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A Filosofia do Direito de Kant segundo Paul Guyer a partir do oitavo capítulo da obra “Kant”

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23/08/2012 às 19:55
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CONCLUSÃO

Pode-se verificar a forma sistemática com que Guyer aborda a filosofia jurídica de Kant, o que lhe garantiu um maior embasamento para interpretar trechos obscuros no texto. De fato há de se admitir que Kant em relação à delimitação do conceito de direito é confuso quando o distingue da ética, argumentando pela sua especificidade e exterioridade. Ocorre que Guyer consegue resolver o problema sustentando uma interpretação que postula o direito como parte da razão prática e, essencialmente, pela via oposta quando considera a questão da coerção. Assim Guyer pode fundamentar a exterioridade da coerção como autorizada pela razão prática, resolvendo o problema da classificação conceitual do direito em Kant e refutando as teses que interpretam o direito como imperativo hipotético.

Dentro da solução conceitual do direito, Guyer coerentemente procurou traçar uma linha interpretativa que vinculava o direito inato e os direitos adquiridos à moralidade. Assim, de forma acertada sustentou a formação do Estado como necessária para a garantia dos direitos individuais e, além, procurou apresentar os próprios direitos adquiridos pelo arbítrio e consentimento mútuo.

Ocorre, no entanto, que Guyer pecou em não flexibilizar mais esses direito. Adequadamente Guyer procurou enfatizar o caráter progressista da filosofia política de Kant, principalmente a questão do matrimônio e da igualdade da mulher – além disso, o autor procurou compatibilizar um tabu para Kant, a questão da homoafetividade. Guyer necessitava ir, contudo, além da tolerância à união matrimonial entre casais do mesmo sexo, ampliando as liberdades sexuais.

Quanto à formação da república, Guyer sistematicamente demonstra que o pensamento republicano de Kant está coeso com toda a sua filosofia prática. A autorização racional da posse provisória autoriza a propriedade privada e a formação do Estado. A melhor opção para a constituição desse Estado está no republicanismo, pois em uma autocracia monárquica tal direito adquirido da posse seria prejudicado pelo déspota.

Por fim, uma última crítica que se pode fazer a Guyer é o seu não aprofundamento na questão da democracia e a superação da soberania por parte do judiciário. Contudo, em compensação, observa-se fidelidade de Guyer ao texto de Kant.


REFERÊNCIAS

BECKENKAMP, J. “O direito como exterioridade da legislação prática da razão em Kant”, in: Ethic@, Florianópolis, vol.2, n.2. 2003. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/ethic22ar3.pdf. Acesso em 23/07/2009.

BITTAR, Eduardo. Curso de Filosofia do Direito. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

BOBBIO, Norberto. Direto e Estado no pensamento e Emanuel Kant. 2ª ed. São Paulo: Mandarim, 2000.

GUYER, Paulo. Kant. 1º ed. Oxon/USA: Rutledge. 2006.

KANT, Immanuel Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. Texto não publicado.

KAUFMAM, Arthur. Filosofia do Direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouse Gulbenkian, 2004.

KELSEN, Hans. A democracia. Trad.: Ivone Castilho Benedetti et.tal..São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_____________Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KERSTING, Wolfgang. Política, liberdade e ordem: A filosofia política de Kant. Paul Guyer (org). São Paulo: Ideias e letras, 2009.

MONCADA, L. Cabral. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Editora 1995.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant; seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986.

TERRA, Ricardo. Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.


Notas

[1] Tradução livre: O princípio universal do direito, da coerção e do direito inato.

[2] Dessa forma, a definição sustenta a diversidade de arbítrios, isto é, a indeterminabilidade de fins; pelo contrário, há a compatibilidade destes fins através da lei universal da liberdade, a qual constitui a base da formação da sociedade civil. Com esse procedimento, a crítica de formalismo vazio parece estar superada. Não se pode afirmar que Kant omite a indeterminabilidade de fins, tal como afirmado pelos críticos de Kant, tal como os comunitaristas e neoplatônicos.

[3] Nesse sentido, a linha de argumentação de Guyer aproxima a interpretação do conceito de direito da moralidade, distinguindo claramente o papel da ética e do direito como espécies do gênero moral. Na mesma linha de entendimento, vide: KERSTING, 2009, p. 112; BECKENKAMP, 2009, p. 77 e 78; TERRA, 2004, p. 16; SALGADO, 1986, p. 280.

