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A caracterização do atentado terrorista em aeronaves e a incidência da responsabilidade do Estado brasileiro

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10/09/2012 às 15:05
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Aborda-se o tratamento conferido pelo Brasil a eventuais atentados terroristas em aeronaves, a partir da análise de responsabilização estatal conferida pelas Leis nº 10.309/2001 e nº 10.744/2003.

 “O mundo é um lugar perigoso para se viver, não exatamente por causa das pessoas que são más, mas por causa das pessoas que não fazem nada quanto a isso".

Albert Einstein

Resumo: Onze anos após o atentado contra as torres gêmeas de Nova York, o Pentágono e Washington D.C., a questão do terrorismo retoma lugar de destaque na imprensa escrita e de radiodifusão sonora, após a informação da morte de Osama Bin Laden, apontado como responsável pelo ataque de 11 de setembro de 2001, junto com a organização Al Qaeda. Em uma década, as nações do mundo inteiro – principalmente os Estados Unidos da América e países europeus, buscaram cercar-se de todos os meios de proteção, inclusive mediante textos normativos nacionais e internacionais. O objetivo do presente artigo é abordar o tratamento conferido pelo Brasil a eventuais atentados terroristas em aeronaves, a partir da análise de responsabilização estatal conferida pelas leis 10.309/2001 e 10.744/2003.

Palavras-chave: Terrorismo. Atentado Terrorista. Aeronave. Responsabilidade Extracontratual. Estado Brasileiro.

Sumário: 1) Introdução. 2) Do Terrorismo: delimitação conceitual a partir da História. 3) Proteção Internacional contra o Terrorismo. 4) Responsabilidade Extracontratual do Estado. 4.1) Teorias. 5) Responsabilidade por atentado terrorista no Estado Brasileiro. 6) Considerações Finais. 7) Referências.


1 – INTRODUÇÃO:

A questão do terrorismo já encontra certa abordagem no Direito Brasileiro e alienígena no tocante à configuração delituosa e os reflexos deste crime no ordenamento jurídico nacional. Entretanto, o que se busca abordar envolve a responsabilização do Estado Brasileiro em decorrência de atentados terroristas em aeronaves.

A partir de um corte epistemológico serão evidenciados os conceitos de “terror” e “terrorismo”, em razão dos quais se engendrou um conjunto normativo nacional e internacionalmente, a fim de conferir proteção jurídica.

Inserto no Direito Administrativo, o tema da responsabilidade civil extracontratual do Estado pode ser vislumbrado desde os seus primórdios com a ideia da irresponsabilidade estatal até a construção da teoria do risco administrativo, expoente da ideia de responsabilidade objetiva.

Conquanto se tenha por finalidade neste estudo a abordagem específica da responsabilização do Estado Brasileiro em decorrência de atentados terroristas em aeronaves, far-se-á, brevemente, uma exposição da evolução doutrinária e jurisprudencial em derredor das teorias de responsabilidade e de seus respectivos elementos caracterizadores.

Apresentadas as teorias de responsabilização estatal, em seu aspecto dogmático, observar-se-á a possibilidade de imputação do dever de reparação a terceiros, pelo Estado Brasileiro, em decorrência de atentados terroristas, atos de guerra e eventos correlatos, indicando-se, oportunamente, os meandros das distinções conceituais entre cada um destes.

Assim, as breves considerações trazidas neste artigo científico intentam a aferição dos conceitos de terrorismo e de responsabilidade civil do Estado, a fim de se conseguir, ao final, a identificação do fundamento de imputação do dever de reparação ao Ente Público em virtude de atos de guerra ou terror.


2 – DO TERRORISMO: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL A PARTIR DA HISTÓRIA:

Segundo o Dicionário Prático da Língua Portuguesa[1], a palavra “terror” encontra várias acepções, quais sejam:

Terror, s.m. 1. Qualidade de terrível. 2. Grave perturbação trazida por perigo imediato, real ou não; medo, pavor. 3. Pessoa ou coisa que aterroriza. 4. Período da Revolução Francesa, compreendido entre 31 de maio de 1793 a 27 de julho de 1794, em que se cometeram muitos morticínios. 5. Regime Político de arbitrariedades.

