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O direito à repactuação dos contratos administrativos e os limites regulatórios do Estado

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Dentre os instrumentos de garantia da equação econômico-financeira, incluem-se os que visam compensar aumento de gastos extraordinários supervenientes como os que repassam aumentos ordinários. A Constituição não fez qualquer distinção entre eles.

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o surgimento do direito à repactuação dos contratos administrativos como garantia dos particulares em face das prerrogativas que a Administração Pública possui. A verificação parte de uma comparação entre disposições legais e infralegais com princípios constitucionais, identificando a posição jurídica e o nível de proteção que se deve destinar a esse direito, elencando os entendimentos jurisprudenciais e legais mais atuais e relevantes sobre o tema. Visa, ademais, demonstrar os delineamentos jurídicos que estão sendo dados ao instituto em contraposição ao vazio regulatório que existe no momento. Por fim, tece considerações subjetivas a respeito de como deveria ser tratada a repactuação diante dos princípios do desenvolvimento, da livre iniciativa, da eficiência e da economicidade, com estabelecimento de idéias para incentivar a edição de novas regras jurídicas com vistas à integração do direito pátrio.

Palavras-chave: Administrativo. Contratos administrativos. Equilíbrio econômico-financeiro contratual. Reajustamento de preços. Repactuação.

Sumário: Introdução. 1. O equilíbrio econômico-financeiro contratual: contraposição à supremacia exacerbada da Administração Pública. 1.1. O princípio da supremacia do interesse público nos contratos administrativos. 1.2. As garantias dos particulares. 1.3. O reequilíbrio econômico-financeiro e a teoria da imprevisão. 1.4. Formas de expressão do reequilíbrio econômico financeiro. 2. Repactuação: um instituto inovador. 2.1. O surgimento no direito brasileiro. 2.2. Fontes e fundamentos: em busca de uma definição jurídica. 2.3. A repactuação e o equilíbrio econômico-financeiro: distinção ou relação? 2.4. O vazio regulatório e as limitações ao direito de repactuar. 2.4.1. Previsão no instrumento convocatório e contratual. 2.4.2. Contratos aplicáveis. 2.4.3. Interregno mínimo de um ano. 2.4.4. Necessidade de requerimento e preclusão lógica. 3. O princípio do direito ao desenvolvimento: uma proposta de mudança positiva. 3.1. O direito ao desenvolvimento nas relações contratuais com o Poder Público. 3.2. O princípio da eficiência e da economicidade em risco. Conclusão. Referências.


Introdução

O contrato administrativo é figura distinta no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista a participação da Administração Pública em um dos pólos da avença. Prerrogativas que a põem em um plano vertical existem em um dilema com direitos e garantias dos contratados que a elas vão se submeter. A ausência de disposições normativas regulando amplamente os institutos aplicáveis incentiva mais ainda o conflito com os direitos dos contratantes. Até onde vão esses poderes e essas garantias e até que ponto é permitida a sua ampliação e restrição pelos entes estatais é uma questão que se encontra numa zona ainda considerada nebulosa.

Este trabalho tem por objetivo analisar os questionamentos relativos ao direito à repactuação de contratos administrativos sujeitos ao regime da Lei 8.666, de 1993, como direito recentemente compreendido que é e como forma de garantia dos particulares contratados. Ficam excluídos do objeto de análise os contratos de delegação de serviços públicos (Parcerias Público-Privadas e demais formas de parcerias). A verificação se pauta no estudo do direito enquanto garantia dos contratados na execução de contratos administrativos.


1. O equilíbrio econômico-financeiro contratual: contraposição à supremacia exacerbada da Administração Pública.

 

1.1. O princípio da supremacia do interesse público nos contratos administrativos.

O desenvolvimento do assunto a ser abordado exige uma explicação quanto à racionalidade de sua existência dentro da sistemática do direito pátrio e dos seus contrapontos pertinentes. Nesse sentido é que surge a necessidade de detalhar a sua identificação no cenário jurídico através da elucidação dos contratos administrativos e da supremacia do interesse público como ponto de partida para a demonstração de sua fundamentação.

