Resumo: O presente artigo apresentou a interpretação de Paul Guyer acerca da filosofia jurídica de Kant, delimitando seu objeto no oitavo capítulo da obra “Kant”. Procurou-se, por estratégia argumentativa, fixar-se no texto de Guyer, apresentado claramente o problema envolvido, a sua hipótese a e análise das variáveis. Concomitantemente procurou-se inserir uma breve apreciação crítica na forma de notas numéricas. Buscou-se, dessa forma, privilegiar o texto do autor, focando especificamente nos problemas por ele apresentado, sem, contudo, deixar de apresentar uma crítica aos pontos mais cruciais do artigo. Guyer sistematizou a filosofia jurídica de Kant, requerendo à interpretação uma visão mais abrangente da obra do filósofo prussiano, isto é, Guyer procurou correlacionar o conceito de direito kantiano com a filosofia prática, fornecendo, assim, uma ótica em que direito apresenta-se como uma autorização e uma obrigação da razão prática. Nessa sequência, o direito de propriedade, os direitos de família, direitos contratuais, direito público e direito internacional segue uma fundamentação sistemática da obra kantiana.
Palavras-chave: Moral. Direito. Fundamentação. Razão. Prática.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo apresentar, dentro dos limites a ele imposto, a interpretação que Paul Guyer faz das teses jurídicas de Kant. O trabalho restringe-se ao oitavo artigo da obra “Kant”, intitulado: The universal principle of right, coercion, and innate right.[1] Adotou-se, para maior clareza na redação, demonstrar restritamente o pensamento do autor no corpo do artigo, limitando a apreciação crítica dos pontos mais controversos às notas de rodapé. Assim evita-se confundir o pensamento de Guyer com as críticas dirigidas a ele e a Kant. Dentro dessa estratégia, a bibliografia secundária realizada na pesquisa deste artigo limita-se também às notas, tendo no texto principal apenas a interpretação de Guyer.
O problema inicial enfrentado por Guyer diz respeito ao conceito de direito em Kant – sua especificidade em relação à ética e a sua classificação, por questão do problema da coerção, como espécie da razão prática. Aqui Guyer procura esclarecer um ponto controverso na interpretação hodierna de Kant, aproximando o conceito de direito da moralidade e, ao mesmo tempo, afastando-o da interpretação tecnicista. Nesse sentido, a coerção constituirá a principal variável para a fundamentação racional do direito – sendo a própria coerção vista como uma proteção dos direitos dos cidadãos, retribuindo-os dos crimes sofridos; não como uma forma preventiva de proteção fundamentada em imperativos hipotéticos, tal como postulado por alguns autores contemporâneos da filosofia do direito.
Desse conceito de direito Guyer irá enfrentar as variáveis advindas da doutrina de Kant – a questão do direito inato e os direito adquiridos, tendo estes especial relevâncias no texto de Kant e Guyer, pois tratarão dos direitos de propriedade, domésticos, contratuais, públicos e, finalmente, o direito cosmopolita.
Por fim busca-se apresentar a interpretação de Guyer acerca da formação da constituição republicana, a qual será correlata ao racionalismo crítico de Kant e fundamental para a formulação do principal artigo da proposição kantiana para a paz perpétua.
1.O conceito kantiano de Direito, o problema da sua exterioridade e da coerção
Conforme Paul Guyer (2006, p. 263), a filosofia jurídica da Metafísica dos Costumes fixa o conceito de direito logo na introdução da doutrina. Deste conceito seguem-se todas as variáveis apresentadas por Guyer sob o texto de Kant, desde o problema do arbítrio, a sua exteriorização, a liberdade como condição irrefutável e a adequação do imperativo categórico ao procedimento da Metafísica dos Costumes. Daí, finalmente, deriva-se a definição de coerção e a sua exterioridade, objeto deste primeiro capítulo.