É importante ressaltar que a interpretação majoritária hodiernamente, da qual comunga Guyer, enfrenta uma corrente oriunda especificamente de filósofos do direito, os quais afastam o direito da moral em Kant – para esses, a exterioridade do direito implicitamente significa qualificá-lo como imperativo hipotético. São exemplo: BOBBIO, 1997, p. 62; Miguel Reale (Filosofia do Direito, 2002, pgs 662 e 663) “De onde se pode concluir: 1) que a heteronomia é incompatível com a Moral, mas é compatível com o Direito; 2) que pode haver cumprimento da regra jurídica com plena correspondência entre a “vontade da lei” e a “vontade do obrigado”. (Grifo meu) Também Cabral Moncada (Filosofia do  Direito, 1995, pg. 257) faz a mesma interpretação: “Ao lado da moral, o direito é uma normatividade que só pode definir-se como critério de liberdade, ou seja, como meio de permitir a realização da liberdade do homem em si e nas suas relações com a liberdade dos outros. A única diferença está em que a moral exige, por parte do homem, uma adesão íntima e convicta aos motivos éticos do obrar enquanto que o direito dispensa essa adesão interna da consciência e contenta-se com a conformidade externa ente acção e o preceito. A primeira pressupõe afecto; a segunda, pura observância externa; na primeira, a acção é incoercível; na segunda coercível; uma visa na sua valoração às intenções, a outra os actos humanos externos.”(Grifo meu) Também Vide: Eduardo Bittar (Curso de Filosofia do Direito, 2005, p. 278s). Vide: Artur Kaufman (Filosofia do Direito, 1994, p. 295) sobre a autonomia em Kant – a autonomia estaria apenas no âmbito do pensado, é somente um princípio regulativo.

O que, de fato, extrai-se da discussão é a adequada sistematicidade do pensamento que aproxima a moral e o direito, sendo este uma autorização da razão prática. Por oposto, a leitura contrária parece ser prejudicada por postular uma interpretação analógica, a qual insere no texto de Kant variáveis não debatidas pelo autor de forma literal, o que significa supor que Kant ‘implicitamente’ separa direito de moral. Este artigo julga como mais coerente à obra de Kant o pensamento de Guyer, aproximando as variáveis e qualificando o direito como espécie da moral.

[4] Observa-se que essa visão kantiana da propriedade e da formação de um contrato social diverge profundamente da filosofia de Hobbes e Locke. Na teoria tradicional, os sujeitos aparecem fundando a propriedade já no estado de natureza, isto é, já existe um direito antes mesmo do Estado, o qual servirá não para estabelecer a propriedade, mas apenas para garanti-la contra sua violação. O Estado, nessa concepção de contrato social, reúne forças para defender uma propriedade já estabelecida anteriormente a ele, ou seja, a propriedade para esse tipo de filosofia não é um direito adquirido, como em Kant, mas um direito inato. Como visto anteriormente, para Kant há apenas um direito inato, do qual é autorizada a aquisição de direitos. Nesse contexto, há no estado de natureza apenas a liberdade dos sujeitos, os quais tem autorizado por ela a posse de algo como seu ou de outro. Isso reflete profundamente na necessidade moral dos sujeitos em deixar o estado de natureza e fundar um estado civil. No estado de natureza, como não há condições de reivindicar, na forma da coexistência dos arbítrios, a posse, pois ela nesse momento não pode ser reconhecida por todos de acordo com uma lei universal, há a necessidade moral da fundação do Estado para execução coercitiva do direito adquirido dessa posse, formando assim, o direito de propriedade. Vide GUYER, 2006, P. 273.

[5] Acerca da questão do homossexualismo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro a julgou recentemente, afirmando que a vínculo matrimonial não está na capacidade reprodutiva e passa ao largo da tese kantiana de posse dos órgãos sexuais. Para os Ministros, a relação matrimonial baseia-se na afetividade do casal, não distinguindo credo, etnia ou convicção filosófica. Assim sendo, observa-se que também para o STF brasileiro a posição kantiana é rechaçada, embora ainda sirva vagamente como argumento para camadas mais conservadoras do congresso nacional e da sociedade. Vide STF, Ação direta de inconstitucionalidade número 4277.