O contrato, segundo Caio Mário Pereira da Silva (2009, v. 3, p. 7), pode ser entendido como “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”. No ordenamento jurídico brasileiro, a regulamentação sobre os contratos nos remete a duas espécies principais que se diferenciam em razão do regime jurídico aplicável e dos interesses em jogo. De um lado, têm-se os contratos realizados entre particulares ou entre particular e o Estado, quando este atua como particular, os quais possuem como base legal, em síntese, o Código Civil de 2002. Do outro, existem os pactos que são realizados entre particulares e o Poder Público, utilizando-se este de suas prerrogativas estatais. São, portanto, os contratos privados e públicos ou, como também denominados, contratos administrativos.

A Administração Pública, dessa forma, também firma contratos com a aplicação do regime jurídico de direito privado, de acordo com o art. 62, §3º da Lei 8.666, de 1993, como, por exemplo, na realização de contratos de seguro[1]. Porém, nessas situações, o Poder Público se coloca em igualdade com o particular, não utilizando suas prerrogativas e incidindo, com isso, a paridade entre os contratantes. Assim leciona José dos Santos Carvalho Filho:

“É evidente que, quando a Administração firma contratos regulados pelo direito privado, situa-se no mesmo plano jurídico da outra parte, não lhe sendo atribuída, como regra, qualquer vantagem especial que refuja às linhas do sistema contratual comum. Na verdade, considera-se que, nesse caso, a Administração age no seu ius gestionis, com o que sua situação jurídica muito se aproxima da do particular.” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 190).

Dessa sorte, nos contratos em que se aplica o regime privado, há uma relação jurídica de plano horizontal, de forma que as partes envolvidas ficam em igualdade de poderes na firmação, execução e finalização da avença. A relação jurídica é de autêntica paridade entre os contratantes. A razão disso decorre justamente dos interesses que estão em jogo. Nesse sentido, as partes são livres para contratar como bem entenderem, de acordo com seus interesses, observada a função social contratual, a probidade e a boa-fé dos pactuantes (CC/2002, art. 421[2] e 422[3]). Destarte, a vontade de um não prevalece sobre a do outro por mera imposição, já que os interesses não se submetem a qualquer hierarquia.

Além disso, os contratos privados possuem uma regulamentação geral, aplicável a todos os pactos que possuem essa natureza, bem como normas que regem contratos específicos, ou, como denominado pela doutrina, contratos típicos. As normas de cunho geral pairam sobre todas as relações jurídicas contratuais, com aplicação de princípios e determinações básicas, fundamentadas na paridade de poderes entre os contratantes. Assim, o contrato privado pode ser realizado entre quaisquer pessoas, atendidos os requisitos previstos em lei.

Os contratos públicos ou administrativos, por sua vez, são assim intitulados pelo fato de portarem um diferencial em relação aos pactos privados, que é a aplicação de um regime jurídico de direito público (de natureza vertical), caracterizado por um conjunto de normas que colocam o Poder Público em estado de superioridade. Essa situação, como explica Arthur Cerqueira Valério e Maria Carolina Maurício Verçoza (VALÉRIO; VERÇOZA, 2007, p. 34), decorre também do interesse que está em jogo na relação jurídica, isto é, a necessidade de proteção do interesse público.

O Estado, enquanto ente representante da coletividade, atua em busca da concretização do interesse geral, necessitando, para tanto, de prerrogativas que assegurem a prevalência do bem-estar da sociedade, em contraposição a interesses particulares contrários. Dessa forma, em havendo conflito entre o interesse público, defendido pelo Estado, e o interesse particular, aquele deve prevalecer sobre este. Isso é a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, como salienta Márcia Walquiria Batista dos Santos (PIETRO; RIBEIRO (Coord.), 2010, p. 385), asseverando que as necessidades coletivas devem se sobrepor sobre as individuais, tendo em vista o bem-estar da população.

Não há dúvidas de que a finalidade do Estado é a concretização do interesse público, conquanto foi criado justamente para protegê-lo e atingi-lo. Tanto é assim que o próprio ordenamento jurídico possui diversos instrumentos de garanti-lo contra abusos, desvios, etc. Exemplos disso são as exigências de um procedimento licitatório para a escolha da proposta mais vantajosa (CF/88, art. 37, XXI); aplicação de penalidades severas aos que incorrem em improbidade administrativa (Lei 8.429, de 1992); exigência de concurso público para investidura em cargo público (CF/88, art. 37, II); e assim por diante.

