2. Repactuação: um instituto inovador.
2.1. O surgimento no direito brasileiro.
O conceito de repactuação do contrato administrativo não pode ser extraído da simples leitura de um dispositivo de lei. Pelo contrário, a definição desse instituto só é possível de ser fixada a partir de uma análise da conjuntura de normas, precedentes e lições doutrinárias, que, muitas vezes, mesmo conjugados, são insuficientes para esclarecer corretamente a sua moldura jurídica. Mais importante ainda é conhecer o seu surgimento no direito brasileiro, visando entender o seu funcionamento e a sua estrutura desse direito para encontrar seu delineamento conceitual.
Como explicado anteriormente, os contratos administrativos se diferenciam dos privados pela aplicação de um regime jurídico de direito público que coloca a Administração Pública em um estado de superioridade. A justificativa para isso é a necessidade de proteção do interesse público por plena aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Por outro lado, os particulares precisam de garantias para poder executar o contrato com estabilidade e segurança, pois, do contrário, diminuiria o interesse em contratar com o Poder Público.
A repactuação se encontra justamente entre esses direitos relativos ao interesse patrimonial do contratante privado. Entretanto, a principal norma atual sobre licitações e contratos administrativos no direito brasileiro, Lei 8.666, de 1993, não previu expressamente o instituto citado, pelo menos não sob essa nomenclatura. Isso porque, inicialmente, tendo em vista o período de instabilidade financeira presenciado pelo Brasil, não era possível a sua estruturação e aplicação nos moldes atuais.
Inicialmente, só se aceitava a adoção de índices oficiais para reajustar o pacto, já que o contratado não iria conseguir comprovar os aumentos de custos sempre que o tivesse, uma vez que os preços oscilavam constantemente. O seu surgimento efetivo só ocorreu a partir da estabilização da moeda, com a implantação do Plano Real, especialmente a partir da promulgação de algumas leis como, por exemplo, a Lei 8.880, de 1994[12]; 9.069, de 1995[13]; e 10.192, de 1998[14]. Márcia Walquiria Batista dos Santos explicita a dificuldade pela qual passou o país:
“Esse assunto começou a ganhar importância antes do Plano Real e durante o mandato do Presidente Collor de Mello, em que a inflação era galopante; era o panorama em que viviam as licitações, em momento anterior à edição da Lei nº 8.666/93. Quem trabalhou com licitações à época do Decreto-Lei nº 2.300/86 sabe as dificuldades em celebrar contratos de longo prazo e como era freqüente a questão das solicitações de revisão de preços. [...] Eu me lembro do então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, fazendo a distinção entre ter um reajuste de 80% no contrato ou de 2% ou, às vezes, nenhum. Como esse reajuste era significativo em uma época em que havia inflação, essas atualizações acabavam acontecendo de uma forma quase que automática e mensalmente”. (SANTOS, 2009, p. 325-326)
Dessa forma, a impossibilidade de previsão da situação financeira futura do país apenas permitia duas formas de garantir o interesse patrimonial do contratante nos pactos administrativos, as quais foram intituladas de revisão ou recomposição e reajustamento de preços (arts. 40, XI; 55, III; e 65, I, d e §6º, da Lei 8.666, de 1993), embora, não raras as vezes, tenham sido utilizadas para significados indevidos. A previsão dos dois institutos teve por escopo garantir a proporcionalidade entre os encargos incumbidos ao particular e sua compensação financeira correspondente. É cabível, assim, diferenciá-los.
O contratante faz jus à revisão ou recomposição do contrato administrativo quando ocorre um fato ulterior e alheio à vontade do contratado, e não previsível por este, que acarrete aumento de seus encargos, ou seja, ocorre quando o fato decorrer da álea extraordinária. É o caso, por exemplo, das hipóteses elencadas no art. 65, §1º, II, d, da Lei 8.666, de 1993[15]. Também pode ser suscitada sua ocorrência quando o Poder Público altera unilateralmente o contrato, art. 65, §6º, da legislação citada. Como se verifica, a desproporcionalidade entre encargos surge de um fato alheio à normalidade da execução contratual, fator este que enseja prejuízo excessivo a uma das partes contratantes.
O reajustamento de preços, por outro lado, foi entendido, de início, restritivamente como reajuste de preços, instituto este que tem por base a aplicação de um índice oficial sobre o valor do contrato, de forma automática, com vistas a compensar o aumento dos custos decorrentes da inflação. Esse procedimento, da forma aludida, se justificava pelo fato de que, àquela época, seria muito difícil comprovar o aumento de encargos em um período de plena instabilidade, em que um dia não retratava os custos da data seguinte. José dos Santos Caravalho Filho (2010, p. 217), por exemplo, até hoje, ainda elucida a diferença entre revisão e reajuste na forma citada, aludindo apenas à aplicação do índice. Deve-se salientar também que, como ensina Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, 2006, p. 210-211), “o reajustamento contratual de preços não se confunde nem impede a revisão do contrato e a recomposição extraordinária de preços [...]”.
Com a implantação do plano real, a economia brasileira passou a ter estabilidade e a inflação começou a ser um fato previsível, com a possibilidade de, em regra, prever uma margem da futura variação de preços, o que possibilitou o surgimento da repactuação como uma espécie de reajustamento de preços ao lado do reajuste[16][17]. Haja vista a maior previsibilidade da economia brasileira e, em especial, da inflação de mercado, começou-se a exigir que, para obter o reajustamento de preços, o contratado deveria comprovar o aumento de seus custos, através de documentos hábeis e de planilhas comparativas de preços, já que a aplicação de índice poderia não retratar a verdade dos fatos, onerando injustamente ou o particular ou a Administração Pública.
A aplicação automática de índice para reajustar os valores do contrato e permitir uma equiparação de encargos se mostrou menos eficaz do que a utilização da repactuação. A incidência automática poderia não retratar o efetivo aumento de custos, vez que estes variavam de acordo com o conteúdo e a forma de execução do pacto. Outra razão é que a maioria dos custos do contratado já estava amortizada com um período curto após o início da execução da avença, sendo a aplicação do índice prejudicial ao ente contratante, como explica Marçal Justen Filho (JUSTEN FILHO, 2009, p. 465).
Em que pesem tais considerações, deve-se destacar que a legislação continua prevendo a possibilidade de utilização do reajuste, já que o art. 40, XI[18], da Lei 8.666, de 1993, não foi revogado, mantendo a faculdade de utilização de índices específicos ou setoriais. No mesmo sentido é a Lei 10.192, de 2001, que, em seu art. 2º[19], também a permite. Porém, mesmo com expressa disposição nesse sentido, o Tribunal de Contas da União vem decidindo que deve ser utilizada a repactuação para equiparar os encargos do contrato, e não a incidência de percentuais específicos. No Acórdão nº 0265-05/10 - Plenário, determinou à Caixa Econômica Federal que:
“[...] quando realizar repactuações de valores por meio de termo aditivo, efetue um diagnóstico analítico dos componentes do custo do contrato e pondere a real necessidade de se reajustar cada um deles, abstendo-se de simplesmente aplicar os percentuais de reajuste aos itens unitários, de forma a restabelecer o equilíbrio entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração do serviço, conforme estabelecido nos arts. 40, inciso XI; 65, inciso II, alínea “d”, da Lei nº 8.666/93, e no art. 5º do Decreto nº 2.271/97”. (TCU, 2010).
Assim, vem sendo recomendada pelo TCU a adoção da repactuação no lugar do reajuste, com a finalidade de buscar cada vez mais a efetiva variação dos custos. Embora o tema não se apresente claro em sua definição, a utilização da repactuação, abstendo-se de aplicar índices automaticamente, representa a melhor opção para os contratantes, pois retrata a equiparação dos encargos de forma mais condizente com a realidade, evitando-se o enriquecimento sem causa de qualquer dos envolvidos no negócio jurídico.
Registra-se que a primeira norma que utilizou a nomenclatura da repactuação foi a Resolução nº 10, de 1996, do Conselho de Coordenação e Controle de Empresas Estatais – CCE[20], em que pese não ter trazido nenhuma contribuição elucidativa sobre o tema, apenas suscitando a sua existência. Mesmo após esse ato normativo, não veio a ser editada qualquer lei a respeito do tema, diferenciando a repactuação como um direito distinto do reajuste. O ordenamento jurídico, assim, se mostra precário em face do vazio normativo existente. A Lei 8.666, de 1993, traz apenas previsão do reajustamento de preços, gênero do qual a repactuação é espécie (art. 40, XI, e 55, III, da Lei 8.666, de 1993). As Leis 9.069, de 1995, e 10.192, de 2001, também não prevêem essa nomenclatura, utilizando-se sempre da palavra do termo reajuste ou do gênero reajustamento.
