1. Introdução
Nas últimas décadas os avanços da medicina trouxeram imensos benefícios à espécie humana.[1] Atualmente não se morre mais por doenças que, em alguns anos atrás, eram letais. Contudo, esses mesmos avanços científicos proporcionaram efeitos negativos, principalmente no tocante ao “processo de morrer” (expressão utilizada por Leo PESSINI).[2] Este processo se tornou cada vez mais penoso, graças à implantação de novas tecnologias que permitem adiar a morte por tempo indeterminado.
Nesse contexto, é cada vez mais comum referir-se ao direito de morrer dignamente em casos nos quais os pacientes se encontram em fase terminal, cujo processo de morrer pode se prolongar indefinidamente. Por isso, o presente artigo tem como objetivo levantar algumas considerações a respeito deste novo direito que surge inevitavelmente em tempos de desenvolvimento médico-tecnológico.
Assim, o trabalho iniciará sua abordagem a partir da perspectiva da bioética. Aqui se buscará introduzir algumas noções básicas a respeito da mesma. É evidente que não poderia faltaro estudo dos princípios da bioética que norteiam a relação entre médico e paciente. Ainda neste panorama, haverá uma abordagem relacionando a bioética com aspectos da morte.
Logo adiante se considera oportuno esclarecer terminologias frequentes utilizadas no contexto da intervenção na morte, visto que muitos termos são utilizados de maneira incorreta. Sem dúvida este fato dificulta o debate sobre a terminalidade da vida. Desse modo, serão explicados os seguintes vocábulos: eutanásia, ortotanásia, distanásia e suicídio assistido.
Em seguida, o estudo será conduzido segundo a perspectiva defendida por Roberto DIAS, de que o choque entre direitos fundamentais pode resultar em novos direitos. Nessa seara, a colisão entre o direito à vida, a dignidade da pessoa humana e autonomia traduziria no direito a uma morte digna. Dessa maneira, a análise do direito a vida, do princípio da dignidade da pessoa humana e a autonomia será efetuada para melhor compreender o que vem a ser o direito a uma morte digna.
Bioética
A bioética é um ramo do saber que tem como escopo estudar as implicações éticas que o desenvolvimento científico propicia. Ainda, segundo Fernanda SCHAEFER, “(...) em seu conceito mais alargado, a Bioética designa os problemas éticos gerados pelos avanços das ciências tecnológicas, biológicas e médicas”. [3]
O termo “Bioética” foi empregado pela primeira vez pelo oncologista americano Van Rensselaer Potter, em sua obra “Bioética: Ponte para o Futuro”(1971). Neste livro, o cientista tem por escopo desenvolver uma ética aplicada aos seres humanos entre si e com o meio ambiente. Desse modo, o autor conclui que o futuro não pode estar baseado exclusivamente na ciência, tampouco exclusivamente nas humanidades. Devido a isso, cria-se uma ponte entre a ciência e as humanidades para que elas se interajam.
As diretrizes filosóficas da bioética começam a se estabelecer após o Holocausto, ocorrido durante a 2ª Guerra Mundial. Emerge, assim, a ideia de que a ciência não pode se sobrepor ao homem. É por isso que a bioética adota como paradigma o valor supremo da vida humana, de sua liberdade e dignidade.
Ademais, os avanços científicos e tecnológicos ocorridos durante o século XX[4], especialmente durante os anos 60 e 70, impulsionaram questionamentos perante a sociedade. A fim de exemplificar o que foi exposto anteriormente, em 1967, Christian Barnard transplantou o primeiro coração de uma pessoa morta para outro indivíduo que sofria de uma doença cardíaca terminal. A operação, não obstante seu mérito, instigou algumas questões, como: será que o paciente estava realmente morto quando o transplante foi realizado? Ou, o paciente, ainda em vida, teria consentido com esse procedimento?
Tendo em vista essa perspectiva, a bioética somente tem razão de ser dentro do contexto do desenvolvimento científico. São oportunas aqui as palavras de PESSINI e BARCHIFONTAINE: “A bioética era criação do tempo. Foi concebida como resposta às novas tecnologias em medicina, mas gestada numa cultura sensível a determinadas dimensões éticas, de modo especial ao direito dos indivíduos e ao abuso das instituições poderosas”.[5]
Os temas estudados pela bioética são os mais variados. Neste ponto serão levantados alguns com o fito de mostrar o quão amplo é o campo bioético: aborto, eutanásia, mistanásia, distanásia, transplantes, reprodução assistida, manipulação genética, cirurgia de alteração de sexo, segurança alimentar, células tronco, experimentação científica em humanos, e assim por diante.