Dessa forma, nos contratos administrativos, a Administração Pública atua em busca da concretização do interesse público, o qual deve prevalecer sobre interesses privados. A partir disso, é possível justificar a existência de prerrogativas que a colocam em superioridade sobre o particular contratado, a exemplo das denominadas cláusulas exorbitantes (Lei 8.666/93, art. 58), que lhe permitem proceder a atos decorrentes de sua posição, tais como modificação e rescisão do pacto unilateralmente, fiscalização da execução, sanções extracontratuais, etc.

Assim, não são poucas as prerrogativas do Poder Público no ordenamento jurídico brasileiro[4]. Nesse sentido, para a abordagem correta do tema, levar-se-á em consideração apenas os contratos administrativos. Isso porque, nesses pactos, em que há incidência do regime jurídico de direito público, as prerrogativas estatais justificam a existência de institutos jurídicos diversos dos previstos para o regime privado, como se demonstrará adiante.

1.2 As garantias dos particulares.

A existência de tantos instrumentos em favor do Estado, por outro lado, pode causar uma instabilidade para as empresas que tenham a intenção de contratar com ele, o que poderia causar, inclusive, um desinteresse em prestar o bem almejado pela Administração Pública. Com isso, é necessária a existência de garantias asseguradas aos particulares e que estas sejam efetivamente observadas na execução dos contratos administrativos.

Assim, a estabilidade e, conseqüentemente, o lucro são as maiores garantias que podem ser estabelecidas em favor dos particulares contratados pelo Estado para que executem sua atividade com presteza e eficiência. No contrato administrativo, o contratado tem a certeza de que, muito embora a Administração Pública possua prerrogativas, estas se restringem às situações aludidas pela legislação, em estrita observância ao princípio da legalidade (CF/88, art. 37, caput).

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A estabilidade aludida é, principalmente, de cunho econômico, já que o contratado tem a garantia de que o Poder Público não irá se submeter à falência e que a empresa contratada terá o seu crédito recebido, já que este é um direito constitucional, previsto no art. 37, XXI, da Carta Magna[5]. Destarte, a estabilidade econômica é a mais importante garantia que o particular possui, sabendo-se que, ao final, o seu lucro deverá ser obtido em conformidade com a proposta por ele apresentada.

O dispositivo precitado prevê justamente essa situação, estabelecendo a segurança jurídica de que o contratado precisa, qual seja: a garantia de que haverá o seu lucro previsto na proposta e que este será caracterizado pela proporcionalidade entre o encargo a ser executado e a contraprestação a ser paga pela Administração Pública, conforme a proposta inicial. É o que se denomina de equilíbrio ou equação econômico-financeira do contrato administrativo, que detém fundamento constitucional e é tratado com princípio magno.

Nesse contexto, explicita Hely Lopes Meirelles:

“O contrato administrativo, por parte da Administração, destina-se ao atendimento das necessidades públicas, mas por parte do contratado objetiva um lucro, através da remuneração consubstanciada nas cláusulas econômicas e financeiras. Esse lucro há que ser assegurado nos termos iniciais do ajuste, durante a execução do contrato, em sua plenitude, mesmo que a Administração se veja compelida a modificar o projeto, ou o modo e forma da prestação contratual, para melhor adequação às exigências do serviço público”. (MEIRELLES, 2006, p. 208).

A estabilidade econômico-financeira (proporcionalidade entre encargo/remuneração) é uma garantia que também existe nos pactos privados, mas que incide com maior ênfase nos contratos administrativos, já que o particular contratado está mais vulnerável ao ius variandi decorrente das prerrogativas do ente contratante, necessitando de mais instrumentos para concretização do seu direito. Isso tudo decorre de uma proteção jurídica que os executores dos contratos administrativos precisam para manter sua atividade operante e, dessa forma, realizar com eficiência e presteza a atividade pretendida pelo Poder Público, pois, como afirmou Márcia Walquiria Bastos dos Santos (2009, p. 326), o particular “objetiva lucro, sob pena de não conseguir cumprir as obrigações ao longo do prazo total de execução do contrato”.