Assentindo com uma destas expressões, Brant ressalta a origem desta expressão na língua francesa por volta de 1335 (“terreur”), designando, originalmente, “um medo, ou uma ansiedade extrema, correspondendo, com mais freqüência, a uma ameaça vagamente percebida, pouco familiar e largamente imprevisível”.[2]

Diante disto, a doutrina referencia a mudança em sua significação, a partir da Revolução Francesa, admitindo-se o uso de violência política inspirada pelo movimento revolucionário, como mecanismo de favorecer o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade nacional, até que, quando as autoridades revolucionárias abandonaram tal política, o seu executor – Robespierre – é condenado por “terrorismo” e, em seguida, guilhotinado.

Nesse diapasão, é de se considerar que, etimologicamente, a palavra terrorismo, significa, ao mesmo tempo, “sistema de governar por meio de terror”, e o “conjunto de ações violentas contra o poder estabelecido, cometidas por grupos revolucionários” [3].

Historicamente, o primeiro registro de grupo terrorista organizado se deu no ano 6 d.C., formado por um grupo radical de judeus, denominados Sicarii. Segundo Rodrigo Carneiro Gomes, eles eram também conhecidos como “homens de punhal”, “por portarem essa arma branca debaixo de suas vestes, com a qual investiam sobre as suas vítimas”. Nesse sentido, ressaltou como principais eventos o do ano 66, em que foi organizado o primeiro levante contra a ocupação romana e do ano 73, quando o grupo Sicarii comete suicídio coletivo[4].

Segundo Brant, em fins do século XIX, a expressão terrorismo ressurge com nova significação, relacionada com os atos dos anarquistas, “que visavam aterrorizar o Estado incitando a sociedade contra os órgãos estatais, por meio da propaganda”.[5] Neste momento, menciona também o surgimento de grupos na Rússia – os niilistas, responsáveis pelo assassinato do Czar Alexandre II, em 1º de março de 1881. 

Nas lições deste estudioso, “o terrorismo era então utilizado por agrupamentos políticos como um meio de ação cujo objetivo era derrubar o poder vigente em um determinado país”, ou seja, o objetivo se restringia a um ataque contra a ordem interna do Estado no qual atuavam. Dentro da concepção atual, entretanto, o terrorismo internacional só apareceu recentemente, no período entre as duas grandes guerras “[6]·.

Deste breve cotejo histórico, é possível vislumbrar que o terror, como prática legítima, cede espaço à adoção da expressão terrorismo, como sendo o terror abusivamente exercido pelo Estado.

A fim de conferir tratamento internacional à disciplina, a Convenção de Genebra, do ano de 1937, em seu artigo 1º, assim definiu:

Na presente convenção, a expressão ‘atos terroristas’ quer dizer fatos criminosos dirigidos contra um Estado, e cujo objetivo ou natureza é de provocar o terror em pessoas determinadas, em grupos de pessoas ou no público.

Por outro lado, a legislação britânica, através do Terrorism Act 2000, define o terrorismo como sendo

...uma ação ou uma omissão quando o uso ou a ameaça é feito com propósitos políticos, religiosos ou ideológicos e que esta ação ou omissão inclui ‘iter alia’ séria violência contra uma pessoa, sérios danos a uma propriedade ou cria um sério risco à saúde ou segurança do público ou uma parte do público. [7]

Nos Estados Unidos da América, por meio da Seção 901 da Public Law 100-24, de 22 de dezembro de 1987, as atividades terroristas foram definidas como “a organização, o apoio ou a participação em um ostentoso ou indiscriminado ato de violência com extrema indiferença ao risco de causar morte ou sérios danos corporais a um individuo que não esteja envolvido nas hostilidades armadas”.