A temática tratada pela bioética, como constatado acima, é muito ampla e pode ser dividida em duas frentes: microbioética e a macrobioética. A primeira assumiu a função de estudar a relação entre médico e paciente, bem como os avanços científicos que tem repercussões na dignidade da pessoa humana. Já a segunda pretende pesquisar questões ecológicas que estão relacionadas à preservação da vida do homem. Seu âmbito de estudo está reservado a questões de cunho social, como, por exemplo,a preservação do patrimônio cultural e ambiental.
2.1 .Princípios da bioética
Os avanços tecnológicos tiveram grande impacto na área médica, principalmente. Nessa perspectiva, surgem os primeiros grupos de debate que em seguida se tornaram comitês de bioética.[6]
Dentre vários comitês, destaca-se a Comissão nacional para proteção dos seres humanos da pesquisa biomédica e comportamental, constituída em 1974. O grupo, após quatro anos de pesquisas, apresentou o Relatório Belmont, o qual levantou três princípios norteadores da bioética: autonomia, beneficência e justiça. Todavia, este relatório se referia apenas a questões éticas vinculadas à pesquisa com seres humanos.
Além disso, contribuições importantes no campo dos princípios da bioética foram fornecidas pelos pesquisadores Beauchamp e Childress em sua obra conjunta intitulada “Princípios da ética biomédica”. A proposta dos dois estudiosos relacionou-se com a aplicação dos princípios bioéticos no campo da prática clínica e assistencial. Além dos princípios da autonomia, justiça e beneficência, os autores trabalharam com o princípio da não-maleficência, distinguindo-o daquele.
Neste ponto se torna pertinente a abordagem de cada princípio da bioética em separado:
· .Princípio da autonomia
Este princípio tem a sua razão ser devido à alteração da relação entre médico e paciente. Atualmente, o médico não tem poder supremo sobre seus pacientes. Pois estes tem capacidade para se autodeterminar e realizar suas escolhas segundo suas próprias concepções e interesses.
Desse modo, é o paciente quem efetua suas escolhas no tocante ao tratamento médico, podendo optar, inclusive, pela interrupção ou não execução de tratamento médico específico. Para isso, o médico deve fornecer aos seus pacientes todas as informações (de modo claro e acessível aos leigos que não têm acesso a conhecimentos específicos da área médica) relevantes a respeito do estado de saúde. Acrescenta-se ainda que a escolha não pode ser fruto de nenhuma pressão externa, ou seja, deve estar de acordo com as convicções do paciente.
· .Princípio da beneficência:
Este princípio encontra-se no juramento a Hipócrates:”(...) Exercerei minha arte com consciência e dignidade. Considerarei a saúde do meu doente como minha primeira preocupação(...)”.[7]
Com isso, o médico tem o dever de tratar o paciente da melhor maneira possível. Assim, o profissional da saúde deve buscar o bem-estar deseus pacientes, maximizando benefícios e minimizando danos. Não se pode aplicar o princípio da beneficência de maneira absoluta de modo tal que viabilize o paternalismo exacerbado por parte do médico, sendo permitido a este o controle total sobre a vida do enfermo.
·Princípio da não-maleficência:
Consiste em não causar mal ao paciente de forma intencional. Está baseada na máxima primum non nocere.
·Princípio da justiça:
Tendo em vista que a realidade social é marcada por um acentuado grau de desigualdade, o princípio da justiça almeja condições igualitárias de acesso à saúde e tratamento de toda população. Na verdade, trata-se de justiça distributiva.
2.2.Bioética e morte
Dentre vários avanços que a medicina passou, um deles é considerado essencial para o presente estudo: alteração do critério definidor da morte. Antes o que definia o estado de óbito era a paralisação das atividades cardíacas. Agora a morte é constatada quando ocorre a “morte encefálica” (cérebro e tronco deixam de funcionar).