A possibilidade de o Poder Executivo regular esses dispositivos foi concedida pelas Leis n.º 8.666, de 1993, e 10.192, de 2001. A primeira, prevendo o gênero do reajustamento de preços, não detalhou tal instituto, permitindo o regramento através de atos normativos infralegais, desde que não entrem na seara de matérias exclusiva de lei. Por outro lado, a segunda, e seu art. 3º,§2º, concedeu praticamente um “cheque em branco” ao Poder Executivo de todas as federações, permitindo que fosse regulado o reajuste de preços, desde que respeitada a anualidade prevista. No âmbito federal, por exemplo, a partir dessas liberações, foram editadas algumas regras sobre a repactuação, podendo-se utilizar como exemplos o Decreto 2.271, de 1997, e a Instrução Normativa nº 02, de 2008, do MPOG, principais atos normativos a respeito da matéria.
No entanto, não é demais destacar que essas permissões apenas possibilitam ao Poder Público regulamentar o dispositivo, não podendo criar ou modificar direitos previstos em lei e, muito menos, na Carta Magna, em respeito ao princípio da separação dos poderes (CF/88, art. 2º) e da legalidade (CF/88, art. 5, II). O sistema jurídico brasileiro não admite a utilização do regulamento autônomo, mesmo se concedido através da legislação o poder de regulação, haja vista que o único meio de o Poder Executivo dispor sobre matéria de lei é através de lei delegada, procedimento previsto na própria Constituição de 1988.
2.2. Fontes e fundamentos: em busca de uma definição jurídica.
A partir dessas considerações, é possível buscar um norte para a definição da repactuação no sistema jurídico brasileiro, levando-se em conta os fatores elencados anteriormente. Como se ponderou, a repactuação é considerada espécie de reajustamento de preços, ao lado do reajuste, e não se confunde com a recomposição de preços.
Assim, a repactuação do contrato administrativo tem por finalidade retomar a equivalência entre os encargos do contratado e sua contraprestação financeira, ante a defasagem dos valores contidos na proposta decorrente do aumento da inflação, como, por exemplo, aumento do valor da mão-de-obra, de uniformes, de equipamentos e assim por diante. Os meios de equiparar tais obrigações são através da comprovação do aumento dos gastos (repactuação) ou da aplicação automática de índices ao valor do contrato (reajuste).
Disto, já se vê que a repactuação possui fundamento na cláusula rebus sic stantibus, criada como forma de relativização do pacta sunt servanda. O surgimento dela vem da necessidade de se adequar o aumento de gastos ordinários com a contraprestação recebida da Administração Pública. Entretanto, os documentos que a ela fazem referência não se dispõem a conceituá-la de forma didática, restringindo-se a fazer a diferenciação em relação ao reajuste e ao reajustamento de preços.
Os poucos doutrinadores que enfrentam a matéria também encontram dificuldades em definir de forma clara o conteúdo desse direito. Marçal Justen Filho (2009, p. 465), por exemplo, leciona que: “a repactuação consiste numa modalidade de revisão de preços, realizada a cada doze meses, a ser obrigatoriamente adotada nos contratos de serviços contínuos com prazo superior a doze meses, praticados pela Administração Pública federal indireta”.
Como se percebe, a conceituação trazida pelo doutrinador referido é passível de diversas críticas. Dentre elas, é possível citar, como mais evidente, o equívoco utilizado quanto à nomenclatura e à restrição de sua utilização por parte da Administração Pública federal indireta. Conforme se expôs anteriormente, a repactuação é espécie de reajustamento de preços e não de revisão, podendo ser utilizada por qualquer entidade da Administração Pública, qualquer ente federado, desde que incidente em contratos administrativos.
Arthur Cerqueira Valério e Maria Carolina Mauricio Verçoza (2007, p. 38) conceituam repactuação de preços com o instrumento que visa estabelecer a “variação real de preços, desde que haja previsão no edital; observância do interregno mínimo de um ano e demonstração analítica, por meio de uma planilha, da efetiva variação [...]”. A definição aludida também se preocupou mais com os requisitos do que com a didática do direito em apreço.
O governo federal, por outro lado, também tentou destinar uma conceituação a respeito desse instituto. Trata-se da Instrução Normativa nº 02, de 2008, editada pelo Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que, em seu anexo I, inciso XX, alterado pela Instrução Normativa nº 03, de 2009, do mesmo órgão, afirmou que a repactuação:
“[...] é a espécie de reajuste contratual que deve ser utilizada para serviços continuados com dedicação exclusiva da mão de obra, por meio da análise da variação dos custos contratuais, de modo a garantir a manutenção do equilíbrio econômico- financeiro do contrato, devendo estar prevista no instrumento convocatório com data vinculada à apresentação das propostas para os custos decorrentes do mercado e do acordo ou convenção coletiva ao qual o orçamento esteja vinculado para os custos decorrentes da mão de obra;”. (MPOG, 2009).
A redação do dispositivo precitado e os conceitos trazidos são detalhados e resumem aspectos atinentes aos requisitos da repactuação, os quais não são suficientes para um consenso didático. Para elucidar a definição a que se busca, todavia, necessita-se definir primeiramente os seguintes elementos: fato-gerador, sujeitos passivos e ativos da relação e os pressupostos de validade. A conjunção de todas essas características possibilita uma compreensão mais ampla da estrutura da repactuação, como direito novo que é.
No que concerne ao fato-gerador do direito à repactuação, é possível afirmar que as normas não indicam plenamente a situação que se enquadra na hipótese normativa. Inobstante essa lacuna, sua estrutura normativa e finalidade com que foi criada demonstram que é o aumento de custos ordinários o fato gerador do direito, visando manter o equilíbrio econômico-financeiro, assegurado pela Constituição Federal de 1988.
Assim, a conceituação deve levar em consideração as situações que ensejam a repactuação, ou seja, os motivos que a fazem surgir. Nesse mesmo sentido, esse direito é gerado a partir do momento em que há aumento dos custos contratuais para uma das partes, ensejando desproporção entre as obrigações previamente estipuladas. Como já foi explicitado antes, esse instituto é uma espécie de reajustamento de preços e surge a partir da comprovação efetiva do aumento de gastos despendidos na execução da avença inicialmente firmada e não previstos preliminarmente na proposta de preços.
Contudo, a diminuição dos custos destinados pelo particular, em virtude da amortização que pode ocorrer em algumas espécies de contrato após o transcorrer de certo lapso temporal, também é fato gerador da repactuação. Esse ponto de vista, porém, não faz parte da análise efetivada no presente estudo, que visa unicamente a verificar a repactuação como garantia constitucional dos particulares contratados.
Quanto ao sujeito passivo do direito em apreço, pode-se dizer que não se restringe a apenas um órgão ou entidade pública em específico. Pelo contrário, a repactuação deve ser aplicada a qualquer contrato administrativo, seja qual for a pessoa jurídica de direito público que o estiver gerindo. Todavia, não se pode negar que a sua regulação em âmbito municipal, estadual e distrital é muito precária, praticamente inexistindo normas a respeito, já que é um direito novo e que ainda está em fase de discussão no tocante aos seus moldes existenciais.
Já no que diz respeito ao sujeito ativo, faz jus ao direito em apreço todo o particular que tiver os gastos destinados àquele contrato aumentados. Em existindo o fundamento para requerer a adequação das obrigações e atendidos os requisitos normativos, o particular poderá pleitear a repactuação do pacto firmado, não sendo dado à Administração Pública causar embaraços injustificados a sua concessão. Assim, uma vez cumpridos os requisitos, o particular tem direito à repactuação com o objetivo de preservar o equilíbrio econômico-financeiro do ajuste, como conclui Gilberto Bernardino de Oliveira Filho (2007, p. 135).
Deve-se ressaltar, contudo, que a Administração Pública também pode ser sujeito ativo desse direito, quando há amortização dos gastos pelo particular, diminuindo seus custos durante a execução contratual (OLIVEIRA FILHO, 2007, p. 135). Nesse caso, os papéis se invertem e o Estado passa a ser sujeito ativo, sendo o particular o sujeito passivo da relação de renegociação.
Por fim, os pressupostos de validade da realização da repactuação são aqueles de cunho procedimental e meritório (requisitos normativos), que visam viabilizar a análise e a concretização do direito do particular. São exemplos disso, a apresentação de propostas de preços com a correta demonstração da variação de custos, a observância do interregno mínimo de doze meses, a existência de disponibilidade orçamentária pela entidade pública e a adequação aos valores praticados pelo mercado, requisitos estes previstos no Decreto 2.271, de 1997, e na Instrução Normativa MPOG nº 02, de 2008.