Extraindo das lições de Brant, calha ainda a consideração acerca da definição do terrorismo na França, tendo-se por base, o artigo 421-1 do Código Penal Francês. Segundo o Direito Francês, qualifica-se por atos de terrorismo, quaisquer atos de violência delimitados como infrações “contra uma empresa individual ou coletiva, tendo por objetivo, perturbar a ordem pública por intimidação ou por terror”. [8]

No âmbito doutrinário, Eric David, afastando a única definição internacional, contemplada pela Convenção de Genebra de 1937, sugere a delimitação do terrorismo como

Todo ato de violência armada que, cometido como um objetivo político, social, filosófico, ideológico ou religioso, viole, dentre as prescrições do direito humanitário, aquelas que proíbem o emprego de meios cruéis e bárbaros, o ataque de alvos sem interesse militar.

Na República Argentina, a definição dos atos de terrorismo aparece, inicialmente, através da Lei 25.241 que, em seu artigo 1º, dispõe:

A los efectos de la presente ley, se consideran hechos de terrorismo las acciones delictivas cometidas por integrantes de asociaciones ilícitas u organizaciones constituídas con el fin de causar alarma o temor, y que se realicen empleando sustancias explosivas, inflamables, armas o en general elementos de elevado poder ofensivo, siempre que sean idôneos para poner em peligro la vida o integridade de un número indeterminado de personas.

Tal legislação, sancionada em 23 de fevereiro de 2000, e promulgada em 15 de março de 2000, vigeu com a redação original ao artigo 1º até o advento da lei Antiterrorista da República Argentina que passou a considerar como atos de terrorismo as condutas delituosas consignadas no artigo 213 do Código Penal Argentino.

Conforme Rodrigo Carneiro Gomes:

o terrorismo – que traduz expressão de uma macrodeliquência capaz de afetar a segurança a integridade e a paz dos cidadãos e das sociedades organizadas – constitui fenômeno criminosos da mais alta gravidade, a que a comunidade internacional não pode permanecer indiferente, eis que o ato terrorista atenta contra as próprias bases em que se apoia o Estado democrático de direito, além de representar ameaça inaceitável às instituições políticas e às liberdades públicas, que autoriza excluí-lo da benignidade de tratamento que a Constituição do Brasil (art. 5º, LII) reservou aos atos configuradores de criminalidade política”(p. 416).

Ao julgar pedido de extradição do chileno Maurício Hernández Norambuena, responsável pelo sequestro do publicitário Washington Olivetto, e já condenado pela Justiça Chilena a duas prisões perpétuas, o Supremo Tribunal Federal, pelo voto do Ministro Celso de Mello, externou posicionamento doutrinário de Luiz Roberto Araújo e Luiz Regis Prado, in “Alguns aspectos das limitações ao direito de extraditar. Revista de Informação Legislativa, v. 76/65-86, 1982:

O ato terrorista pode ser entendido como todo aquele que tem como objetivo produzir terror ou intimidação em determinadas personalidades, em grupos de pessoas ou na população de um Estado, criando perigo comum para a integridade corporal, ou visando atingir a liberdade das pessoas (sequestros mediante emprego de meios cuja natureza cause graves perturbações da ordem ou danos de grande monta. A organização dos Estados Americanos aprovou convenção sobre terrorismo, considerando-o como crime de interesse internacional, independentemente dos fins com que foi praticado. O uso do terror como meio de intimidação tanto pode partir de pessoas que contestem um determinado governo, como do próprio governo, visando atingir os contestadores (terror estatal).

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Sobre a VI Conferência, celebrada em Copenhague (1935), Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho[9] atentam haver sido marca substancial de mudança no tratamento dos atos de terrorismo sobretudo em razão da morte do rei Alexandre I, da Iugolávia, e do Ministro das Relações Exteriores da França, em Marselha, em 1934 (Louis Barthou). “A partir de então, o terrorismo deixa o “sereno ambiente de discussão de juristas” e passa a reclamar firmes iniciativas direcionadas a reprimi-lo”.

Para o terrorismo, os atos não são dirigidos a pessoas específicas mas a todas aquelas que se encontram no local no momento do acontecimento, tendo, como ideia central, a intimidação. As suas características principais são, portanto, o ataque a civis e a finalidade de intimidação.[10]


3 – PROTEÇÃO INTERNACIONAL CONTRA ATOS DE TERRORISMO:

Em 1937, o Comitê para a Repressão Internacional do Terrorismo elaborou dois projetos de Convenção, mas que não chegaram a entrar em vigor, uma vez que somente foram ratificados conjuntamente pela Índia.