O direito foi definido por Kant, segundo Guyer (2006, p. 263), como a soma das condições sobre as quais o arbítrio de um pode ser unido com o arbítrio de outro de acordo com uma lei universal da liberdade. Interpreta o autor que os arbítrios, a partir deste conceito, utilizarão a máxima liberdade desde que compatíveis e sob uma lei universal. É, em suma, uma derivação do valor universal da liberdade que concentra o arbítrio enquanto os indivíduos perseguem seus próprios fins, mesmo estes fins sendo diversos.[2] Nesse sentido, qualquer ação pode ser juridicamente aceita se o arbítrio da parte puder coexistir com a liberdade do arbítrio de outra sob uma lei universal. Exemplifica Guyer (2006, 265) afirmando que a execução de um homicídio pode estar no arbítrio de um, mas priva o outro do seu. Destarte, o princípio do direito é entendido como a equidade na distribuição dos fins entre os sujeitos, de forma radicalmente diversa do procedimento utilitarista, afirmando que entendimento kantiano reclama pela esfera da máxima equidade da liberdade para todos sem, contudo, determinar a priori os interesses dos sujeitos envolvidos.
Pode-se então perceber que para Guyer há certo compatibilismo das subjetividades sob a moralidade. Os sujeitos são livres para realizar quaisquer fins, contudo, o limite está na realização de fins dos outros, o que dá substância argumentativa para a alçada da teoria moral kantiana sobre o direito, tornando-o, dessa forma, moralmente permitido pela razão prática.
Nesse procedimento, a exteriorização dos arbítrios possibilita o conhecimento intersubjetivo dos mesmos e a sua possível máxima liberdade. Apenas após postulado o arbítrio exteriormente, aplicar-se-á o procedimento jurídico. Ou seja, não está restrito apenas à vontade, mas às ações. Guyer (2006, p. 265), nesse sentido, reforça a distinção kantiana entre deveres de direito e deveres de virtude. Aqueles são externamente incentivados e podem ser coercitivamente obrigatórios e executados pela coletividade. Nesse interim, afirma que os deveres de direito tratam especificamente do uso externo do arbítrio, isto é, a liberdade da minha ação. As intenções ou as máximas não podem, dessa forma, ser restringidas por esse tipo de coerção. Por conseguinte, o direito não diz respeito à pureza ou impureza dos motivos, mas somente aos efeitos das ações. Por essa razão pode, pela ameaça, induzir alguém a cumprir determinada ação, porém nunca poderá motivar-lhe o seu cumprimento.
No entanto, esclarece Guyer (2006, p. 264) que o uso da coerção não pode ser interpretado por mera ameaça em Kant. A privação dos direitos de outrem não se refere apenas à restrição da sua liberdade, mas também, e principalmente, a promoção da liberdade dos outros. O próprio uso da coerção está legitimado pelo princípio do direito, sendo que a preservação da máxima igualdade na esfera da liberdade demanda pela aplicação externa do princípio universal. Em outras palavras, quando restringida por uma coerção, uma ação reprovada promove a liberdade do outro. Consequentemente, um sistema público de coerção não priva ninguém de seu livre arbítrio. Mesmo o ladrão ou o homicida ainda mantém seu arbítrio sobre a sanção. Advém que, pela ótica oposta, a vítima do roubo ou do homicídio tem sua escolha suprimida, requerendo ao direito que lhe confira novamente sua liberdade. O criminoso pode escolher o crime, mas também deve ter a consciência de suportar a sanção a ele imposta, pois restringe a liberdade de outrem, violando o princípio do direito.
