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O Estado democrático de direito e o direito penal no Brasil. Finalismo ou funcionalismo? Eis a questão

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05/09/2012 às 15:46
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V. O Funcionalismo

Quando se fala em Funcionalismo, inúmeras são as teorias existentes a respeito, sendo que as duas que mais se destacam, indubitavelmente, são o Funcionalismo radical de Günther Jakobs e o Funcionalismo moderado de Claus Roxin, os quais serão doravante analisados. No entanto, cumpre, ab initio, esclarecer as principais diferenças entre ambos, sendo que, segundo Luiz Regis Prado e Cezar Roberto Bitencourt, a diferença precípua reside nas referências funcionais dos dois sistemas, pois o Funcionalismo sistêmico se preocupa com os fins da pena, enquanto o Funcionalismo político-criminal se ocupa com os fins do Direito Penal.[46]

V. a) O Funcionalismo radical de Günther Jakobs

O Funcionalismo de Günther Jakobs é chamado de radical devido a sua caracterização, qual seja um funcionalismo sistêmico que, segundo Luiz Régis Prado, assim se caracteriza:

O Direito é, então, um subsistema social autopoiético de comunicação, ou seja, um sistema comunicativo normativamente fechado. A sua particularidade como sistema social é ser normativo. O Direito, como regulador social, delimita o âmbito das expectativas normativas de conduta.

Esse é o alicerce metodológico primeiro da teoria funcionalista sistêmica desenvolvida por Günther Jakobs para o Direito Penal.[47]

Visualiza-se, então, que na perspectiva de Jakobs o Direito Penal deixa de considerar o ser humano como centro do sistema penal, relegando-o a segundo plano, e sobreleva a manutenção do sistema penal, por meio da reafirmação da vigência da norma, como a função precípua do Direito Penal, evidenciando, destarte, o caráter autoritário de tal corrente funcionalista, que fica ainda mais explícito quando se aborda o tema referente ao Direito Penal do Inimigo, o qual é assim propugnado por Günther Jakobs:

Portanto, o Direito Penal conhece dois pólos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade.[48]

Observa-se que o Direito Penal do Inimigo, propugnado por Günther Jakobs, caracteriza-se nitidamente como Direito Penal do autor em detrimento do Direito Penal do fato, característico dos Estados Democráticos de Direito, haja vista que, consoante o próprio Jakobs afirma, o inimigo deve ser combatido por sua periculosidade. É dizer, deve-se aplicar, segundo os ditames do Direito Penal do Inimigo, o Direito Penal a priori e não como ultima ratio, ofendendo, sobremaneira, o princípio da intervenção mínima.

Resta evidenciado, diante do exposto acima, que o Funcionalismo sistêmico de Jakobs afronta veementemente os preceitos do Estado Democrático de Direito, visto que não respeita o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da culpabilidade, o princípio da intervenção mínima e tantos outros princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, haja vista que tal teoria adota o Direito Penal do autor em detrimento do Direito Penal do fato e, mais ainda, como escreve Cezar Roberto Bitencourt: “... o normativismo monista (funcionalista-sistêmico), sustentado por Jakobs, encontra somente no interior do próprio sistema penal os parâmetros necessários para o seu desenvolvimento estrutural, não se sujeitando a limites externos”.[49] É dizer, o Funcionalismo de Jakobs prescreve um Direito Penal quase sem limites, pois o mesmo não encontra limites senão aqueles decorrentes do próprio sistema penal, ou seja, nada mais atentatório contra o Estado Democrático de Direito.

V. b) O Funcionalismo moderado de Claus Roxin

O Funcionalismo moderado defendido por Claus Roxin finca suas bases num sistema penal orientado por decisões político-criminais, conforme se observa nos dizeres do próprio Roxin, o qual escreve o seguinte: “A unidade sistemática entre política criminal e direito penal, que no meu entender também deve ser realizada na construção da teoria do delito, é somente o cumprimento de uma tarefa que é colocado a todas as esferas de nossa ordem jurídica”.[50] Ou seja, o Funcionalismo moderado de Roxin observa as referidas decisões político-criminais e, segundo Cezar Roberto Bitencourt, prioriza valores e princípios garantistas, ao passo que o Funcionalismo sistêmico somente leva em consideração as necessidades sistêmicas, fazendo com que o Direito Penal se ajuste às mesmas.[51]

