundamentais, p.49.
[38] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida, p.321.
[39] MATIAS, Adeline Garcia. A eutanásia e o direito à morte digna à luz da Constituição, p.39.
[40]DWORKIN, Ronald. Op. cit. , p.319.
[41] DWORKIN, Ronald. Idem, p.301.
[42]DWORKIN, Ronald. Idem, p. 325.
[43] DWORKIN, Ronald. Idem, ibidem.
[44] DIAS, Roberto. O Direito Fundamental à morte digna, p.57.
[45] DIAS, Roberto. Direito Fundamental à morte digna, p.59.
[46] Constituição Federal: Art. 5º...
Parag. 2 º Os direitos e garantias expressos nessa Constituição nào excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte.
[47] DIAS, Roberto. Idem, p.71
[48] MATIAS, Adeline Garcia. Op.cit., p.43.
[49] DWORKIN, Ronald. Op. cit., p.280.