Guyer, a partir dessa linha de argumentação, aproxima o princípio universal do direito com o fundamento da moralidade. Então pode argumentar que o uso da coerção é ele mesmo não apenas permitido pela razão prática, mas também um mandamento dela, ou seja, moral. Como se verá nos argumentos seguintes, há uma obrigação dos cidadãos em criar e manter um Estado, da sua saída do Estado de natureza e fundação da sociedade civil. Dentro desta necessidade requerida por Kant, o uso da coerção faz-se extremamente necessário para conter aqueles arbítrios que não se limitam ao princípio do direito.[3]
2. Direito Privado e a formação do Estado
O que se observa na questão do conceito de direito é que Guyer traça um esquema de interpretação sistemático do texto de Kant, o que significa estender a compreensão do conceito de direito inato, ao seu correlato direito adquirido. O direito inato é restrito à liberdade, o qual dá origem à personalidade, inalienável e postuladora de uma igualdade universal. Desse, do direito inato, são originados dos direitos adquiridos, os quais são analisados pelo autor e descritos como o reconhecimento externo de algo como meu ou teu, i.e., o problema da posse, sua origem precária, sua natureza e a sua divisão em três esferas distintas – direito de propriedade, direito contratual e direito de família. Racionalmente, argumenta Kant, segundo Guyer (2006, p. 268), que os envolvidos no estado de natureza escolheram ter com seus objetos externos, pois tais lhes trazem benefícios. Nessa sequência, como sendo um direito adquirido, há a necessidade do consentimento entre os arbítrios expressos. Como se verá logo a seguir, este consentimento é essencial dentro da filosofia jurídica de Kant, pois será a base para a reivindicação da execução coercitiva da coletividade dos seus direitos adquiridos.
Nessa sequência, a primeira esfera do direito arguido refere-se a aquisição das coisas externas como minhas ou de outros. Primeiramente há, anteriormente a formação do Estado, portanto no estado de natureza, uma autorização da razão prática para que alguém adquira fisicamente algo, mais especificamente no pensamento de Kant, uma porção de terra pode ser possuída fisicamente por um sujeito. Isso porque as pessoas têm o direito natural para controlar e utilizar objetos, tanto imóveis quanto semoventes. Nesse momento da posse precária não há a propriedade propriamente dita. Como visto acima, o direito de propriedade necessita de um consentimento geral. Aqui, especificamente no momento da posse precária não há este reconhecimento. Há uma posse física, de fato, mas que não pode ser reivindicada em caso de esbulho. Apenas minha força física garante a coisa como minha ou tua neste momento. Portanto, aqui, não há ainda o direito de propriedade sobre os objetos. (2006, p. 269 e 270)
Posteriormente, a posse precária necessita do reconhecimento para se tornar um direito adquirido de propriedade. A posse, portanto, não dispensa a sua adequação ao princípio racional do direito, isto é, o arbítrio de um em dominar algo externo deve necessariamente estar consoante com o arbítrio dos outros em também ter como seus objetos externos. Assim, há um fato gerador de direitos, os quais afirmam a racionalidade da aquisição dos objetos e o reconhecimento dessa aquisição por todos, isto é, há uma pretensão precária em se reivindicar essa posse contra o não reconhecimento dos outros não obedientes a uma lei da liberdade.
Dessa pretensão reivindicatória origina-se a variável da coerção jurídica. Essa coerção ocorre pelo clamor geral da repressão à usurpação da posse precária. Daí se segue o reconhecimento sob leis universais do meu e do teu. Desse reconhecimento há a autorização da execução forçada contra a usurpação do objeto de outrem. Assim, Kant fundamenta a formação da necessidade imperiosa do reconhecimento das reivindicações dos sujeitos quantos aos objetos. Essa reivindicação, para ser racional, precisa estar posta em um Estado civil. Daí a obrigação moral da fundação e manutenção deste estado pelos seus cidadãos[4]. (GUYER, 2006, p. 272 E 273)
O Estado será, por essa via, o meio com o qual a coletividade validará sua defesa. Desse modo, a provisão da reivindicação da propriedade somente pode ser exercida por uma associação na medida em que esta funda o Estado e estabelece a ele racionalmente mecanismos de defesa, exercidos especificamente pelos agentes do estado. São esses, os funcionários do estado, os responsáveis pela execução da defesa da sociedade. Não poderão agir em benefício próprio, mas têm seus interesses, enquanto servidores do estado, voltados para o benefício de todos. Assim, devem agir de acordo com a ideia de um contrato social justo, igualitário. (GUYER, 2006, p. 274)
Ocorre que esse Estado, além de ser constituído por um dever moral, deve ser mantido, i.e., um povo além de instituir o Estado, tem o dever de sustentá-lo, o que justifica, para Kant, o direito do soberano de impor tributos ao povo para a própria preservação do Estado. As taxas pagas a eles não devem ser vistas como forma de aquisição de propriedade ou vantagem pessoais lhes entregues pelo fato de exercerem a gerência do poder da comunidade, mas como uma forma de manter o Estado na fundação permitida pela razão, isto é, garantir que os arbítrios sejam regulados e não se permita que interesses privilegiados se sobreponham sobre outros. (GUYER, 2006, p. 275)
Dessa forma, após vencida a questão da formação do Estado, Guyer (2006, p. 276 ss) propõe analisarmos, além do já citado direito de propriedade, outras duas esferas desse direito de ter alguma coisa externa como minha, direitos protegidos por esse Estado constituído. Além da esfera da obtenção das coisas externas na forma da propriedade, o direito de ter algo com seu dá origem também à formação de outras duas formas de aquisição – o direito de família (ou direitos domésticos) e o direito contratual.