O sistema jurídico-penal propugnado por Claus Roxin baseia-se em critérios teleológicos, os quais decorrem de decisões político-criminais, sendo que o mesmo recebe a denominação de sistema penal teleologicamente orientado[52], por parte de Luiz Regis Prado e, mais ainda, segundo os dizeres de Luiz Regis Prado: “Dentro dessa perspectiva, atribuem-se funções político-criminais a cada categoria do delito”.[53]

No entanto, o pensamento de Claus Roxin tem recebido críticas, no sentido de que as decisões político-criminais do legislador podem violar preceitos penais fundamentais de um Estado Democrático de Direito, conforme se observa no dizeres de Cezar Roberto Bitencourt:

Tem-se criticado essa orientação de Roxin no sentido de que as decisões político-criminais do legislador podem desprezar as garantias fundamentais do direito penal de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que a ciência do direito penal “nem sempre pode partir de decisões político-criminais adequadas” (Moreno Hernández/Roxin, § 22 BIV p. 863, nota de rodapé 126).[54]

Mais adiante segue Cezar Roberto Bitencourt afirmando que Roxin assegura que o único instrumento contra os excessos estatais é a insistência e a invocação de direitos humanos e de liberdades invioláveis que se encontram consolidadas, ao menos teoricamente, em grande parte do mundo ocidental, como na Alemanha, onde tais direitos e liberdades possuem previsão constitucional e são respeitados de forma cogente por qualquer dogmática penal que argumente político-criminalmente.[55]

Em se tratando do Direito brasileiro, pode-se dizer que há certa semelhança entre a Constituição alemã e a Constituição brasileira de 1988, eis que a Carta Magna brasileira também prescreve vários direitos e liberdades na esfera criminal, com vistas a frear o jus puniendi estatal. Todavia, o grande problema é que na Alemanha a Constituição é respeitada, enquanto no Brasil, muitas vezes, a mesma se torna letra morta diante dos mais escusos interesses, conforme expõe Cezar Roberto Bitencourt:

A Constituição Federal brasileira, a exemplo da similar alemã, também recepcionou esses mesmos preceitos de respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, restando a lamentar, apenas, que lá (Alemanha) a Constituição é respeitada, aqui (Brasil), no entanto, ela é reformada ou emendada ao sabor dos interesses palacianos para adequar-se à política que interesse aos governantes de plantão, lamentavelmente. Assim, os argumentos defensivos sustentados por Roxin servem para a Alemanha, mas não servem para uma República como a nossa, onde a prática desrespeitosa da Constituição confirma as suspeitas de Moreno Hernández.[56]

Por derradeiro, arremata Cezar Roberto Bitencourt 79 [51]: “Realmente, o maior penalista deste início de milênio, mundialmente reconhecido, não conhece uma República Federativa continental chamada Brasil”.[57]

Dessa forma, demonstrou-se que a vertente funcionalista moderada de Claus Roxin se mostra mais adequada aos ditames de um Estado Democrático de Direito, do que a vertente funcionalista radical defendida por Günther Jakobs. Contudo, quando se fala, especificamente, no Estado Democrático de Direito brasileiro, nos moldes instituídos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e diante da realidade brasileira, importa destacar que o sistema jurídico-penal que melhor se amolda, continua sendo o Finalismo.


VI. Conclusão

Conforme explicitado acima, o Direito Penal caracteriza-se por ser o ramo mais contundente do ordenamento jurídico brasileiro, pois é por meio dele que se impõem as mais graves penas às mais agudas violações à ordem jurídica. Devido a isso, o Direito Penal é ramo das ciências jurídicas que exige grande cautela quando de seu manuseio, eis que se utilizado de forma arbitrária e autoritária configurará hipótese de grave violação aos direitos e garantias inerentes ao ser humano, consoante explicitado alhures.

Dessa forma, o Direito Penal deve encontrar limites, sendo que no Brasil tais limites estão localizados na Carta Magna de 1988, isto é, são os preceitos e os princípios constitucionais limitadores do jus puniendi estatal, os quais configuram o Direito Penal Constitucional brasileiro e, dentre estes princípios, figuram o princípio da legalidade, o princípio da intervenção mínima, o princípio da proporcionalidade, o princípio da culpabilidade e o princípio da dignidade da pessoa humana, os quais desempenham função primordial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

É cediço que várias foram as teorias que, ao longo dos séculos, buscaram fundamentar o Direito Penal, sendo que hodiernamente se sobressaem o Finalismo e o Funcionalismo e, no que concerne ao Direito Penal brasileiro, importa frisar que é o Finalismo a teoria adotada pelo ordenamento jurídico-penal, bem como pelos dispositivos constitucionais referentes ao Direito Penal.