A não observância dessa relação de proporcionalidade acarreta prejuízos para os dois entes contratantes, já que, tanto o particular não obterá o lucro previsto para realizar a atividade, como a Administração Pública não terá também um serviço eficiente e completo a seu alcance, prejudicando, dessa forma, o interesse coletivo. É o que ocorre, por exemplo, em alterações de projetos de obras já em execução, em que o particular precisa ter uma maior remuneração para executar o acréscimo de encargos impostos pelo Poder Público, sendo necessário, portanto, o restabelecimento do equilíbrio contratual, como já chegou a decidir o Superior Tribunal de Justiça[6].

Assim, a equação econômico-financeira é uma garantia existente em contraposição às inúmeras prerrogativas de que a Administração Pública é titular, com o objetivo de assegurar um mínimo de segurança e estabilidade na relação jurídica. O Poder Público tem o dever, portanto, de manter a relação de proporcionalidade para obter um serviço eficiente e para garantir a justa remuneração do contratado.

Por outro lado, no que concerne à efetiva concretização desses direitos, é evidente que o ente público não deveria criar qualquer embaraço à obtenção dessas garantias, sob pena de incidir em inconstitucionalidade e tornar um caos a sua atividade administrativa, pois poucos iriam querer contratar com ele. Todavia, o dever muitas vezes não corresponde ao ser, sendo necessária a utilização de vias alternativas para se buscar o direito garantido por lei e pela Carta Magna, principalmente através do Poder Judiciário, instituição de suma importância na garantia e concretização dos direitos dos cidadãos.

Na prática, seja por falta de regulação, seja por falta de esclarecimento acerca do assunto, o Poder Público, por vezes, coloca óbices à concretização do direito, através do estabelecimento de normas e procedimentos equivocados. Porém, qualquer forma de tentar impedir a consecução do direito ao equilíbrio econômico-financeiro não deve ser aceita e deve ser expurgada do mundo jurídico, por ser ilegal e, ao mesmo tempo, infringir princípios constitucionais. O assunto será mais bem tratado a frente.

1.3. O reequilíbrio econômico-financeiro e a teoria da imprevisão.

Tanto nos contratos administrativos, como nos contratos privados, a aplicação do princípio da força obrigatória (pacta sunt servanda) é plenamente aceito. Isso porque tal postulado possui fundamento constitucional (CF/88, art. 5º, XXXVI[7]) e defesa unânime por parte da doutrina. Nas lições de Caio Mário da Silva Pereira (2009, v. 3, p. 14), por meio dele, os contratos fazem lei entre as partes, de forma que devem ser cumpridos e exauridos em todos os seus termos, não havendo autores que cheguem a infirmá-lo. Assim, o descumprimento por uma das partes constitui ato ilícito que gera o dever de reparar por aquele que assim procedeu.

Por outro lado, com o tempo, percebeu-se que o princípio da força obrigatória dos contratos era insuficiente para regular as relações negociais, principalmente quando havia mudanças circunstanciais entre os contratantes que geravam desequilibro entre os encargos pactuados. Com isso, surgiu a denominada cláusula rebus sic stantibus, criada com o intuito de proteger o equilíbrio entre as partes, de forma a manter a proporcionalidade entre o encargo e o valor devido, evitando enriquecimentos sem causa.

A solução para o problema veio como forma de permitir uma composição pacífica quanto à continuidade do negócio jurídico, mantendo-se os interesses e benefícios das partes contratantes incólumes. Nesse ponto, a referida cláusula sofre diversas releituras e denominações, mas todas justificadas com o mesmo objetivo, que é a manutenção do equilíbrio de encargos, e, nesse sentido, é que se compreende o equilíbrio ou a equação econômico-financeira contratual. O contrato deve ser compreendido de maneira dinâmica, de forma que as alterações sociais e econômicas da avença devem ensejar a sua renegociação, como forma de primar pelo bem da relação negocial e pela boa-fé dos contratantes, conforme salientado por Leonardo Mattieto (2007, p. 129-130).