O direito contratual, afirma Guyer (2006, p. 276), na mesma forma da posse provisória, também deve ser limitado pela liberdade dos outros. O direito de contratar é dado livremente aos cidadãos, desde que compactuem conforme a consciência da escolha livre das partes, isso quer dizer que o direito de contratar também está limitado, para ambas as partes, ao acordo moralmente aceitável e não violador da liberdade dos outros, v.g., um contrato para escravizar não pode ser moralmente aceito, assim como um contrato que exija a violação da liberdade de outros. Nesse sentido, assim como a propriedade apenas pode ser requisitada se há o consentimento e a proteção da coletividade, também o direito de contratar está limitado ao parecer social. Então o Estado apenas poderá executar uma coerção contra o descumpridor do contrato se estiver de acordo com as leis universais de liberdade.
Quanto à questão do direito de família ou direitos domésticos, Kant o divide em três partes – o direito matrimonial, o direito dos pais e direitos do chefe de casa. Quanto ao primeiro, o direito matrimonial, esclarece-nos Guyer (2006, p. 276 e 277) que a posição de Kant em um primeiro momento apresenta-se como uma bizarrice. Talvez, afirma, seja uma visão do casamento de um solteiro, ou a visão que lhe levou a ser solteiro. Contudo não se pode fixar o problema do direito de família apenas nas considerações perversas de Kant, mas visualizar a questão sob uma ótima mais profunda, o que implica em fundamentar um direito de família também consoante com as leis universais da liberdade.
O direito matrimonial, elucida Guyer (2006, p. 277), tem seu fato gerador na mútua aquisição dos órgãos sexuais do casal e no seu reconhecimento, isto é, o homem adquire órgão sexual de sua esposa e a esposa, por sua vez, adquire o seu, e essa aquisição pode ser reconhecida por todos. Tal qual no direito sobre as coisas, também o direito de família legitima uma requisição sobre a aquisição do casal, requisição esta que poderá ser forçada, assim como no direito das coisas. Observa-se que há profundas diferenças deste direito matrimonial em relação ao direito de propriedade, pois quando se adquire o órgão sexual do outro, adquire-se todo o resto, porque o corpo humano é indivisível. Logo, contrai-se o matrimônio não com uma coisa, que pode ser alienada, mas com outra pessoa, detentora do direito inato de liberdade e com personalidade – há o reconhecimento da humanidade do outro, o qual não pode tratado como mero animal, v.g., apenas para a procriação, e passa a ser respeitado como ser humano.