Diante dessa perspectiva, é possível buscar um consenso entre os pontos apresentados e trazer uma mediação entre as características encontradas, chegando ao conceito de que a repactuação é o direito a que faz jus o particular contratado em face do Poder Público contratante (ou vice-versa, a depender da situação), diante de um contrato administrativo, quando há aumento ou diminuição ordinária de custos utilizados para a execução contratual, fato possível de ser previsto pelos contratantes, desde que atendidos os requisitos de cunho procedimental e relativos ao mérito do pleito.
Saliente-se que o presente trabalho não tem por finalidade a exaustão de uma definição estanque e indiscutível, mas sim a conjugação de elementos estruturais comuns do instituto em estudo, buscando elucidar de forma objetiva o direito em questão. Ademais, a conceituação de um direito é variável e inconstante, principalmente quando ele se caracteriza como inovador, podendo sofrer alterações adaptáveis ao ponto de vista adotado.
A partir dessas considerações, visto que a repactuação detém a finalidade de compensar o aumento de gastos decorrente da inflação econômica suportada pelo contratado, faz-se necessário esclarecer se esse instituto se enquadra como direito constitucional, fundamentado no princípio do equilíbrio econômico-financeiro esculpido no art. 37, XXI, da Constituição Federal de 1988 ou se este direito se encontra fora do âmbito normativo de proteção constitucional, definindo, posteriormente, as conseqüências do entendimento a que se chegar.
2.3. A repactuação e o reequilíbrio econômico-financeiro: distinção ou relação?
Um dos grandes temas que se mostra confuso ainda sobre a matéria da repactuação do contrato administrativo é sobre a sua inclusão como instrumento de reequilíbrio econômico-financeiro da avença. Seja na doutrina, seja na jurisprudência dos tribunais ou, até mesmo, no próprio âmbito do Poder Executivo, encontram-se divergências de entendimentos. A razão disso são os diversos desdobramentos que a conclusão disso pode levar.
No Tribunal de Contas da União, por exemplo, decidiu-se expressamente, através do Acórdão nº 1563/2004 – Plenário, que os incrementos de custos com mão-de-obra (os quais são geradores do direito à repactuação) “não se constituem em fundamento para alegação de desequilíbrio econômico-financeiro”[21]. Por outro lado, em 2006, através do Acórdão 361 – Plenário, afirmou-se que “o desequilíbrio econômico poderá ensejar futuramente a revisão ou repactuação contratual”.
No Poder Judiciário, por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que o aumento dos custos ordinários não permite a alegação de desequilíbrio econômico-financeiro (RESPs 134797/DF, 411101/PR e 382260/RS). Todavia, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região já chegou a considerar o aumento de custos decorrente da mão-de-obra causa geradora da ruptura da equação financeira, na Apelação Cível nº 406602/RJ.
Já a doutrina majoritária alude geralmente à repactuação como medida de assegurar a proporção de encargos, a exemplo de Gilberto Bernadino de Oliveira (2007, p. 132), Karine Lilian de Sousa Costa Machado (2008, p. 244) e Fernando Vernalha Guimarães (2009, p. 332). Os demais juristas que não se propõem a analisar a questão mais a fundo, adstringindo-se a explicitar os requisitos para a obtenção do direito.
Em que pese essas dissonâncias, como visto, a equação econômico-financeira equivale à proporcionalidade entre o preço apresentado na proposta inicial e o encargo atribuído ao particular contratado. Por outro lado, o reequilíbrio econômico-financeiro é justamente o instrumento utilizado para voltar ao estado inicial, mantendo-se a execução do ajuste sem prejuízo para qualquer das partes envolvidas. Nesse sentido, o desfazimento dessa relação de proporcionalidade enseja uma nova análise das cláusulas financeiras do contrato administrativo e, nesse ponto, é que as nomenclaturas variam (revisão, recomposição, reequilíbrio, etc.).
A necessidade de manutenção do equilíbrio de encargos é um direito constitucional, decorrente do disposto no art. 37, XXI, da Carta Magna e também é considerado como princípio. Não há dúvidas de que esse direito insculpido no texto máximo do ordenamento jurídico pátrio advém de uma consolidação da cláusula rebus sic stantibus. Destarte, é a mudança no estado das coisas que justifica a adequação contratual, como bem explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 639-640).
A repactuação de preços do contrato administrativo também decorre da alteração do estado das coisas. O contratado faz jus à alteração das cláusulas financeiras da avença pelo fato de ter havido aumento dos seus custos. O que a diferencia dos demais é que a sua hipótese de incidência corresponde a um fato que, atualmente, é previsível: a inflação. É esse fenômeno que altera o preço dos insumos e da mão-de-obra, acrescendo os gastos que o contratado tem que despender na execução contratual.
Registre-se que, inicialmente, o Tribunal de Contas da União, ainda em 1995, na Decisão 457/1995 – Plenário, entendia ser possível a alegação de desequilíbrio contratual para hipóteses de aumento inflacionário. O relator da referida decisão compreendeu que, muito embora a inflação seja um fato previsível, os seus índices não o são, de sorte que esse fato poderia ser entendido como conseqüências incalculáveis, estando, portanto, dentro da previsão contida no art. 65, II, d, da Lei 8.666, de 1993.
Ocorre que, durante o período de estabilização financeira do país, a jurisprudência e uma parte da doutrina passou a entender que a inflação não poderia ensejar o desequilíbrio contratual, já que esse fato seria previsível, estando incluído, portanto, dentro da álea ordinária, a ser suportada pelo contratado. Assim, os particulares contratados pela Administração Pública deveriam incluir, quando da elaboração de sua proposta, a possível variação de custos decorrente da inflação, mesmo que não acarretasse a realidade do aumento de gastos.
Com essa linha de argumentação, alguns juristas começaram a defender a repactuação do contrato administrativo como um direito infraconstitucional, fora do âmbito de proteção do princípio do equilíbrio econômico-financeiro[22], decorrente de um benefício que o Poder Público poderia conceder, desde que previsto nos termos do contrato e do instrumento convocatório do certame licitatório. Assim, para requerer esse direito, não se poderia alegar o desequilíbrio econômico-financeiro[23], mas sim deveria ser verificada a existência de previsão nos instrumentos de vinculação para obter a compensação de encargos.
A razão dessa mudança de entendimento foi que o aumento de gastos decorrente da álea ordinária deveria estar incluído na proposta, pelo menos dentro de uma variação plausível e previsível. Dessa forma, em caso de não estar prevista e haver o desequilíbrio, a culpa seria do licitante-contratado, o qual deveria suportar esse ônus. Com isso, a manutenção da proposta estaria garantida e a desproporção entre o encargo e a contraprestação seria culpa do contratado, que não poderia gerar direito ao reequilíbrio e, da mesma maneira, não infringiria a Carta Maior.
Alegou-se também, para tanto, a falta de praticidade e efetividade em se adotar a possibilidade de inclusão dos gastos ordinários do contratante no pacto administrativo. O Parecer emitido pelo Ministério Público Junto ao TCU, constante do teor da Decisão 457/1995 – Plenário daquela corte de contas, explica bem o fundamento aludido:
“De fato, admitir a aplicação da teoria da imprevisão nos contratos administrativos fora da via estreita definida pelo estatuto das Licitações e Contratos Administrativos, vale dizer, aceitar a recomposição de preços nos contratos a todo tempo e modo, na hipótese de o contratante apenas demonstrar alterações na relação econômico-financeira, seria negar qualquer sentido prático ao instituto da licitação e premiar o licitante que, por má-fé ou por inépcia empresarial, apresentou proposta que, com o tempo, se revelou antieconômica. A licitação, na hipótese em questão, poderia conduzir a Administração à escolha de propostas apenas aparentemente mais econômicas. As empresas que oferecessem propostas adequadas, escoimadas em previsões bem feitas e com margem de lucro razoável, poderiam ser derrotadas por propostas mal calculadas, que manifestariam seus malefícios somente meses mais tarde”. (TCU, 1995).
Ademais, já que é previsível o fato da inflação, afirmou-se que estaria, portanto, sem a proteção da teoria de imprevisão, de vez que não poderia ser compreendido sob o prisma da equação econômico-financeira do contrato administrativo, como defende o Parecer nº AGU/JTB 01/2008, aprovado pelo Advogado-Geral da União (AGU, 2008, p. 5).