Entretanto, viu-se que, nas últimas décadas, surgiram as mencionadas teorias funcionalistas, sendo que as duas vertentes mais importantes são: o Funcionalismo radical de Günther Jakobs, prestando ênfase aos fins da pena, e o funcionalismo moderado de Claus Roxin, enfatizando os fins do Direito Penal. O primeiro, por meio de seu Funcionalismo sistêmico, assevera ser a reafirmação da vigência da norma a função primeira do Direito Penal, como forma de manutenção do sistema penal. Relega, destarte, o ser humano a segundo plano – o que fica cristalino quando se aborda o Direito Penal do Inimigo – e desrespeita vários princípios constantes na Constituição de 1988, tais como o princípio da intervenção mínima, ao adotar o Direito Penal do autor em detrimento do Direito Penal do fato, o princípio da culpabilidade, ao impor pena ao indivíduo somente pela sua periculosidade, o princípio da proporcionalidade, ao prescrever penas desproporcionais àqueles rotulados como inimigos, e, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o Funcionalismo de Günther Jakobs, conforme exposto, relega o ser humano a segundo plano, afrontando, assim, veementemente o Estado  Democrático de Direito brasileiro. O segundo, por sua vez, caracteriza-se por fundamentar o sistema penal teleologicamente, por meio de decisões político-criminais. Todavia, ao fundamentar o Direito Penal em decisões político-criminais, o Funcionalismo de Claus Roxin amplia demasiadamente a liberdade do legislador, propiciando, portanto, margem a todo tipo de violações aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e, por conseguinte, ao próprio Estado Democrático de Direito brasileiro.

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Sendo assim, percebe-se que tanto o Funcionalismo de Günther Jakobs, quanto o Funcionalismo de Claus Roxin, não superam o Finalismo como teoria fundamentadora da teoria do crime, diante do ordenamento jurídico-penal brasileiro, porquanto a teoria da ação finalista foi amplamente adotada pela reforma da parte geral do Código Penal, ocorrida no ano de 1984 e, desde lá vem servindo de orientação para toda a teoria do delito no Brasil, bem como se coadunando com os preceitos prescritos pela Constituição de 1988, haja vista que a mesma também prescreveu alguns princípios na seara do Direito Penal que se relacionam harmonicamente com os ditames do Finalismo. Veja-se, a título de exemplo, o princípio constitucional da culpabilidade e os reflexos que o mesmo emite sobre todo o ordenamento jurídico-penal brasileiro, ante a adoção do Finalismo como base de sustentação da teoria do crime no Brasil. E, mais ainda, várias foram as conquistas obtidas na seara penal ao longo dos séculos, sendo que a adoção do Finalismo em muito contribuiu para tais conquistas, principalmente ao elevar o ser humano como o ponto nevrálgico do sistema penal e como diz José Henrique Pierangeli:

O direito penal moderno está moldado segundo princípios liberais, elaborados, lenta e penosamente, através dos séculos. E, até hoje, não se conseguiu encontrar algo melhor para substituí-los. Tentativas e experiências nesse sentido têm sido desastrosas. Dentro desse quadro, o nullum crimen nulla poena sine lege, o direito penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se imponentemente, numa perfeita seqüência e implicação lógicas, como colunas de sustentação de um sistema indissoluvelmente ligado ao direito penal de índole democrática. Por isso merecem ser preservados.[58]

É dizer, o Finalismo mostra-se, ainda hoje, como o método mais adequado para a construção de um sistema penal que reverencie o Estado Democrático de Direito, visto que a observância das, supra mencionadas, estruturas lógico-objetivas – o conceito ontológico de ação humana como uma atividade final e a culpabilidade – elevou a dignidade da pessoa humana ao topo das considerações na esfera do Direito Penal, pois somente a uma pessoa que pratica uma conduta dirigida a um fim delituoso e sobre a qual recaia a culpabilidade é que se pode atribuir responsabilidade criminal, revelando-se o Finalismo, portanto, em perfeita harmonia com o Direito Penal Constitucional e com o Estado Democrático de Direito, instituídos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


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Sobre o autor
Diego Bini

Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Direito - EPD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BINI, Diego. O Estado democrático de direito e o direito penal no Brasil. Finalismo ou funcionalismo? Eis a questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3353, 5 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22564. Acesso em: 26 abr. 2024.

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