Após essas posições severamente conservadoras de Kant, Guyer (2006, p. 277 e 278) sustenta haver duas concepções progressistas de Kant em relação ao matrimônio: 1) primeiro, o papel da mulher - no matrimônio há uma igualdade de posições entre homens e mulheres; 2) a outra visão progressista refere-se ao papel do sexo no casamento: para Kant, não é apenas no sexo para a procriação que está justificado o matrimônio. Essa seria uma visão teológica refutada. Tal posição não seria racional, pois negaria a possibilidade de casamento a casais inférteis e também obrigaria ao divórcio àqueles que já não têm mais idade reprodutiva. Disso Guyer interpreta uma posição mais amena do texto kantiano em relação ao homossexualismo. Sendo a visão do sexo não apenas para procriação em Kant, Guyer admite que hoje justificar-se-ia a união homossexual como moralmente aceitável, legando aos parceiros do mesmo sexo direitos iguais, tais como direito de herança, benefícios do plano de saúde etc. Por isso hodiernamente alguns pleiteiam a extensão do instituto do matrimônio para incluir o casamento homossexual.[5]
O segundo problema diz respeito ao direito dos pais sobre os filhos. São direitos e deveres que os pais têm em relação aos seus filhos e o reconhecimento dos outros destes direitos e deveres. O dever de cuidado dos filhos, para Kant, é um dever de gratuidade, pois os pais não recebem nada em troca pelo cuidado face a liberalidade da escolha em procriar. Os pais utilizam-se de suas máximas liberdade para educar seus filhos eles mesmos como seres livres, e como seres livres, os filhos não são meramente coisas das quais se pode dizer possuidor com se fossem objetos externos, isto é, não podem ser alienados tal como a propriedade ou mesmo destruídos. Daí lhes surge o dever de cuidado, de alimentação de educação moral até a sua emancipação. (GUYER, 2006, p. 278 E 279)
Finalmente, o texto de Kant versa sobre o direito do chefe da família, isto é, os direitos e deveres de gerenciar os empregados. São os limites impostos pela razão, e consequentemente executados coercitivamente pelo Estado, tanto ao gerente destes empregados, quanto aos direitos dos próprios empregados. O chefe da família nunca poderá se comportar como se fosse proprietário dos seus empregados. Um contrato de trabalho que vinculasse o empregado como coisa ao chefe da família seria em si nulo e vazio. (GUYER, 2006, p. 279)
Nesses termos Guyer finaliza a formação do Estado e a aquisição de direitos, tais como a propriedade, direitos contratuais etc. A partir desse procedimento, Guyer então passa a analisar a filosofia política de Kant, o que envolve a sistemática dos conceitos apresentados nesse capítulo. A proteção da propriedade, dos direito de família, direitos contratuais etc. são legitimamente reivindicados dentro de um Estado republicano, fundado sob uma constituição normatizada por princípios republicanos, tais como a igualdade e liberdade dos cidadãos. Dessa fundamentação constitucional, Kant argui, conforme Guyer, por um direito cosmopolita e pelo pacifismo.
3. A constituição republicana, a reforma do Estado e a paz perpétua
Na concepção kantiana, como visto, o Estado existe para executar a coerção socialmente organizada e legitimada pela coletividade. Do direito inato da liberdade e dos direitos adquiridos pele reconhecimento dos outros há a autorização para criação do Estado. Essa concepção de Estado adjetiva-se como justo quanto se idealiza na forma de uma constituição republicana. A constituição republicana, por sua vez, reclama por um fundamento sob o contrato social. Com isso, Kant refuta a política monárquica e absolutista do Estado, responsável pelo despotismo paternalista que tratava seus súditos como menores de idade e não conhecem seus interesses como legítimos. Por esses princípios republicanos, então, o governante não promoverá a felicidade do povo, pois não deve se comportar de forma paternalista, mas tem a obrigação de exercer seu papel de protetor do exercício racional dos direitos. Assim, afirma Guyer (2006, p. 280), o Estado existe para assegurar a máxima liberdade dos cidadãos para que eles mesmos sejam efetivamente membros do Estado em uma posição de igualdade.
Guyer .[6] (2006, p. 281) alerta que esta posição kantiana não endossa uma democracia na sua forma pura, isto é, a decisão pela maioria. Na ótica de Kant, este também é um mundo despótico porque estabelece um poder que não respeita o direito de todos, requisito essencial ao conceito universal de direito. Os direitos das minorias, segundo Guyer, na visão de Kant, são pisoteados em uma democracia. A insistência de Kant, em fundação disso, é a composição de um sistema proporcional e não majoritário de representação. Há, assim, uma clara divisão entre os poderes legislativo e executivo. Aquele será formado por um grupo de cidadãos que representam o subconjunto de todos os outros, estabelecendo leis não em benefício próprio, mas de acordo com a ideia de liberdade expressa na concepção de contrato social.