Em que pese tais considerações, é fácil perceber que esse posicionamento deixa de levar em consideração outros fatores, restringindo-se a alegar a previsibilidade do ato como forma de excluí-lo das hipóteses de reequilíbrio econômico-financeiro e conseqüentemente do direito constitucional que é. A questão de a inflação ser previsível não a exclui do direito constitucional à proporcionalidade entre encargo e contraprestação. O reajustamento de preços, aí incluída a repactuação, é uma maneira de se garantir a manutenção de tal equação, como afirma Diógenes Gasparini (1995, p. 391-392).
O reequilíbrio econômico-financeiro pode ser expresso por diversos instrumentos e, nesse ponto, deve-se destacar que a Constituição Federal 1988, em seu art. 37, XXI, não faz qualquer diferenciação em relação ao fato gerador da ruptura da equação financeira decorrer da álea ordinária ou extraordinária, deixando para a legislação infraconstitucional apenas o regramento regulatório. Assim, não cabe ao legislador ou mesmo ao próprio intérprete do direito restringir um direito constitucional ao ponto de extinguir situações de seu âmbito de proteção sob qualquer alegação. O que pode haver, isso sim, é o estabelecimento de requisitos diferentes para hipóteses distintas, já que o dispositivo em apreço concedeu ao legislador a competência para regulá-lo com a expressão “nos termos da lei”.
O reajustamento de preços é meio para restabelecer e manter a equação financeira do pacto administrativo, mas que, em virtude de ser possível a previsão da inflação, pelo menos em uma margem razoável, sofre maiores limitações. Dessa forma, a proposta apresentada pelo licitante deve conter a perspectiva de inflação dentro dos índices normais, de forma que a superação do percentual possível de ser previsto deve ser considerada como fato extraordinário e, nessa hipótese, o instrumento de restabelecer a equação será através da revisão de preços, e não do reajustamento[24].
Entretanto, toda proposta apresentada é elaborada com base em um período de validade e a superação desse período enseja a necessidade de se reavaliar o efetivo aumento de custos para a continuidade na execução do ajuste, sob pena de não serem mantidas as condições efetivas da proposta. Dessa maneira, o reajustamento do contrato administrativo é uma forma de manter o equilíbrio econômico-financeiro contratual, mas que, em virtude de suas características próprias, sofre limitações diversas da revisão de preços.
A manutenção do contrato administrativo, sem a renegociação das cláusulas econômico-financeiras causa desequilíbrio contratual infringe a Constituição Federal de 1988. O que difere os fatos previsíveis dos imprevisíveis é a forma de se compensar o aumento de gastos nos contratos administrativos e os requisitos a que estão submetidos, não se devendo, porém, excluí-los do âmbito de proteção da equação econômico-financeira contratual. Como afirma Hely Lopes Meirelles (2008, p. 218), ao conceituar o reajustamento de preços, é dever de a Administração Pública garantir a relação de encargo/remuneração, sendo o reajustamento (aqui incluída a repactuação) um instrumento para assegurar o equilibro contratual.
Portanto, a repactuação deve ser considerada como direito de cunho constitucional, protegido pelo princípio do equilíbrio econômico-financeiro, não podendo o Estado eliminá-lo. Entretanto, não se confunde com a revisão de preços, que é fundada na imprevisibilidade do ato modificador das circunstâncias, pois se submetem a requisitos e pressupostos diferenciados. Assim, como afirma Fernando Vernalha Guimarães (2009, p. 333), não é “faculdade da Administração, mas um direito do contratado – que tem, como contrapartida, um dever jurídico imposto à Administração”.
2.4. O vazio regulatório e as limitações ao direito de repactuar.
A repactuação do contrato administrativo, como instituto recentemente compreendido que é, possui deficiência regulatória, carecendo de normas que o detalhem[25]. No mesmo sentido, o reajuste de preços, mesmo sendo um direito mais antigo do que a repactuação, também não conta com grande contexto normativo, de forma que, até mesmo a tentativa de aplicação análoga de dispositivos, não se revela satisfatória.
Para se ter uma noção, não há nenhuma lei que se refira expressamente ao termo “repactuação” no sentido consolidado pela doutrina e jurisprudência pátria. Quando se utiliza essa palavra, é para indicar um novo contrato, uma revisão de cláusulas, ou, até mesmo, uma confusão com o instituto da revisão de preços. O reajuste, por outro lado, encontra previsão expressa em leis esparsas e no art. 40, XI, da Lei 8.666, de 1993.
Já o reajustamento de preços (aqui entendido como o gênero que compreende as espécies repactuação e reajuste de preços) também encontra previsão na Lei 8.666, de 1993, mais especificadamente no art. 55, III. Mesmo este gênero, mencionado pela legislação geral de licitações e contratos administrativos, não possui regramento detalhado, de forma que o vazio normativo perpassa todos os institutos mencionados.
A questão que se põe, a partir disto, é a seguinte: a regulação da repactuação poderia se estabelecer exclusivamente por regulamentos do Poder Executivo? Ressalte-se que, para responder a essas indagações, é necessária a utilização de um raciocínio jurídico sistemático, já que não há enfrentamento expresso sobre o problema pela doutrina e jurisprudência.
É necessário destacar, inicialmente que, em face do princípio da legalidade, a repactuação, tal como é compreendida atualmente, não esbarra em qualquer óbice. O equilíbrio econômico-financeiro, previsto na Constituição Federal (art. 37, XXI), que é o ápice do ordenamento jurídico brasileiro, dá fundamento à criação de diversos instrumentos para a sua concretização, principalmente pela previsão de que tal direito será exercido nos termos da lei. Dentre esses instrumentos, criou-se o reajustamento de preços, que está expressamente previsto na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos.
Assim, o reajustamento de preços é gênero, no qual se incluem o reajuste e a repactuação, de forma que encontram guarida na legislação infraconstitucional, atendendo, portanto, ao princípio da legalidade. Nesse sentido, além de poder vir a serem editadas outras leis, a previsão legislativa citada permite que o Poder Executivo regule esses institutos, com base no art. 84, IV[26], da Constituição Federal de 1988.
Essa regulação, por outro lado, não permite inovação na ordem jurídica, haja vista a dependência a que se submete em relação à lei. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (2008, p. 917), aludindo à distinção entre lei e regulamento, afirmam que ela “não se limita à origem ou à supremacia daquela sobre este. A distinção substancial reside no fato de que a lei pode inovar originariamente no ordenamento jurídico”.
Assim, o regulamento tem por finalidade dar execução à lei editada pelo Poder Legislativo. Para tanto, não pode haver inovação, criação, extensão ou supressão do âmbito de incidência das previsões normativas. O Executivo, assim, deve dispor relativamente à forma de execução da determinação já contida na lei. Esse procedimento tem por finalidade preservar princípios constitucionais, como o da legalidade (CF/88, art. 5º, II) e o da separação dos poderes (CF/88, art. 2º). Nesse sentido, elucida Alexandre de Moraes:
“O exercício do poder regulamentar do executivo situa-se dentro da principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2º; 60, §4º, III), pois, salvo em situações de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, nem tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa”. (MORAES, 2004, p. 442).
Assim, o regulamento permitido pelo direito brasileiro é o executivo, com a finalidade de dar cumprimento às leis. A única exceção, em que há ainda resquício do regulamento autônomo no ordenamento jurídico pátrio, é o previsto no art. 84, VI[27], que se limita a situações restritas e excepcionais, de forma que não se configura como regra geral e é inaplicável a situação em análise. Registre-se, ademais, que não se pode também utilizar da legislação para outorgar, por via transversa, poderes ao Poder Executivo para legislar através de regulamento, exceto quando utilizada a lei delegada, expressamente prevista pela Carta Magna (CF/88, art. 59, IV[28]). Destarte, não é dado ao legislador passar uma espécie de “cheque em branco” para o Poder Executivo utilizar-se de instrumento não autorizado pelo direito pátrio, conforme alude Celso Antônio Bandeira de Mello (MELLO, 2008, p. 351-352).
Inobstante a possibilidade de o Poder Executivo regulamentar a legislação para sua fiel execução, a restrição de não poder inovar no ordenamento jurídico juntamente com a ausência de legislação pertinente mantém a dificuldade na edição de normas a respeito da repactuação. A Administração Pública, portanto, vive um dilema entre o princípio da legalidade e o vazio regulatório precitado, em virtude da inércia do legislativo. No entanto, não é dado ao Poder Público extrapolar os limites normativos que lhe são próprios, regulando direitos através de vias inadequadas.