Dessa maneira, enquanto o encéfalo funcionar, o indivíduo é considerado vivo, independentemente de suas condições de vida. Aliado a isso, a medicina está dotada de condições para retardar o processo de morte. A pessoa em fase terminal (a título de exemplo), submetida aos mais avançados recursos técnicos e científicos, pode levar anos para morrer. Calcula-se que em tempos passados o espaço entre adoecer e morrer era de 5 dias, como média. Atualmente este intervalo pode chegar a 5 anos.[8] Ou seja, o “processo de morrer” é substancialmente aumentado.
Também, não se pode esquecer de que a medicina, apoiada nessa onda de desenvolvimento científico, tem como foco a cura em si e não a pessoa do paciente. Esta situação inevitavelmente conduz à conclusão de que o resultado morte constitui um fracasso médico. Nesse panorama, tenta-se preservar a vida a qualquer custo, inclusive uma vida reduzida ao aspecto biológico, sem nenhuma qualidade de vida.
Portanto, segundo Leo PESSINI o medo das pessoas nos dias atuais não é a morte em si, mas o prolongamento excessivo do processo de morrer, o qual produz sofrimento excessivo e desnecessário. Embora pareça obvio o que se irá afirmar, sempre é bom lembrar: a morte faz parte da condição humana. Nesse ponto, as palavras PESSINI são pertinentes: “Por muito tempo explicaram-se todas as mortes como efeito de um legítimo castigo dos deuses em consequência de uma falha dos homens, ou como efeito da ação de um poder sobrenatural do mal ou de um poder humano maléfico. Hoje sabemos cientificamente que a morte é natural à vida, e o homem, em relação à vida e à morte, se encontra diante de algo natural”.[9]
Nessa perspectiva,a eutanásia se mostra como uma possível solução contra a preservação ilimitada da vida meramente biológica e um modo de proporcionar uma morte digna ao enfermo. [10]Já que é uma prática que põe fim, de maneira suave e sem dor, a uma vida com muito sofrimento ou sem perspectiva de cura. Porém, esta prática não está imune a críticas.[11]
Devido a isso, no próximo tópico haverá a análise de algumas terminologias empregadas nos discursos que envolvem a terminalidade da vida. Para que esses debates sejam produtivos, faz-se necessária a clara compreensão de termos que se referem a condutas totalmente distintas no que tange ao modo como enfrentam a morte.
2. Términos empregados na intervenção da morte
2.3. Eutanásia
Eutanásia é uma palavra de origem grega (eu: boa, suave; thanatos:morte) que significa morte boa ou suave. A sua prática já é observada desde tempos antigos.[12]
Atualmente, eutanásia, segundo os conhecimentos de José Afonso da SILVA, “se quer referir à morte de alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento, em consequência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa”.[13]
Não obstante a isso, algumas críticas são levantadas a respeito da eutanásia.[14]Elas apenas serão expostas a título de curiosidade. Não se pretende aqui refutá-las (embora seja possível), dado que este não é o objeto de estudo do presente artigo.
A primeira delas leva em consideração os efeitos de uma eventual legalização da eutanásia. Pois, permitindo-se a eutanásia voluntária (aquela que é consentida pelo paciente ou seu representante), logo a eutanásia involuntária também seria praticada. Este argumento é conhecido como slipperyslope.
Também, como a medicina está em constante avanço, um paciente sem perspectivas de melhora hoje pode amanha ter chances de melhora, inclusive de cura.Ainda, outra hipótese seria a possibilidade de erro médico quanto ao real estado de saúde do paciente. Isso porque constatado o erro médico, a eutanásia é irreparável.
Por fim, os partidários contrários à eutanásia defendem que quem é favorável a esta prática é indiferente ao valor da vida.
No tocante ao tratamento jurídico brasileiro dispensado à eutanásia, a mesma não aparece de maneira expressa no código penal. Apesar disso, ela é penalizada como sendo homicídio realizado devido a relevante valor moral. Por isso, a pena de que comete eutanásia é reduzida.[15]
Contudo, tendo em vista o atual cenário jurídico, estuda-se a implantação de um novo código penal, haja vista que o código que vige atualmente data dos anos 40. O anteprojeto de um novo código penal prevê expressamente o crime de eutanásia, impondo-lhe uma pena de no mínimo 2 e no máximo 4 anos de reclusão. O anteprojeto também contempla a hipótese de não aplicar a pena, analisando as circunstâncias do caso, bem como levando em consideração laços de parentesco ou afeição pela vítima.[16]
2.2 . Ortotanásia
Ortotanásia também deriva do grego (orto: correto; thanatos: morte). Ou seja, é aquela morte que acontece no seu tempo certo.