Assim, Kant pode estabelecer um republicanismo fundado sob a divisão tripartite do poder – legislativo, executivo e judiciário. Essencialmente a separação entre o poder legislativo e o poder executivo é o que compõe o Estado republicano. Os que legislam não podem executar suas leis, assim como o executivo não pode legislar. Neste último caso, poderia o executivo beneficiar-se se atuando como próprio legislador, pois estaria outorgando as leis que iria aplicar, ou seja, sem a representação do povo. [7]
Essa será uma parte rigorosamente enfatizada por Kant (GUYER, 2006, p. 283). O pode executivo existe para executar as leis promulgadas pelo legislativo e não para servir aos seus próprios interesses. Dessa forma, em uma legítima constituição republicana o chefe do poder executivo não pode ser considerado o proprietário de todos os bens e interesses da nação, assim não pode se comportar admitindo o seu cargo como sua propriedade, deixando-o aos seus herdeiros, como acontecia nas dinastias europeias na própria época de Kant. A formação tanto do legislativo quanto do executivo deve ser pelo voto.[8]
Finalizado a questão da constituição republicana, Guyer (2006, p. 284 ss) passa a discutir a questão da legitimidade deste Estado e uma possível rebelião pelos governados. Também discute uma alternativa ao direito de rebelião demonstrando que para Kant há um dever moral do governante em propiciar um espaço para a reforma do Estado.
Nesse sentido, sustenta Guyer (2006, p. 284) que em nenhuma hipótese haverá espaço para a rebelião no projeto kantiano de governo. Em primeiro lugar, a felicidade dos cidadãos é um argumento completamente rejeitado por Kant, e, obviamente, não motiva esse direito de rebelião; por outro lado, a via do procedimento da universalizabilidade da liberdade gera uma contradição ontológica para a rebelião: ocorre que é povo quem constitui um estado civil e quando desobediente, rebela-se contra si mesmo.
Guyer afirma (2006, p. 284 e 285) que Kant refuta totalmente a o direito de rebelião amparado no fracasso histórico da revolução francesa. Os horrores na França pós-revolução regrediram o Estado a uma condição pior do que o Estado absolutista. O direito de rebelião, na obra supracitada, baseia-se em um primeiro momento na felicidade dos cidadãos, na sua prosperidade, no aumento populacional etc. Ocorre que não cabe ao chefe do executivo nem aos representantes dos cidadãos disporem sobre essa felicidade. A função do Estado não está em garantir a máxima felicidade, hipótese utilitarista, mas garantir o direito inato e os direitos adquiridos do povo. Por essa razão, o discurso da suposta felicidade do povo dentro do Estado, responsável pela ideia da possibilidade de rebelião, não pode de forma alguma ser legitimado.
Assim, vê-se uma contradição insuperável do direito de rebelião. Contudo, tendo em vista as críticas passíveis de tal opinião de Kant, Guyer (2006, p. 288) procura esclarecer a distinção entre o poder legitimamente representante do povo e o poder executivo. A rebelião contra o primeiro é a rebelião ontologicamente impossível, porque não pode um povo rebelar-se contra sua própria representação; já a rebelião contra o segundo necessita de maiores esclarecimentos. O poder executivo, para Kant, não se choca ao poder legislativo, pois são diversos e Kant põe o executivo como poder singular. O poder executivo, assim, deve ser soberano o suficiente para garantir a liberdade dos seus súditos. Por conseguinte, o poder executivo não pode ser limitado por outro poder, o que exigiria a limitação de outro poder até o infinito. Nem mesmo a constituição pode restringi-lo: uma constituição que reservasse poderes para impedir o soberano deveria também reservar uma proibição a esse poder limitador até o infinito. Desta forma, conclui-se que mesmo contra o chefe do executivo não há possibilidade de rebelião, apesar de o argumento dessa impossibilidade não ser ontológico.