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Observa-se, contudo, que Guyer, adequadamente procura dar ênfase ao caráter progressista de Kant quanto reconhece os direito das mulheres e uma possível flexibilização em relação à homoafetividade. Sendo assim, poderia Guyer também flexibilizar outras questões envolvendo as liberdades sexuais, tal como o concubinato e a prostituição (pactum fornicationes). Ocorre que a posição restrita de Kant sobre o assunto não pode prejudicar toda a sua filosofia, pondo em dúvida a legitimidade de seus exemplos. Assim, quando uma camada minoritária da sociedade requisitar seus direito, seria racional rever o próprio imperativo categórico e suas formulações , estendendo-o. Dessa forma, aniquilar-se-ia a crítica de formalismo vazio ao sistema do autor, dando-lhe flexibilidade necessária para manter a racionalização das instituições.

[6] A visão de Kant sobre a democracia é distorcida. Kant a conceitua a partir dos preconceitos platónicos, demonizando-a e qualificando-a como irracional. Ocorre que a fundamentação da democracia também postula por um conceito sine qua non – uma democracia sem igualdade e tolerância perde seu caráter de democracia e torna-se, logo, uma autocracia. Ou seja, quando não se seguem princípios democráticos, logicamente não é mais democracia e sim um governo despótico. Quando, desta forma, uma maioria decide aniquilar a minoria, esta maioria não mais pode ser qualificada como democrática, mas sim como despótico, havendo o que Hans Kelsen intitula de ‘ditadura de partido’ (KELSEN, 2000, p. 67 ss). Acontece, enfim, que Guyer tem a oportunidade de criticar Kant nesse pondo, mas não o faz, perdendo a oportunidade de aproximar a constituição republicana kantiana como o próprio conceito de democracia, situação perfeitamente coerente tendo em vista o discurso liberal e igualitário de Kant. Observação: a comparação entre Kant e Kelsen deve ser vista com ressalvar tendo em vista o método de justificação de ambos – enquanto Kelsen é um relativista-emotivista, Kant vincula-se à fundamentação racional da moral e do direito. Ocorre, contudo, que tal distinção fundamental não prejudica uma interpretação de Kant aproximando-o do conceito de democracia kelseniano, pois ambos, apesar das vias serem diversas, contestam o sistema majoritário de eleição e propugnam uma constituição proporcional às camadas sociais.

[7] Também a concepção de divisão dos poderes kantiana pode ser vista como superada. A teoria do escalonamento jurídico, de Adolf Merkel e Hans Kelsen propugna por uma interpretação constitucionalista da sociedade, a qual põe a constituição acima dos direito do soberano e, dessa forma, vincula seus atos a ela. Sobre a tese constitucionalista, vide KELSEN, 2006, p. 234, sobre a validade e eficácia da constituição e a limitação do poder executivo.

[8] Essa posição de Kant é revolucionária para a época, justifica Guyer, apesar de nos parecer conservadora a restrição ao direito de voto. Uma legislatura, assume Kant, não pode ser fundada por todos os cidadãos, mas será composta pelos seus representantes. Estes, por sua vez só poderão ser legitimamente eleitos se forem escolhidos por homens livres. Caso contrário, na dependência de um cidadão de outro, traria a este um poder de voto maior, pois multiplicaria seus votos. Seria uma injusta vantagem, pois quanto mais dependentes economicamente possuísse um cidadão, maior vantagem teria sobre os outros, ocorrendo um vício na representação. Assim, o voto das mulheres e os trabalhadores são vetados para Kant.

[9] Da mesma maneira como a constituição passou a ser o marco da fundamentação do Estado, também o poder executivo deixou de ter sua soberania incontestada. Tal procedimento de controle do executivo se dá pela maior responsabilidade do judiciário, o qual era desconsiderado tanto por Montesquieu quanto por Kant. Nesse sentido, encontra-se um dos poucos pontos pacíficos entre a filosofia do direito de Kelsen, Rawls e Dworkin. Para esse último, especificamente, cabe ao magistrado o trabalho hercúleo de garantir a soberania do Estado através do controle de constitucionalidade e da dificuldade interpretativa daí decorrente.

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Sobre o autor
Rubin Assis da Silveira Souza

Pós-graduando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Pelotas (RS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Rubin Assis Silveira. A Filosofia do Direito de Kant segundo Paul Guyer a partir do oitavo capítulo da obra “Kant”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3340, 23 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22472. Acesso em: 29 mar. 2024.

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