Renata Faria Silva Lima explica também a sistemática do surgimento da mencionada cláusula:

“Observada a legítima formação de um contrato, instala-se, por sua força jurídica, o vínculo obrigatório e presumidamente justo entre os contratantes. Contudo, a obrigatoriedade contratual está indissoluvelmente ligada à comutatividade ou ao equilíbrio entre as prestações das partes. Se eventos posteriores por elas não previstos afetam esta comutatividade e, conseqüentemente, a justiça contida na equação econômica-financeira inicialmente avençada, a aplicação do pacta sunt servanda se torna flexível, com vistas ao restabelecimento do equilíbrio das prestações. [...]

A obrigatoriedade contratual tornou-se relativa, permitindo a revisão do conteúdo do negócio ou, até mesmo, a resolução do contrato quando modificadas as condições em que tal contrato foi firmado, a partir da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, visando ultimar a proteção do equilíbrio entre as partes, para o restabelecimento da comutatividade e, principalmente, para a proteção às garantias constitucionais, entre as quais o princípio da igualdade e repressão ao abuso econômico”. (LIMA, 2007, p. 10-12).

A citada cláusula é compreendida melhor ainda se observada sob o prisma dos demais princípios aplicáveis às relações contratuais, tais como o princípio da boa fé, da probidade e da função social da avença. Todos estes, de uma forma ou de outra, acabam por demonstrar a mesma finalidade, que é a de impedir o enriquecimento de uma das partes em prejuízo da outra, em virtude de eventos futuros não previstos inicialmente, idéia esta que acabou por consolidar o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. Segundo esta máxima, não deve haver ganho de uma das partes do negócio jurídico em detrimento do outro contratante, sem que, para tanto, haja sua concordância.

O princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, nesse sentido, retrata justamente a boa-fé que deve permear os contratos em geral. Além disso, objetiva assegurar a manutenção da igualdade entre os encargos durante a execução contratual e que nenhuma das partes obtenha lucro sem um título que legitime tal situação. É medida também de evitar injustiças e incentivar sempre a manutenção das avenças, como asseverou Caio Mário Pereira da Silva (2009, v. 2, p. 277-278).

Esse princípio é claro e totalmente aplicável à situação dos contratos administrativos. Em havendo aumento de gastos para o contratado, este deve ter o direito de repassá-los às cláusulas econômicas do pacto realizado com a Administração Pública, como medida de lhe garantir estabilidade e segurança jurídica na execução da avença, de forma que não haja prejuízo a qualquer das partes envolvidas. Como ressalta Carlos Pinto Coelho Motta (2001, p. 288): “o salutar pressuposto da boa-fé deve presidir a relação entre particular e o Estado, eliminando o risco do enriquecimento ilícito de qualquer das partes [...]”.

Destarte, a manutenção da equação econômico-financeira do contrato administrativo é uma garantia do particular contratado, da qual não pode a Administração Pública se eximir, limitando-a ou impedindo a sua proteção. Deve ela ser aplicada para manter o negócio jurídico sob a proporcionalidade que inicialmente havia se estabelecido de acordo com a proposta apresentada no certame licitatório.

Se não fosse assim, as relações contratuais dos particulares com o Poder Público se tornariam um caos em face de tantas prerrogativas que este possui. Assim, esse direito manifesta-se como uma clara garantia do particular existente em contraposição às inúmeras prerrogativas justificadas pelo interesse público. É, dessa forma, um direito que garante estabilidade e, conseqüentemente, segurança jurídica, sendo, como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 631), uma equação intangível.

Ademais, nos contratos administrativos, a manutenção da equação econômico-financeira possui fundamento constitucional, estabelecido no art. 37, XXI, da Carta Suprema, conforme já apontado anteriormente[8]. Assim, qualquer forma de impedir a manutenção dessa relação equacional, seja através de atos administrativos, legislativos ou judiciários, resultará sempre em inconstitucionalidade, devendo ser expurgado do mundo jurídico. Afirma novamente Renata Faria Silva Lima (2007, p. 58) que “configurará inequívoco ato ilícito qualquer ato emanado pela Administração que venha a negligenciar o seu dever de manutenção da essência do objeto ou das cláusulas econômico-financeiras”.