Todavia, utilizando-se dos regulamentos, começaram-se a editar atos normativos infra-legais, com a finalidade de estabelecer procedimentos para possibilitar a concretização da repactuação. A inexistência de lei a respeito do tema ensejou a necessidade de se utilizar de outros instrumentos para regular o instituto precitado. Exemplos recentes disso é o Decreto Federal nº 2.271[29], de 1997, e a Instrução Normativa nº 02[30], de 2008, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A definição do limite do poder regulatório estatal, sem interferência do legislativo, não é uma tarefa fácil. Porém, é certo que a necessidade prática de regulamentação não justifica o excesso de poderes para limitar direitos certos dos administrados. Como prevê a própria Carta Magna, os atos normativos criados pelo Poder Público devem unicamente regulamentar a lei para possibilitar a sua fiel execução, não sendo possível restringir, limitar ou eliminar direitos através desses instrumentos, muito menos quando essas limitações são incoerentes. Como afirma Márcio Cammarosano (2007, p. 338), “se há um preceito constitucional pertinente à matéria [...] nós não podemos imaginar que o legislador ordinário, ou mesmo o administrador, produzindo atos normativos infralegais, possa amesquinhar os princípios constitucionais pertinentes à matéria”.
Feitas estas considerações, cabe, agora, analisar as situações normativas da repactuação no cenário jurídico brasileiro, observando, a partir dos atos que já foram editados, das lacunas provenientes, e dos excessos de poder, as restrições e exigências a esse direito, delimitando a fronteira da legalidade e da constitucionalidade. Para tanto, elencar-se-á as limitações principais que vem sendo exigidas para se possibilitar a repactuação do contrato administrativo.
2.4.1. Previsão no instrumento convocatório e contratual.
Como uma das principais condições para a concessão do direito à repactuação, vem sendo exigida a previsão desse direito tanto no instrumento convocatório, quanto no próprio contrato administrativo. Assim, para que o contratado obtenha o direito à repactuação da avença, exige-se, como condição indissociável, a previsão nos instrumentos vinculativos da relação jurídica.
Isso porque, o reajustamento de preços (gênero do qual a repactuação é espécie) vem sendo compreendida como um direito convencional, que decorre da vontade da Administração Pública e não da imposição da legislação. Hely Lopes Meirelles, adotando tal posição, explica:
“[...] Diante dessa realidade nacional, o legislador pátrio institucionalizou o reajuste de preços nos contratos administrativos, facultando às partes adotá-lo ou não, segundo as conveniências da Administração, em cada contrato que se firmar. Não se trata, portanto, de uma imposição legal para todo contrato administrativo, mas, sim, de uma faculdade concedida à Administração de incluir a cláusula de reajustamento de preços em seus ajustes, quando julgar necessário para evitar o desequilíbrio financeiro no contrato (Lei 8.666, de 1993, art. 40, XI, c/c o art. 55, III)”. (MEIRELLES, 2006, p. 210-211).
Esse posicionamento, entretanto, deixa nas mãos do administrador público o julgamento quanto à necessidade de manutenção ou não do direito do contratado ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, o que não se coaduna, obviamente, com o sistema proposto pela Carta Magna de 1988[31]. Entretanto, o Poder Executivo vem exigindo expressamente essa previsão como condição do direito à repactuação do contrato administrativo. Nesse sentido, é o que prevê, por exemplo, expressamente, o art. 5º, caput, do Decreto nº 2.271, de 1997, e a Orientação Normativa NAJ-MG nº 23, de 17 de março de 2009[32]. No mesmo sentido é também a decisão expressa do TCU, através do Acórdão nº 2.498, de 2009, proferido pela 1ª Câmara. Há também juristas que sustentam a necessidade de atendimento desse requisito, como, por exemplo, Arthur Cerqueira Valério (2007, p. 38); Márcia Walquiria Batista dos Santos (2009, p. 328); e Gilberto Bernadino de Oliveira Filho (2007, p. 333).
Contudo, qualquer exigência nesse sentido não pode ser aceita. Primeiramente, porque não há qualquer previsão em lei condicionando a repactuação à existência de previsão contratual e no instrumento convocatório. Sendo assim, não pode o Poder Executivo utilizar de regulamentos para inovar no ordenamento jurídico pátrio, restringindo um direito e, ainda mais, um princípio constitucional expresso, principalmente com limitações inconsistentes e sem fundamento. Não se pode deixar ao mero arbítrio do administrador a concessão de um direito certo dos contratados.
Em segundo contexto, a Lei 8.666, de 1993, tanto no art. 40, XI, como no art. 55, III, determina claramente que os instrumentos convocatórios e os contratos administrativos a serem firmados devem conter expressamente cláusulas relativas ao reajustamento de preços (seja de reajuste, seja de repactuação). Não se trata de uma possibilidade dada ao administrador (não se utiliza a expressão “podem”, mas sim “devem”), é um direito garantido e de um dever, o qual deverá ser observado pela Administração Pública, não se tratando, portanto, de mera discricionariedade[33]. É, portanto, imposição de lei, sendo obrigação do Estado concedê-la, como afirma Toshio Mukai (1995, p. 66), e se configura, nos termos de Fernando Vernalha Guimarães (2009, p. 332), como um dever jurídico.
Assim, cai por terra a alegação de que não há imposição legal de previsão do reajustamento de preços e, assim, da repactuação. A Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos é expressa quanto à necessidade de existência de cláusulas a seu respeito, não podendo esse direito ser eliminado por esquecimento, liberalidade ou desvio de finalidade do agente público responsável. Muito pelo contrário, tal procedimento iria de encontro ao princípio da boa-fé contratual e infringiria claramente dispositivos legais e constitucionais.
Não se pode negar, porém, que o Poder Executivo e até mesmo o próprio Tribunal de Contas da União têm exigido a previsão no instrumento convocatório e no contrato administrativo, sob pena de não ser realizada a repactuação. Não há, assim, nenhuma decisão pacífica do Poder Judiciário pátrio a respeito da questão. Todavia, como leciona Renata Faria Silva Lima (2007, p. 160), “a previsão no edital apenas reforçaria o direito do particular e o dever de a Administração recompor ou adequar o valor nominal da prestação, em função da inflação incidente.”.
O direito à repactuação do contrato administrativo decorre de lei e, ademais, da própria Constituição Federal de 1988, ápice do ordenamento jurídico. Não cabe ao Poder Executivo utilizar de vias inadequadas para restringir direito certo do contratado, principalmente inovando o direito, sem o crivo do Poder Legislativo, em desprestígio ao princípio da separação dos poderes, estabelecido no art. 2º da Carta Suprema[34]. Além disso, destaque-se que, mesmo se essa exigência estivesse prevista expressamente em lei, tal limitação não poderia prevalecer, já que desprovida de fundamentação consistente para restringir um direito constitucional.
Muito embora seja possível o legislador dispor acerca dos instrumentos para concretização do equilíbrio econômico-financeiro contratual, criando, inclusive, requisitos diferentes para cada um, não é dado limitar o direito com disposições inconsistentes que objetivam exclusivamente eliminar um direito constitucional expresso. A necessidade de previsão no instrumento convocatório e no contrato é uma condição que não se revela coerente e não pode justificar o indeferimento de um pedido de repactuação, que visa concretizar o direito à manutenção da equação econômico-financeira contratual.
Essa limitação, por outro lado, demonstra a intenção que vem tendo a Administração Pública em restringir de qualquer forma e cada vez mais o direito dos particulares à compensação de gastos ordinários supervenientes. Não há qualquer sentido em entregar às mãos dos administradores públicos o destino de direitos dos contratados, para que eles decidam sobre a conveniência de se incluir ou não a previsão da repactuação no instrumento convocatório e no edital. Seria um descaso com os cidadãos, sendo certo que tal entendimento iria de encontro com a sistemática de um Estado Democrático de Direito. Limitações como essa devem ser evitadas e eliminadas, seja pela ausência de previsão legal, seja pela inconsistência de sua fundamentação.
2.4.2. Contratos aplicáveis.
Quando se fala em pedido de repactuação do contrato administrativo, a primeira idéia que se levanta é a de que o contrato sobre o qual incidirá tem por objeto a prestação de serviços de natureza contínua. A razão disso é que se pensa que o aumento dos custos dos insumos só poderia ocorrer com o passar do tempo e, por isso, seria indispensável que o objeto contratual firmado fosse a prestação de serviços contínuos, que não se exauri em um instante único. Há, com isso, que se compreender a abrangência do termo serviço, bem como discutir sobre a possibilidade de existência de outras hipóteses que se enquadrem como passíveis de ser analisadas sob o prisma da repactuação contratual.