Portanto, é indubitável a posição Kant acerca da rebelião. Contudo, Kant admite, segundo Guyer (2006, p. 289), que possa haver injustiças dentro do Estado, o que, como visto, não gera a pretensão de revolta, mas, por sua vez, as injustiças devem ser demonstradas pelo povo e corrigidas pelo soberano. Ou seja, Kant admite uma possibilidade de reforma do Estado. Uma constituição deficiente não pode ser revogada pela força da rebelião, mas deve ser reformada pelo próprio soberano. Por meio dos seus representantes, por conseguinte, o povo tem condição de reformar o poder executivo. Essa reforma também é limitada, pois não se admite uma reforma anárquica, mas tal é correlata ao dever do soberano republicano em corrigir as injustiças da constituição. O procedimento requer que os parlamentares requisitem ao governante a sua reforma, peticionando por melhoras das instituições. O súdito deve aceitar que o soberano não lhe faz injustiças, mas pode admitir que por erro ou ignorância do governo lhe é prejudicial algumas leis da república. Disso decorre que o soberano não deve perceber a crítica ao seu governo como um ato de rebeldia, mas como uma forma de corrigir erros dos quais o próprio soberano concorda.
Por essa razão, o chefe do poder executivo[9] deve seguir certos princípios republicanos, os quais garantem a liberdade dos cidadãos para aperfeiçoar a constituição. O direito de livremente publicar suas opiniões, assim como o direito de expressão são normas que devem ser estabelecidas com prioridade. De tal modo, para Kant, os governos devem garantir uma possibilidade de crítica das suas constituições para o fim de aperfeiçoá-las. Essa crítica é fundamentalmente exercida dentro da academia, para qual requer Kant uma forte liberdade de pensamento, expressão e publicação. Da academia saem estudantes preparados para assegurar uma posição mais elevada dentro do Estado e também preparados para o uso público da razão. Estes membros não têm apenas o direito de reivindicar as reformas do Estado, mas têm o dever de procurar a verdade e garantir sua livre publicação. Nesse sentido, o governo republicano deve permitir e fomentar as atividades de pesquisa e a livre expressão destes profissionais como o fim único de aperfeiçoar a sua governança. (GUYER, 2006, p. 290 E 291)
Guyer (2006, p. 294) expande, a partir da ideia de constituição republicana, a filosofia política de Kant para a sua política internacional. Para o autor, a paz perpétua não se trata de um sonha vago, mas uma séria de proposições concretas para a sua aquisição. Tais estão descritos em seus artigos sobre a paz perpétua, os quais exigem a proibição da aquisição dos Estados, fim dos exércitos armados etc. O que Kant pretende principalmente, diz Guyer, é a formação de uma constituição civil republicana cosmopolita, onde haja um federalismo universal. Para isso, Kant fundamenta a necessidade de Estados autocráticos transformarem-se em repúblicas. Destas nações republicanas qualquer ideia de guerra seria rechaçada pela população, que tem seus bens destruídos.
Em relação aos artigos para o projeto kantiano da paz perpétua, Guyer (2006, p. 295) concentra-se no que considera ser a parte fundamental - a necessidade de todos os Estados tornarem-se republicanos. Isto porque os governantes autocratas consideram como suas todas as coisas externas do Estado, incluindo as propriedades, das quais apenas o governo pode dispor. O déspota, com essa postura, não se limita as propriedades dentro de seu Estado e procura expandi-lo sem receio de arriscar seus bens, que moralmente não lhe pertence.
Quando à Guerra, segundo Kant, afirma Guyer (2006, p. 296 ss), distribui os homens por todos os cantos da terra, habitando-a. Os sujeitos acabam buscando segurança em outros lugares. Ocorre que já estando exilado, o fardo da guerra já lhe é insuportável, o que consequentemente faz com que o povo a repudie e, naturalmente transforme a autocracia em que viviam em uma república. Ou seja, para Kant, naturalmente os governos tendem a tornarem-se repúblicas, deste modo excluindo todas as causas da guerra. Daí se segue, consequentemente, tratados de paz entre as repúblicas. Os cidadãos dentro de uma república, em suma, por serem coletivamente soberanos e iguais, podem fortemente ter aversão ao risco de suas propriedades e suas próprias vidas, sentimento, como visto, não enfrentado pelo governo despótico. Assim, escolherão engrandecer a forma republicana de Estado, repudiar a guerra do déspota e fomentar uma política moral dentro da república, afastado o moralismo político.