Mais especificamente, a ortotanásia, no caso de pacientes terminais, não impõe a estes um tratamento longo e sofrido que não traz nenhum benefício ao enfermo, apenas o sofrimento e agonia deste. No entanto, a ortotanásia não se confunde com a eutanásia, pois a primeira não encurta o tempo de vida do paciente como a segunda. A ortotanásia não retira a vida do paciente, ao mesmo tempo em que não prolonga excessivamente a vida dele.
De acordo com o entendimento de Lana Drapier ALBUQUERQUE, ortotanásia “trata-se de desviar-se do prolongamento desnecessário de uma vida considerada indigna, sem, contudo, antecipar-se a morte, fazendo com que a mesma ocorra em seu momento correto, não concorrendo para isso a existência de uma ação por parte do médico”.[17]
Nessa seara, é comum confundir ortotanásia com eutanásia passiva. A diferença entre as duas é que na primeira o enfermo já se encontra em processo de morte e nenhuma ação poderia alterar essa situação. De maneira diversa, na eutanásia passiva, o paciente não se encontra em processo de morte, então a omissão médica seria a responsável pelo resultado do óbito.
A ortotanásia não é considerada crime no Brasil.[18] Contudo, o anteprojeto do novo código penal levantará mais segurança a respeito dessa questão, já que haverá menção de que não se pune a prática de ortotanásia (não se utiliza do termo ortotanásia expressamente, porém é possível deduzir que se refere a essa prática).[19]
2.3. Suicídio assistido (ou auxílio ao suicídio)
O suicídio assistido é a prática pela qual o próprio paciente retira sua vida, mas com auxílio de outras pessoas, como médicos, enfermeiros, familiares, amigos e assim por diante.
Nesse sentido, Luciano de Freitas SANTORO aprofunda afirmando que o suicídio assistido “Consubstancia-se em uma participação material (fornecimento de objetos), mas pode operar-se por meios morais, diversos do induzimento e da instigação, por exemplo, ministrando instruções de como levar a cabo sua intenção”.[20]
O direito brasileiro criminaliza o suicídio assistido com o rótulo de auxílio ao suicídio, o qual se encontra tipificado no art. 122, CP. A pena de reclusão de quem auxilia no suicídio pode variar de dois a seis anos se o suicídio se consuma; ou de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta em lesão corporal grave.[21] No anteprojeto do novo Código Penal, o suicídio assistido ainda é punido, entretanto sofre algumas alterações, por exemplo, a pena do auxílio suicídio não consumado pode variar entre um a quatro anos de reclusão, além de outras previsões.[22]
2.4. .Distanásia
É a prática pela qual se busca preservar a vida a qualquer custo, empregando para isso, todos os meios disponíveis na medicina tanto os meios ordinários quanto os extraordinários (inúteis, já que não proporcionam benefícios ao paciente).
Aqui se fazem importantes as considerações de Leo PESSINI, quando ele diferencia a eutanásia da distanásia: “Enquanto na eutanásia a preocupação maior é com a qualidade de vida remanescente, na distanásia a tendência é se fixar na quantidade dessa vida e investir todos os recursos possíveis para prolonga-la ao máximo”.[23]
3 .Princípios constitucionais envolvidos
3.1.Direito à vida
O direito à vida está previsto na Constituição Federal com a seguinte redação: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (...)”. Mesmo sem previsão constitucional expressa não seria possível ignorar o direito à vida. Isso porque sem vida não há como falar de outros direitos. Nesse sentido, Paulo Gustavo Gonet BRANCO enfatiza: “O direito à vidaé a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo”.[24]
No entanto, o direito à vida não é absoluto. Segundo o raciocínio de Luciano de Freitas SANTORO “A aplicação do direito exige, acima de tudo, que seja realizada uma ponderação de valores. Não há qualquer direito absoluto. Sequer a vida é um direito absoluto, pois frente a situações concretas, é possível tirar a vida de outra pessoa, como na hipótese de legítima defesa”.[25]
Contudo, persiste a discussão sobre interromper ou não a vida de um paciente em fase terminal, sem nenhuma chance de recuperação, ou que esteja passando por sofrimentos incessantes. Há quem seja favorável, mas também quem seja desfavorável à interrupção da vida (um dos meios para isso seria a eutanásia, por exemplo). Esse fato pode ser explicado por meio das diversas concepções que se tem sobre a vida.