Posto isto, o problema está em desvendar quais atos podem ser considerados como geradores de ruptura da equação econômico-financeira dos contratos administrativos, bem como os requisitos para a sua configuração. Para isso, é necessário buscar a conceituação do instituto e detalhar seus desdobramentos. Nesse sentido, o já citado doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 630) afirma que o “equilíbrio econômico-financeiro (ou equação econômico-financeira) é a relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e, de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponderá”.

Marçal Justen Filho (2009, p. 455), por outro lado, leciona que “a equação econômico-financeira é a relação entre encargos e vantagens assumidas pelas partes do contrato administrativo, estabelecida por ocasião da contratação, e que deverá ser preservada ao longo da execução do contrato”. O Tribunal de Contas da União, no Manual de Licitações e Contratos Administrativos, por ele publicado em seu endereço eletrônico, conceitua o equilíbrio econômico-financeiro da seguinte maneira:

“O equilíbrio econômico-financeiro consiste na manutenção das condições de pagamento estabelecidas inicialmente no contrato, a fim de que se mantenha estável a relação entre as obrigações do contratado e a retribuição da Administração, para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento”. (TCU, 2006, p. 286).

Por fim, Hely Lopes Meirelles conceitua o equilíbrio, afirmando que:

“[...] a relação estabelecida inicialmente pelas partes entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração do objeto do ajuste. Essa relação encargo-remuneração deve ser mantida durante toda a execução do contrato, a fim de que o contratado não venha a sofrer a indevida redução nos lucros normais do empreendimento”. (MEIRELLES, 2008, p. 218).

Como se percebe, todos esses conceitos direcionam à mesma idéia estabelecida no art. 37, XXI, da Constituição Federal de 1988, no sentido de se garantir a manutenção das propostas inicialmente apresentadas, ou seja, assegurar a proporcionalidade entre o encargo atribuído e o preço ofertado. A divergência que surge a respeito do tema é se qualquer modificação do equilíbrio econômico-financeiro poderá ensejar direito do particular a restabelecer a relação inicial. Para explicar a situação, os juristas estabelecem uma diferenciação entre as chamadas áleas contratuais, especificando-as em álea ordinária e extraordinária.

Essas duas áleas, como as próprias denominações sugerem, se diferenciam pela imprevisibilidade do ato ou de suas conseqüências. Enquanto a álea ordinária poderia ser prevista pelo contratado, a álea extraordinária decorreria de fatos imprevisíveis ou previsíveis, porém de conseqüências incalculáveis. A primeira, portanto, segundo Márcio Cammarosano (2007, p. 342), decorre da própria atividade empresarial, enquanto que a segunda não se sabe quando ou como poderá ocorrer.

Em vista disto, algumas decisões começaram a afirmar que o equilíbrio econômico-financeiro só seria rompido quando comprovada a ocorrência de fato imprevisível ou previsível, porém de conseqüências incalculáveis. Assim, apenas em caso de ocorrência de ato decorrente da álea extraordinária é que a equação seria modificada, segundo esse entendimento. No Tribunal Regional Federal da 1ª Região[9], por exemplo, chegou-se a afirmar, em relação à realização de convenções coletivas de trabalho ocorridas após a assinatura do contrato administrativo, que “[...] A concessão de aumento salarial aos empregados da contratada, por força de dissídio coletivo, não se caracteriza como causa a ensejar a revisão do contrato, porque não existe desequilíbrio econômico-financeiro, que somente se configuraria se o encargo trabalhista fosse imprevisível [...]”.

Na verdade, trata-se de uma confusão entre institutos jurídicos. Com o surgimento da idéia de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro no ordenamento jurídico pátrio, foi adotada também, paralelamente, a denominada teoria da imprevisão, segundo a qual, a renegociação contratual para adequação do valor ocorreria sempre que ocorressem fatos supervenientes imprevisíveis (álea extraordinária), sem a exigência de maiores formalidades, independentemente do momento. Por outro lado, a ocorrência de fatos previsíveis não poderia ser compensada no contrato administrativo durante certo lapso temporal, estando também sujeita a maiores requisitos. São situações completamente distintas.