Ao se observar a literalidade da Lei nº 8.666, de 1993, percebe-se que os seus dispositivos conceituam o termo serviço como sendo distinto da expressão obra. Em seu art. 6º, o qual elenca definições para os termos que a lei utiliza, trata da obra no inciso I e do serviço no inciso II. No primeiro, entende-se a obra como sendo “toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta”. Já o segundo dispositivo, prevê o serviço como sendo “toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais”.
Com efeito, as previsões citadas aparentam definir claramente a questão, aludindo a situações específicas para distingui-los. Acrescenta Hely Lopes Meirelles (2006, p. 57-58), após conceituar o termo serviço, apontando a generalidade que ele pode ensejar, que a diferença essencial entre os dois é a predominância da atividade sobre o material empregado. Contudo, a questão não é tão simples quanto se vê.
Existem situações em que poderão ocorrer algumas dificuldades para se diferenciar, situando-se em uma zona obscura, como acentua José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 201). O citado autor afirma também que, em uma análise crítica, a obra não deixa de ser uma espécie de serviço com resultado preestabelecido.
Para fins de enquadramento no direito à repactuação, entretanto, a obra deve ser compreendida como espécie de serviço, podendo gerar o direito à repactuação. Muito embora não se aluda expressamente à palavra obra nos textos normativos que regulam o direito à renegociação contratual, a compensação do aumento de custos em contratos de obras vem sendo aceita, uma vez que entendimento contrário consubstanciaria, mais uma vez, restrição inconsistente e desprovida de substrato legal para eliminar direito constitucional certo.
Não há dúvidas de que, durante o deslinde da execução contratual, tenha o pacto por objeto prestação de serviços ou obra (na acepção da lei), pode haver aumento dos custos com insumos de forma a desfazer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Para obter o direito à repactuação, basta comprovar o aumento dos custos, através de planilhas, requerendo ao órgão administrativo o repasse do aumento de gastos ao valor contratual, não podendo o Poder Público se eximir de efetuá-lo. Registre-se que o Tribunal de Contas da União possui acórdãos aceitando a realização da repactuação de contratos administrativos nessas situações[35].
Assim, a tentativa de restringir o direito à repactuação fundamentando-se no fato de o contrato não ter por objeto a prestação de serviço e sim uma obra não encontra consistência e, ademais, não é plausível para se limitar um direito assegurado constitucionalmente. Pelo contrário, uma exigência nesse sentido não encontra proteção no sistema jurídico, não havendo qualquer lei aludindo a tal requisito, de forma que qualquer indeferimento com esse fundamento não deve ser aceito[36].
Contudo, é necessário destacar que a Instrução Normativa nº 02, de 2008, editada pelo Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, alterada pela Instrução Normativa 03, de 2009, do mesmo órgão, em seu art. 37[37], menciona expressamente que a repactuação só deve ser utilizada em contratos que tenham por objeto a prestação de serviços continuados com utilização exclusiva de mão-de-obra. A partir disso, percebe-se que a previsão no ato normativo citado exclui os contratos administrativos que tenham por finalidade a destinação de mão-de-obra e de materiais, como, por exemplo, as obras públicas. Não há qualquer razão para isso. Ademais, é aceita pelo Poder Executivo a repactuação não apenas quando há aumento de custos da mão-de-obra (normalmente por ocorrência de convenções coletivas), mas também quando há aumento dos insumos, sejam eles decorrentes da utilização do serviço ou do material[38].
Entendimento oposto ensejaria desequilíbrio econômico-financeiro contratual em relação aos gastos que o contratante teria com os objetos fornecidos à Administração Pública, em face da defasagem da proposta apresentada pelo transcurso do tempo. Tome-se, por exemplo, a situação hipotética de uma empresa que realizasse uma obra para um ente público e que, para tanto, utilizasse, obviamente, mão-de-obra e materiais fornecidos por ela mesma. Leve-se em conta, ademais, que, em virtude da duração da obra, os bens a serem incorporados nela não fossem estocados, mas sim comprados paulatinamente.
Por fim, pense-se que, após um ano do início da obra, os valores dos materiais não fossem mais aqueles que estavam sendo levados em conta na proposta inicial. Certamente, nessa situação, o contratante sofreria considerável prejuízo para manter a execução contratual, o que poderia afetar a qualidade da obra e, destarte, o interesse público.
Dessa forma, verifica-se que restringir o direito à repactuação, aludindo única e exclusivamente a contratos de prestação de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão-de-obra, é, mais uma vez, tentar burlar o sistema e diminuir o campo de proteção da equação econômico-financeira garantida pela Constituição Federal de 1988. A Lei e a Carta Magna em nenhum momento fazem a distinção em relação ao tipo de objeto, mas, por outro lado, garantem ao contratado expressamente o direito à manutenção do equilíbrio do contrato, que não pode ser desvirtuado por condições inconsistentes e desprovidas de fundamentos legais.
Verificadas as possibilidades de repactuação em contratos de obra pública e de prestação de serviços, cabe agora analisá-las em relação aos contratos de fornecimento e de serviços não contínuos. Essas duas espécies de contratos são caracterizadas, obviamente, pela instantaneidade do cumprimento contratual, isto é, por exaurir a avença com a prática de um único ato, que, normalmente, é a entrega.
O contrato de fornecimento, na Lei 8.666, de 1993, não é tratado com essa nomenclatura. A legislação citada faz menção ao termo compra para aludir essa modalidade de avença e, como tal, a conceitua como sendo “toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente” (Lei 8.666, de 1993, art. 6, II). Por outro lado, o contrato de serviços não continuados deve ter por idéia a mesma dos continuados, modificando-se apenas o fato de se exaurir em um ato. Aqui, o serviço é prestado em momento único, não se alongando no tempo.
Ao se analisar essas definições e se pensar em um processo administrativo licitatório normal, imagina-se, à primeira vista, que não seria possível a repactuação em um contrato público contendo essas espécies de prestações. A regra realmente é esta, mas existem exceções. A questão não pode ser resolvida a partir da simples consideração quanto à instantaneidade da concretização da avença. Isso porque outros fatores podem levar à necessidade de se repactuar os contratos administrativos com tais objetos. Nesse sentido afirma Fernando Vernalha Guimarães (2009, p. 333-334), ao analisar a situação para o reajuste, mas com lição plenamente aplicável também aos casos de repactuação, que, em havendo lapso temporal entre a apresentação da proposta e o momento do pagamento da parcela correspondente, “surge a obrigatoriedade de proceder ao reajuste, por força da letra explícita do in. XI do art. 40 da Lei nº 8.666/93. Há direito do contratado em obtê-lo”.
A hipótese que pode ser apontada para tais contratos é a em que a Administração Pública demora a firmar o contrato administrativo, defasando os termos da proposta inicialmente apresentada. Digamos, por exemplo, que uma proposta ofertada por um licitante contenha validade de um ano e que esta seja a vencedora no certame. Contudo, além do tempo para finalizar o processo licitatório, suponha que o ente contratante tenha tido problemas orçamentários e que demore um ano e seis meses para convocar o vencedor a firmar a avença. Imagine-se, ademais, que, em tal período, os insumos para a produção do produto tenham acrescidos em virtude da inflação. Em tal caso, não é dado ao Poder Público indeferir o pedido de repactuação com base na alegação de que o contrato não tem por objeto serviços continuados, sob pena de se infringir o direito à equação econômico-financeira.
O caso sugerido demonstra que pode haver situações em que contratos de fornecimento ou de serviços não continuados ensejem a necessidade de se repactuar a avença, mesmo antes de ter sido efetivamente realizada e assinada, principalmente quando se trata de bens perecíveis. Além disso, o contratado não tem obrigação de manter estoque de bens. Assim, vê-se que a repactuação tem vez até mesmo antes da firmação do contrato administrativo. Negar o direito do licitante em situações como tais seria obrigar o vencedor a firmar um pacto desvantajoso e desequilibrado, não sendo mantidas as condições efetivas da proposta, como garante a Constituição Federal de 1988.
Portanto, o âmbito de proteção da equação econômico-financeira dos contratos administrativos não pode ser restringido em razão do objeto da avença sem uma razão plausível como nos casos citados. Deve, pois, haver uma ponderação razoável e uma análise caso a caso para se identificar as modificações e o aumento efetivo dos custos a serem repassados ao pacto, de forma a se assegurar efetivamente o equilíbrio econômico-financeiro contratual.
2.4.3. Interregno mínimo de um ano.
Mais uma exigência que vem sendo feita para possibilitar o deferimento do direito à repactuação é a espera do interregno mínimo de um ano, previsto tanto na legislação[39], como nos atos normativos infralegais[40]. Esse lapso temporal é justificado com base na validade da proposta, que deve conter a previsão dos gastos ordinários durante um período, com base na situação fática do momento de sua apresentação. Assim, exige-se, como regra, que, para se realizar a repactuação do contrato, já tenha transcorrido o período de um ano a contar da data da apresentação da proposta, do orçamento a que a proposta se referir ou da realização da última repactuação. A previsão possui razoabilidade.