Ana María Marcos del CANO e Benito de Castro CID esclarecem essa questão da seguinte maneira:
Por um lado, la línea predominante mantiene que la vida humana es um bien de tal importância que no puede quedar al libre albedrío de lavoluntad individual. Por otro, algunos autores sostienen que la vida humana es um valor primordial para el ser humano, pero que en determinadas circunstancias esa vida perde las características mínimas que ladefinen como humana, pudiendo ser entoncesdisponible.[26]
A partir disso, há aqueles que defendem que a vida é um bem indisponível, independentemente da qualidade de vida do indivíduo e de seu consentimento para o fim de sua existência. Então seria um “direito” à vida e não uma simples “liberdade” de viver, inviabilizando a opção de viver ou não.[27]
Ainda, não se afastando por completo da posição anterior, outros defendem que a vida não é um bem que pertença exclusivamente ao seu titular, mas a toda sociedade.[28] Isso conduz a ideia de que o Estado não deve apenas não praticar atos eutanásicos que suprimam a vida, há que elaborar um ordenamento jurídico que incrimine essa prática.[29]
Por outro lado, há quem alega que a vida não pode se resumir a uma mera existência biológica. Ela deve estar dotada de qualidade. Desse modo, não bastaria apenas assegurar o direito à vida, o correto seria promover o direito à qualidade de vida. Este direito reflete que a vida deve promover condições mínimas de dignidade. Com isso, não é difícil constatar a relação existente entre direito à vida e princípio da dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Elimar SZANIAWSKI
O direito à vida não se basta a si ou, em outras palavras, o princípio da dignidade da pessoa humana não é plenamente vivenciado com a simples ideia de deixar alguém viver. A vida tem que ser vivida dignamente. Por esta razão, o direito à vida integra-se ao direito à qualidade de vida e ambos estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana.[30]
Portanto, o presente artigo considera que “vida” deve ser entendida no seu aspecto mais amplo. Ou seja, viver é muito mais do que apresentar uma existência biológica. Deve-se levar em conta sua qualidade.
Adiante, o estudo se concentrará no princípio da dignidade da pessoa humana.
3.2.Princípio da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana constitui um valor intrínseco ao ser humano. Essa concepção já era aceita na antiguidade clássica, a qual reconhecia que a dignidade era um valor intrínseco ao homem e que poderia ser mensurada segundo o status social que cada indivíduo ocupava na sociedade. De outro modo, o pensamento cristão concebe o ser humano possui um valor intrínseco pelo simples fato de ter sido criado por Deus. Entretanto, durante a Idade Moderna, segundo as reflexões Iluministas, principalmente, a dignidade humana derivaria da capacidade do ser humano para se autodeterminar.
Após a 2ª Guerra Mundial, o valor da dignidade da pessoa humana assume uma imensa importância, dado que ela passa a integrar o mundo jurídico. Isso foi possível devido ao movimento pós-positivista, o qual busca uma aproximação entre Direito e ética. Somado a isso, não se pode deixar de mencionar o ingresso da dignidade da pessoa humana em documentos internacionais (como Cartas e Tratados de Direitos Humanos) e em Constituições de Estados Democráticos de Direito.[31]
No Direito pátrio, a dignidade da pessoa humana é considerada um princípio que fundamenta todo o ordenamento jurídico nacional. A sua posição no texto constitucional de 1988 é, no mínimo, de destaque, haja vista que se encontra após o preâmbulo, antecedendo os Direitos e Garantias Fundamentais.