A aferição quanto à previsibilidade do ato não engloba todos os casos de ruptura da equação econômico-financeira. A razão disso é que, mesmo havendo previsibilidade em relação ao fato surgido, este pode simplesmente não ter sido incluído originariamente no preço ofertado inicialmente, ensejando, assim, o desequilíbrio entre os encargos, principalmente em contratos extensos, onde não há como se antever sequer uma margem da porcentagem que poderá vir a ocorrer. A questão está em definir se essa desestabilização pode ensejar revisão do contrato anteriormente firmado e, nesse ponto, é que entra a teoria da imprevisão, impossibilitando a alteração ante a existência de previsibilidade do ato durante um período preestabelecido.

Efetivamente, a doutrina, em sua grande maioria[10], adota a teoria da imprevisão como forma de definir a possibilidade ou não de se alegar o desequilíbrio econômico-financeiro contratual para obter um realinhamento econômico do contrato administrativo. Todavia, não se pode negar que a Constituição Federal de 1988, no dispositivo que garante a manutenção da equação aludida, não faz qualquer diferenciação no que atine à previsibilidade do ato, tendo havido, nesse ponto, restrição de um direito constitucional, o que demonstra, ao menos formalmente, a ocorrência de inconstitucionalidade de qualquer ato administrativo, legislativo ou judiciário que exclua os atos previsíveis da proteção do princípio do equilíbrio econômico-financeiro contratual.

Porém, não é de se negar que a aplicação da teoria da imprevisão, na forma aludida, é adotada no âmbito de todos os poderes, nunca tendo sido, contudo, levada ao Supremo Tribunal Federal para análise da constitucionalidade da sua restrição em relação à disposição constitucional. Entretanto, esse fato não impede a análise crítica por parte dos estudiosos, os quais podem se deleitar sobre a matéria, ainda obscura e pouco enfrentada pelos juristas.

O reequilíbrio econômico-financeiro pode ser ensejado por diversas situações, sendo a teoria da imprevisão apenas um instrumento de definição das hipóteses de sua aplicação em um nível de formalidade menor, tendo em vista a imprevisibilidade que lhe é peculiar. Assim, a aferição da inexistência de previsão do ato gerador do desequilíbrio de encargos seria uma forma de decidir sobre a existência ou não do direito do contratado de rever a relação de proporcionalidade em conformidade com a proposta inicialmente apresentada, sem maiores restrições, durante um período preestabelecido.

1.4. Formas de expressão do reequilíbrio econômico-financeiro.

As situações que podem ensejar a necessidade de restabelecer a equação econômico-financeira podem ser as mais variáveis. Desde que seja desfeita a relação de proporcionalidade estabelecida em conformidade com a proposta apresentada pelo contratado, haverá, por via de conseqüência, desequilíbrio contratual. A Carta Magna garante a manutenção das condições efetivas da proposta. O problema é que, muito embora seja um direito constitucional do contratado, a doutrina e a jurisprudência vêm sendo seletiva em relação às hipóteses que permitem a renegociação do preço para voltar à equação inicial.

Como visto antes, é plenamente aceita a idéia de que o reequilíbrio econômico-financeiro é obrigatório quando comprovada a ocorrência de um fato integrante da álea extraordinária[11], ou seja, não prevista inicialmente pelo contratado (aqui incluído o fato do príncipe, a alteração unilateral do contrato, o caso fortuito, a força maior, etc.), apontando-se, para tanto, a fundamentação do art. 65, §1º, II, d, da Lei 8.666, de 1993. Muito embora os doutrinadores classifiquem diferentemente as formas de expressão da álea extraordinária, é certo que, para a sua configuração, basta que haja a ocorrência de um fato imprevisto ou, pelo menos, de conseqüências imprevisíveis ou incalculáveis, após a apresentação da proposta no certame licitatório e que este fato não tenha ocorrido por culpa do contratado.