As propostas apresentadas nos certames licitatórios tomam por base, para fixação do valor oferecido, o prazo de validade do contrato, o qual, em regra, é de um ano. Assim, entende-se que a proposta deve conter a previsão de todos os gastos ordinários para a execução contratual durante esse período, mesmo que não seja possível prever exatamente o provável aumento de custos, devendo, portanto, o licitante incluir o maior índice de previsão, mesmo isso sendo mais oneroso para a Administração Pública e menos eficiente para o serviço.
Ressalte-se que a contagem do prazo de um ano varia. A carência de um ano pode ser contada a partir da data limite para apresentação da proposta, da data do orçamento a que a proposta se referir ou da última repactuação, consoante prevê o art. 38[41] da Instrução Normativa nº 02, de 2008, do MPOG, alterado pela Instrução Normativa nº 03, de 2009, do mesmo órgão referido.
A referência à data limite para apresentação da proposta diz respeito ao aumento de gastos com bens utilizados para a execução do serviço. Já a previsão de contagem a partir da data do orçamento a que a proposta se referir é em relação ao acréscimo de gastos com a própria mão-de-obra (ocorrência, normalmente, de convenções coletivas). Por fim, a determinação de contagem a partir da última repactuação justifica-se pelo fato de que, nesse momento, se renova a proposta com base em outra situação fática para vigorar por um novo período de um ano.
A repactuação pode acontecer antes de um ano da apresentação da proposta em relação aos gastos decorrentes exclusivamente da mão-de-obra, como aplicação de novas convenções coletivas ou resolução de dissídio coletivo de trabalho judicialmente. A razão disso é que a data base para realização de convenções é anual e não há como se antever o aumento de custo que decorrerá.
Em face disso, não se pode esperar pela completude da anualidade prevista, assim como não se justifica repactuar um contrato antes do aumento de custos. Repactuar, nessa situação, traria benefício sem causa ao particular e prejuízo à Administração Pública. Não é cabível também, portanto, a determinação de que o prazo de um ano seja contado exclusivamente a partir da vigência do contrato, como já o fez o TCU, no já citado Acórdão nº 2.498[42], de 2009, proferido pela 1ª Câmara, uma vez que não há previsão legal nem lógica na limitação indicada.
Em relação ao aumento de custos dos insumos, o licitante deve buscar encontrar a variável da possível inflação a ocorrer durante o período de execução contratual e incluir na proposta o maior índice encontrado para não sofrer eventual prejuízo. É necessário destacar, porém, que há entendimento no sentido de ser inconstitucional e ilegal a limitação apontada. Renata Farias Silva Lima, após demonstrar seu entendimento de que a repactuação estaria incluída nas hipóteses de revisão e não de reajuste (o que não é o pensamento aqui adotado) [43], posiciona-se no sentido de ser inconstitucional a anualidade citada:
“Já no que tange ao pressuposto de observância do interregno mínimo de um ano, a contar da data prevista para apresentação da proposta ou do orçamento a que ela se referir, entendemos ser tal pressuposto inconstitucional, sendo o que a seguir demonstraremos. [...]
É que a Lei n. 8.666/93, em seu art. 55, III, permitiu que a administração previsse no contrato os critérios e a periodicidade do reajuste contratual, não estabelecendo, contudo, tal periodicidade, o que poderia se dar a cada seis meses, um ano, ou dois anos, por exemplo, contados “desde da data prevista para apresentação da proposta, ou do orçamento a que a proposta se referir (art. 40, XI, da Lei n. 8.666/93).
[...]
Considerando, então, que: a) a manutenção das condições efetivas da proposta do contratado particular, a teor do art. 37, XXI, é assegurada constitucionalmente; b) a Constituição não estabeleceu prazos mínimos de execução contratual para se assegurar o equilíbrio econômico-financeiro dos ajustes administrativos; e c) o reajuste e a revisão dos preços são institutos que visam justamente garantir o equilíbrio econômico-financeiro destes ajustes, entendemos, pois, da mesma forma que os doutrinadores acima referenciados, ser inconstitucional, em relação aos contratos administrativos, esse dispositivo de lei que diz ser nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano (art. 2º, §1º, da Lei n. 10.192/2001)”. (LIMA, 2007, p. 175, 178, 180 e 181).
Inobstante ser plausível a fundamentação da autora, no sentido de que o equilíbrio econômico-financeiro deve ser garantido a todo momento, a análise jurídico-formal sobre a questão não deve ser resolvida unicamente sob esse prisma. Do ponto de vista objetivo, não paira inconstitucionalidade sobre a anualidade prevista. Os dispositivos constitucionais devem ser regulados e destrinchados através de atos normativos inferiores, para se adequarem ao ordenamento jurídico, com a interpretação e aplicação correta. O que não cabe, porém, é se constituir limitações inconsistentes com a finalidade de excluir um direito assegurado constitucionalmente.
No caso em questão, a restrição da anualidade, no sistema atual, é razoável, já que as condições da proposta são mantidas. Esta é efetuada com base numa previsibilidade por um dado período (o período inicial de execução contratual, que é, normalmente, de um ano). Durante esse lapso temporal, não deve haver o direito de repactuação, na forma adotada pelo sistema. O contratado deve, dessa forma, incluir a previsão de variação anual da inflação dentro do custo de sua proposta, como explica Marçal Justen Filho (JUSTEN FILHO, 2000, p. 408).
Destaque-se que não se está a concordar com a forma adotada pelo sistema do ponto de vista subjetivo, ou seja, a partir da análise da posição mais eficiente. Apenas se afirma que a previsão da anualidade não infringe, tecnicamente falando, frontalmente à Constituição Federal de 1988 ou qualquer norma infralegal.
Por outro lado, a restrição da anualidade resvala em outro óbice, dessa vez de natureza normativa, em que pese a razoabilidade de sua existência. A partir de uma análise do ordenamento jurídico pátrio, observa-se que a anualidade está prevista em duas leis, quais sejam: Lei nº 9.069, de 1995, e Lei nº 10.192, de 2001. Na primeira o prazo de um ano está previsto em seu art. 28, §1º[44]. Já a segunda contém disposição a respeito no art. 2º, §1º[45]. As leis mencionadas, todavia, em nenhum momento se referem expressamente à repactuação.
A Lei nº 9.069, de 1995, alude unicamente à utilização da correção monetária dos valores contratuais, o que, como já visto, não é o caso da repactuação. A correção aludida se dá através da utilização de um índice pré-estipulado, com a finalidade de eliminar os efeitos da defasagem da moeda. Por outro lado, a repactuação da avença administrativa tem como escopo a demonstração efetiva de eventual aumento de custos ordinários decorrentes da inflação.
Já a Lei nº 10.192, de 2001, menciona correção monetária e reajuste, através também de utilização de índices pré-estabelecidos. A repactuação, assim, não se enquadra na hipótese normativa, pois não há utilização de índices e, ademais, difere dos institutos do reajuste e da correção monetária. Destarte, verifica-se que não há lei expressa e específica sobre o direito à repactuação.
Sendo assim, poder-se-ia compreender que a estipulação da anualidade, feita através de atos normativos infra-legais, configurou inovação no ordenamento jurídico, tendo, dessa forma, o Poder Executivo adentrado na competência do legislativo, com infração do princípio da separação dos poderes. Contudo, é certo na doutrina atual que as normas devem ser interpretadas sistematicamente e dentro do seu contexto, utilizando-se, para tanto, das vias integrativas, tais como a analogia (Decreto-Lei nº 4.657/42, art. 4º).
Do ponto de vista do surgimento da repactuação no direito administrativo brasileiro, percebe-se que esse direito é recente e ainda não foi bem tratado e esclarecido pela doutrina e jurisprudência pátria. Há ainda diversas questões a serem esclarecidas e integradas no ordenamento jurídico para suprir as lacunas existentes. Em face disso, o vazio regulatório da repactuação deve ser integrado a partir de instrumentos de interpretação para possibilitar a existência desse direito.
Nada mais normal, com isso, do que aplicar analogamente as normas citadas, para entender ser correta a exigência da anualidade, até porque essa limitação encontra justificativa razoável para sua existência, devendo ser aceitas as normas infra-legais ampliando o campo de abrangência para o instituto da repactuação. E é, por isso, que se entende correta a aplicação dessa condição para o deferimento desse direito, nos termos aqui analisados, conforme vem compreendendo o TCU[46], do ponto de vista jurídico formal.