A dignidade da pessoa humana, como dito acima, seria um valor inerente ao homem. Embora essa afirmação não esteja incorreta, ela é insuficiente. A dignidade humana, na ordem constitucional brasileira, é um princípio que como qualquer outro, possui elevada carga axiológica, ao mesmo tempo em que estabelece fins a serem perseguidos. Todavia ela não determina o modo pelo qual esses objetivos devem ser promovidos.[32] Nessa seara, Luciano de Freiras SANTORO adverte: “Portanto, ao reconhecer-se a dignidade da pessoa humana como um valor próprio que identifica o ser humano como tal, o que se pretende proteger? Pretende-se proteger o homem, para que não seja objeto de condutas indignas. Mas é preciso, evidentemente, ao analisar a hipótese em concreto, compreender a noção de dignidade, para só então ser possível afirmar se houve ou não a sua violação”.[33]
Com isso, a dignidade humana é um conceito aberto, aliás, é uma noção que inclusive pode variar devido a circunstâncias histórico-culturais de cada comunidade.[34] Contudo, a dignidade humana deve ser dotada de um conteúdo mínimo, sob pena de se tornar um conceito inútil, ou pior, de se resumir a um mero espelho, no qual cada um reflete uma concepção de dignidade humana distinta.[35]
Empregando a metodologia de Luis Roberto BARROSO, o conteúdo mínimo da dignidade humana engloba três dimensões: o valor intrínseco da pessoa humana; autonomia da vontade e valor comunitário.[36]
A primeira dimensão diz respeito ao valor ontológico da dignidade humana. Em outras palavras, o ser humano é dotado de dignidade de maneira tal que não pode ser tratado como um meio a interesses coletivos ou do Estado, mas como um fim em si mesmo. Devido a isso, o Estado existe em função do indivíduo, nunca de maneira contrária. Para a efetivação desta dimensão, alguns direitos devem ser garantidos, como o direito à vida, direito à igualdade e direito à integridade física e moral.
A dimensão da autonomia da vontade leva em consideração a capacidade do indivíduo para se autodeterminar, bem como para efetuar as escolhas mais fundamentais para a condução de sua própria vida. A fim de implementar esta dimensão, é necessária a promoção do direito à liberdade (tanto no âmbito privado, através dos direitos individuais, quanto no âmbito público, por meio dos direitos políticos), além do mínimo existencial, o qual estabelece que algumas necessidades básicas sejam satisfeitas a fim de viabilizar o exercício da autonomia de cada indivíduo.
Ao contrário, a dimensão do valor comunitário da dignidade humana confere respaldo às concepções comunitárias do que vem a ser uma vida boa. Dessa forma, este aspecto da dignidade busca limitar a liberdade do indivíduo em prol dos interesses da sociedade.A partir dessa perspectiva, a dignidade impõe restrições às liberdades individuais.
Por fim, com base no princípio da dignidade humana, é possível tanto defender quanto repudiar atos que reduzam, ou pelo menos não prolonguem, a vida de pacientes em estado terminal. Esse fato não surpreende, dado que a dignidade humana é um conceito aberto e que por isso pode sustentar soluções diversas para um mesmo caso.
Segundo BARROSO, quando a dignidade humana prevalecer em conteúdo de autonomia da vontade, a eutanásia e demais procedimentos que reduzam ou não prolonguem o processo de morrer (desde que consentidos pelo paciente ou seu representante) seriam permitidas. Por outro lado, se o conteúdo da dignidade prevalecer em valor comunitário, estas práticas não seriam respaldadas pelo princípio.
Assim, baseando-se no conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana, proposto por Luis Roberto BARROSO, o presente estudo posiciona-se de maneira que o conteúdo da dignidade humana deve prevalecer no sentido da autonomia do indivíduo do que no valor comunitário que o princípio exprime. O princípio da dignidade da pessoa humana presente na Constituição Federal de 1988 exprime de maneira mais acentuada o conteúdo da dignidade relacionada com a autonomia da vontade. Pois,
Trazendo o debate para o âmbito do sistema jurídico brasileiro, não parece possível adotar, de forma excludente, um ou outro viés da dignidade humana. Mas tendo como ponto de partida a Constituição, afigura-se fora de dúvida o predomínio da ideia de dignidade como autonomia. Dentro de uma perspectiva histórica, a Carta de 1988 representou uma ruptura com o modelo ditatorial intervencionista, constituindo o marco inicial da reconstrução democrática do Brasil. Daí sua ênfase em liberdades pessoais, parte essencial de um longo elenco de direitos individuais e garantias procedimentais.[37]
Com isso, a intervenção na morte, tanto para reduzir quanto para não prolongar o sofrimento de pacientes em fase terminal, deve ser permitida, visto que está respaldada pelo princípio da dignidade da pessoa humana em sua dimensão da autonomia.
No próximo ponto, a autonomia será o objeto do artigo.