O que importa, na verdade, é que o licitante não tenha previsto na sua proposta a ocorrência daquele fato oneroso. O caso fortuito, a força maior, o fato do príncipe, o fato da administração e demais elementos indicados pela doutrina como ocorrências distintas são sempre acontecimentos não previstos pelo contratado no momento da apresentação da proposta, fazendo jus o particular ao restabelecimento da equação econômico-financeira. A proporcionalidade de encargos, em conformidade com a proposta inicial, é um direito e um princípio constitucional que deve ser observado por qualquer dos poderes (MEIRELLES, 2006, p. 208).

A questão que surge é quando se indaga acerca da inclusão de hipóteses integrantes da álea ordinária como geradoras do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro. Essa espécie de risco é considerada pela doutrina como a que decorre normalmente da atividade empresarial e que, assim, é facilmente prevista pelo contratado. É o caso, por exemplo, do aumento normal do preço, decorrente da inflação, com aumento do valor dos insumos, mão-de-obra, etc. Tal aumento de gasto é compensado através dos reajustes e, mais recentemente, através da repactuação, instituto novo e ainda não bem compreendido no direito.

Com isso, chegou-se a argumentar que esse aumento ordinário de gastos não geraria direito à alteração da situação econômica do contrato. A fundamentação utilizada para se afirmar isso é a de que a álea ordinária não acarreta o desequilíbrio contratual, pois a sua variável deveria estar incluída na proposta. Dessa forma, alegam que o fundamento para existir o reajuste e a repactuação do contrato administrativo, com a finalidade de compensar encargos ordinários, não decorreria do direito à equação econômico-financeira, mas de uma concessão, ou melhor, faculdade da Administração Pública.

Esse entendimento, todavia, contradiz o direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, sendo uma confusão de institutos, como mencionado anteriormente. O reajuste de preços ou a repactuação de um contrato administrativo é uma forma de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro a partir da compensação do aumento de gastos ordinários. Os dois institutos, de uma forma ou de outra, visam amenizar a elevação de custos decorrentes da inflação monetária. Na verdade, o passar do tempo entre a proposta apresentada e o desenvolvimento da execução contratual causa a modificação dessa equação econômico-financeira e, conseqüentemente, gera a necessidade de se adequar a proporcionalidade dos encargos. Não se trata, pois, de uma faculdade, mas de uma obrigação da Administração Pública em conceder esse direito.

A diferenciação que existe é a de que os fatos extraordinários, ou de conseqüências extraordinárias, seguem um regramento diferente, com requisitos diferenciados, distinto dos aplicados à compensação de gastos ordinários, fato este que não os excluem do quadro normativo do direito ao equilíbrio econômico-financeiro estampado na Constituição Federal de 1988. Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 647-648), tratando dos reajustes de preços nos contratos administrativos, enfatiza que essa compensação é uma forma de salvaguardar a equação econômico-financeira contratual, direito constitucional dos contratantes, e é concretização do dever de boa-fé da Administração Pública nas avenças, sobre a qual deve estar sempre pautada.

Assim, seja a álea ordinária ou extraordinária, a afetação da equação econômica contratual gera o direito ao reequilíbrio de encargos, mas se diferencia em razão dos requisitos e da moldagem jurídica a que são submetidos. Destarte, o direito decorrente da álea ordinária pode observar prazos maiores para que haja a sua compensação no contrato administrativo; pode ser exigida a manifestação expressa do interessado no direito (requerimento); e assim por diante. O que não se pode é excluir o direito do contratado sob a alegação de que não faz parte do seu direito constitucional, limitando-o ao bel prazer da Administração Pública.

O Poder Público não está na relação jurídica visando à obtenção de lucro, mas sim à concretização do interesse público e, portanto, deve observar a garantia constitucional do contratado ao equilíbrio econômico-financeiro, não podendo criar óbices à sua consecução. A adequação contratual é manifestação expressa da cláusula rebus sic stantibus e deve ser observada também como direito constitucional do contratado.

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Sobre o autor
Marcílio da Silva Ferreira Filho

Graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Advogado na empresa Porto Zero Consultoria e Assessoria em Comunicação LTDA. Advogado na sociedade Marcílio Ferreira Advogados Associados. Assessor Jurídico do Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco – DETRAN/PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA FILHO, Marcílio Silva. O direito à repactuação dos contratos administrativos e os limites regulatórios do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3339, 22 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22467. Acesso em: 21 dez. 2024.

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