Portanto, o que deve ser evitado pelo Poder Executivo e, conseqüentemente, pelo Administrador Público é a criação de limitações inconsistentes e dissonantes do ordenamento jurídico, principalmente quando não tiver competência para regular de tal forma um direito. No caso em apreço, a anualidade é plenamente cabível e deve ser aceita, já que baseada em razoabilidade e na interpretação sistemática e análoga dos dispositivos das leis mencionadas.
2.4.4. Necessidade de requerimento e preclusão lógica.
Por fim, cabe analisar a exigência de apresentação de requerimento e o óbice da preclusão lógica. O sentido de preclusão remete à idéia de perda de um direito em virtude de algum fator de culpa do beneficiário de um direito. Pode ser, por exemplo, o transcurso do lapso temporal para solicitar um benefício ou interpor um recurso. Pode, da mesma maneira, representar um desinteresse pela prática de um ato contrário à vontade de exercer seu direito. A sua ocorrência resulta na perda do poder de praticar um ato, seja porque já o fez, seja porque teve desinteresse em fazê-lo.
Fredie Didier Jr. analisa a preclusão sob o prisma do direito processual, destacando a finalidade axiológica a que serve, lição esta aplicável à apreciação em tela:
“Frise-se: a preclusão não serve somente à ordem, à segurança e à celeridade do processo. Não se resume à condição de mera mola impulsionadora do processo. A preclusão tem, igualmente, fundamentos ético-políticos, na medida em que busca preservar a boa fé e a lealdade no itinerário processual. A preclusão é técnica, pois, a serviço do direito fundamental à segurança jurídica, do direito à efetividade (como impulsionadora do processo) e da proteção à boa-fé. É importante essa observação: como técnica que é, a preclusão deve ser pensada e aplicada em função dos valores a que busca proteger”. (DIDIER JR., 2009, v. 1, p. 280).
Muito embora a preclusão esteja muito relacionada ao direito processual, ela se configura como um instituto que tem incidência quando a questão a ser discutida envolva a necessidade de o sujeito ativo de um direito requerer a sua concretização. Da mesma forma pode ocorrer com a repactuação em relação à exigência de apresentação de requerimento administrativo.
Para o exercício do direito de repactuar um contrato administrativo, vem sendo exigida a apresentação de requerimento perante o ente contratante, no processo em que esteja se desenvolvendo a execução contratual, conjuntamente com a demonstração analítica da variação dos preços[47]. Cabe ao particular, segundo essa limitação, solicitar à Administração Pública a concretização do seu direito constitucional, com a comprovação do efetivo aumento de custos. Com isso, não se vem aceitando a repactuação de ofício pelo Poder Público.
A exigência de solicitação do contratado como instrumento para a concretização do direito à repactuação não esbarra na proibição de inovação do regulamento editado pelo Poder Executivo. Como prevê a Carta Magna, o Estado pode editar atos normativos para a fiel execução da lei, estabelecendo, com isso, procedimentos e detalhes relativos ao direito criado, sem, contudo, inovar no ordenamento jurídico. Não pode, assim, criar obrigações ou impor limitações não previstas em lei. Pode, isso sim, determinar a forma de concretizar o direito estabelecido na legislação. A repactuação, diferentemente do reajuste, não é automática.
Nesse sentido, a exigência da apresentação de requerimento administrativo para possibilitar a realização da repactuação do contrato administrativo não se mostra inconstitucional. Não representa, assim, infração ao princípio da separação dos poderes ou da legalidade, pois não cria um direito ou uma limitação ao direito, mas sim um procedimento para concretizá-lo. Ademais, deve o contratado demonstrar seu interesse em obter a compensação de gastos, haja vista que, como as relações jurídicas contratuais, principalmente quanto a preços, dependem da vontade das partes, pode ser que o contratado não pretenda manter o valor estabelecido inicialmente, mesmo tendo que investir maior numerário.
De tal sorte, a apresentação de requerimento representa a manifestação de interesse do contratado na manutenção do equilíbrio econômico-financeiro através da realização da repactuação e é nesse ponto que a preclusão surge como limitação a esse direito. Segundo o entendimento que vem sendo adotado pela Administração Pública, corroborada com o TCU, a prática de ato contrário à vontade de repactuar o contrato administrativo pode ensejar a preclusão do direito ao seu deferimento. E, nesse caso, trata-se da preclusão lógica.
Os casos que ensejam a criação desse óbice à consecução da repactuação decorreram da realização de prorrogações contratuais, com fulcro nos incisos do art. 57 da Lei nº 8.666, de 1993. Nessas situações, os contratados possuíam direito à repactuação antes de firmar o aditivo contratual. Entretanto, eles prorrogavam os contratos administrativos sem, antes disso, apresentar o requerimento administrativo da repactuação. E como a maioria dos aditivos contratuais, tinha-se por pressuposto a manutenção das cláusulas e condições anteriores à prorrogação do prazo da avença, dentre as quais se inclui a cláusula relativa ao preço.
Um exemplo claro dessa situação, é o caso em que há realização de convenção coletiva de trabalho com aumento dos gastos com mão-de-obra antes da prorrogação contratual e o particular assina o aditivo sem que antes apresente o requerimento de repactuação. Diz respeito, portanto, a fatos anteriores à postergação do prazo contratual. O já citado Parecer nº AGU/JTB 01/2008, aprovado pelo Advogado-Geral da União, com fundamento em decisões do TCU, alude à questão em comento:
“Entende-se plenamente pertinente a limitação do exercício do direito de repactuação nos termos propostos.
[...]
Isto porque, todo contrato – e aqui se inclui os respectivos termos aditivos – possui um prazo de vigência especificado, não podendo ter vigência indeterminada, sendo certo que todos os efeitos dele decorrentes devem advir deste período em que se encontrava vigorando.
Findo seu prazo de duração e prorrogado o contrato, sem que o interessado argua seu direito decorrente de evento do contrato originário ou anterior, entende-se, conforme decidiu a Corte de Contas, que houve preclusão lógica do direito consubstanciada na prática do ato incompatível com outro anteriormente praticado.
A preclusão é a perda da faculdade de praticar ato em razão da prática de outro ato incompatível com aquele que se pretenda exercitar. Trata-se de fenômeno processual, que acaba por interferir no direito material da parte.
E a incidência do instituto processual no caso em tela se justifica diante do fato de que a execução do contrato compreende a concatenação de atos administrativos tendentes a um produto final”. (AGU, 2008, p. 24 e 26).
A partir dessas afirmações, vê-se que a limitação aludida não foi criada a partir de uma lei ou, sequer, de um regulamento editado pelo Poder Executivo. Teve-se por base a lógica da execução contratual e da concatenação de atos praticados no processo administrativo e, quanto a isto, entende-se que não há qualquer óbice de ilegalidade ou inconstitucionalidade. A preclusão, para existir como uma das condições ou exigências do direito à repactuação, não precisa, necessariamente, estar prevista em algum ato normativo, pois é extraída a partir da análise da vontade do contratado na manutenção ou não do preço inicialmente ofertado.
Ao realizar um aditivo de prorrogação contratual, o contratado tem interesse em manter a relação jurídica pactuada e nas condições estabelecidas naquele momento da assinatura. Se não fosse desta maneira, o particular se recusaria a manter a avença, até porque não está obrigado a continuar executando o objeto contratual após o prazo de sua vigência. Cabe a ele, portanto, requerer antes de assinar a prorrogação e, de preferência, esperar a elaboração de um aditivo único, contendo as duas adequações a serem efetivadas.
O requerimento anterior à prorrogação contratual também é uma forma de demonstração da boa-fé do ente contratado. Solicitar a repactuação antes do aumento de vigência do prazo contratual permite à Administração Pública avaliar se a manutenção do contrato administrativo será vantajoso a ela, permitindo que não mantenha serviços ineficientes e onerosos no serviço público.
Deve-se destacar, porém, que Gilberto Bernardino de Oliveira Filho (2007, p. 133) sustenta que a prorrogação não é suficiente para que ocorra a preclusão do direito alegado. Para ele, o direito à repactuação só pode ser excluído, mesmo após eventuais prorrogações, através de uma manifestação expressa do contratado, o que não se coaduna com o entendimento majoritário e adotado neste trabalho.
Dessa maneira, a necessidade de requerimento e a ocorrência da preclusão lógica são limitações coerentes e que não infringem o ordenamento jurídico, em que pese não conter disposição normativa expressa os prevendo. O particular, assim, deve ser diligente na realização e concretização do seu direito, sob pena de não poder mais levá-lo a cabo.