3.3.Autonomia
A autonomia é o direito pelo qual se podem realizar as escolhas mais fundamentais da existência de um indivíduo. Na constituição Federal de 1988, ela aparece sob a forma do direito à liberdade, englobando liberdade de consciência, de crença e assim por diante. Na verdade, a autonomia proporciona que seu titular desenvolve a sua personalidade do modo que lhe pareça mais pertinente. Aliás, Ronald DWORKIN complementa “Diz respeito à capacidade mais geral e difusa que descrevi: a capacidade de agir com base em preferencias genuínas, na percepção das coisas, nas convicções pessoais ou no sentido da própria identidade”.[38]
Não se pode olvidar que no tópico anterior, ao se tratar do conteúdo mínimo do princípio da dignidade da pessoa humana, a autonomia representava uma das dimensões do conteúdo da dignidade humana, ao lado das dimensões do valor intrínseco à pessoa e do valor comunitário da dignidade humana. É nesse sentido que Adeline Garcia MATIAS afirma que: “A dignidade, como dito, significa também a possibilidade de desenvolvimento da personalidade do sujeito e é aí que se insere a conexão entre ela e a liberdade, no sentido de seguir sua vida conforme desejar”.[39]
Como visto anteriormente, a autonomia constitui um dos princípios da bioética o qual orienta a relação médico-paciente. Disso resulta que é o paciente quem efetua as escolhas mais fundamentais no tocante ao seu tratamento, podendo, inclusive, renunciá-lo, desde que seu médico tenha prestado as devidas informações a respeito do quadro clínico do enfermo.
Tendo em vista esse cenário, alguns países instituíram um documento chamado living will, o qual o indivíduo, ainda consciente, estipula quais deverão ser as providências médicas a serem tomadas, caso esse mesmo indivíduo não possa mais expressar sua vontade. Neste documento, a pessoa especifica quais medidas podem ou não ser tomadas, como por exemplo, proibir a ressuscitação cardíaca entre outros.
Muitas questões polêmicas emergem do princípio da autonomia, como o questionamento de qual seria a vontade de um paciente sem condições de expressar sua vontade. Mais além, é possível questionar se a vontade inicial do paciente de não prolongar excessivamente uma vida sem qualidade (quando ainda estava consciente) permanece no momento em que o mesmo se encontra inconsciente e em fase terminal.
Nessa perspectiva, Ronald DWORKIN estabelece que a autonomia do indivíduo está relacionada com a sua integridade, independentemente que as escolhas, valores ou percepções de cada pessoa não sejam coerentes em si mesmas. De acordo com suas próprias palavras:
A concepção de autonomia centrada na integridade não pressupõe que as pessoas competentes tenham valores coerentes, ou que façam as melhores escolhas, ou que sempre levem vidas estruturadas e reflexivas. (...) A autonomia estimula a capacidade geral das pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma concepção individual de seu próprio caráter, uma percepção do que é importante para elas.[40]
Por isso, a decisão de prolongar ou não o processo de morrer de pacientes em fase terminal (em especial daqueles que não podem expressar sua vontade) deve respeitar a compreensão do enfermo sobre como a sua vida deveria ser conduzida. Dessa forma, não é difícil perceber que essa decisão não pode ser universalizada. É digno de nota mencionar que “O fato de estar ou não entre os direitos fundamentais de uma pessoa ter um final de vida de um jeito ou de outro depende de tantas outras coisas que lhe são essenciais- a forma e o caráter de sua vida, seu senso de integridade e seus interesses críticos-que não se pode esperar que uma decisão coletiva uniforme sirva a todos da mesma maneira”.[41]
Ademais, DWORKIN defende a “doutrina da autonomia precedente”.[42] Conclui-se, desse modo, que “O direito de uma pessoa competente à autonomia exige que suas decisões passadas sobre como devem trata-la em caso de demência sejam respeitadas mesmo quando contrariem os desejos que venha a manifestar em uma fase posterior de sua vida”.[43] Em outras palavras, respeita-se o modo pelo qual o indivíduo desenvolveu sua personalidade, cultivou seus valores, crenças e concepções ao longo de sua vida.
Com isso, a autonomia permite que a vida de pacientes terminais não seja prolongada de maneira tal que gerem sofrimentos incessantes ao indivíduo, desde que suas concepções, valores e entendimento de vida se mostrem contrárias ao prolongamento excessivo de uma vida sem qualidade.