Brant[11] esclarece que:

todavia, é somente nos anos 60 que a comunidade internacional frente à multiplicação do número de sequestro de aviões, reata a luta contra o terrorismo internacional, que não fez mais que se confirmar, diversificando-se e se intensificando, explica a conclusão de diversas Convenções internacionais sobre ações terroristas específicas.

Diante destas considerações, pode-se elencar as seguintes convenções:

_ CONVENÇÃO RELATIVA A INFRAÇÕES E A CERTOS ATOS OCORRIDOS A BORDO DE AERONAVES (1963);

_ CONVENÇÃO PARA REPRESSÃO DA CAPTURA ILÍCITA DE AERONAVES (1970);

_CONVENÇÃO PARA A REPRESSÃO DE ATOS ILÍCITOS DIRIGIDOS CONTRA A SEGURANÇA DA AVIAÇÃO CIVIL (1971) E SEU PROTOCOLO PARA A REPRESSÃO DE ATOS ILÍCITOS DE VIOLÊNCIA NOS AEROPORTOS DESTINADOS À AVIAÇÃO CIVIL INTERNACIONAL (1988);

_CONVENÇÃO SOBRE A PREVENÇÃO E A REPRESSÃO DE INFRAÇÕES CONTRA AS PESSOAS QUE GOZAM DE UMA PROTEÇÃO INTERNACIONAL;

_ CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA REPRESSÃO DE ATENTADOS TERRORISTAS COM EXPLOSIVO (1977);

_ CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A REPRESSÃO AO FINANCIAMENTO DO TERRORISMO (1977);

_ CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O TERRORISMO (2005).

Releva considerar que, após os atentados ocorridos no ano de 1972, em Munique, a Assembleia Geral das Nações Unidas que, por sua Resolução 3.034 (XXVII), adotada em 18 de dezembro de 1972, tentou estudar a questão do terrorismo internacional, sem, contudo, lograr grandes êxitos. Em vias de verificação da inefetividade das declarações e tratados internacionais antiterroristas, Kofi Annan chegou a declarar, após os atentados 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington D.C., que:

É evidente que (as 12 convenções e Protocolos relativos ao terrorismo internacional), mesmo uma vez aplicadas, não serão suficientes para pôr termo ao terrorismo, mas fazem parte do quadro jurídico que exige este esforço (...) Será necessário, igualmente, chegar  um acordo para uma Convenção Global sobre o terrorismo internacional[12].

Jorge Miranda[13], in “Os Direitos fundamentais perante o terrorismo” apud Brant, 2003, p. 66, esclarece que o direito português, seguindo a linha da criminalização do terrorismo, fez constar no Código Penal Português (art. 300):

grupos, organização ou associação terrorista todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, atuando concertadamente, visem a prejudicar a integridade ou a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um ato, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral, mediante a prática de crimes.

Na atualidade, a configuração dos atos de terror em aviões ou em derredor deles parece retratar cenas cinematográficas, tanto do ponto de vista operacional quanto pela sua repercussão. A bordo de aeronaves, diversas nacionalidades estão representadas e, por isso, o atentado terrorista ganha visibilidade e comoção mundiais, além de representar grande pressão política. A este respeito, escreve Márcio Garcia que:

A aviação civil internacional tem sido um dos alvos prediletos das atividades terroristas. Isso se dá, de um lado, pela notoriedade que tais ações conseguem colher, sobretudo na mídia; de outro, pela possibilidade de se desestruturar o meio de transporte mais rápido e eficiente que temos a nosso dispor, para não mencionar sua relativa vulnerabilidade. A conjugação desses motivos tem estimulado a realização de atentados que, de tal ou qual modo, se vinculam à navegação aérea [14].

Antes, contudo, de adentrarmos na análise específica da responsabilização decorrente da navegação aérea e dos atentados terroristas ocorridos por esta via, vejamos, as hipóteses de incidência de responsabilidade ao Estado.


4 – DA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO:

Preliminarmente, cuida-se de esclarecer, na esteira do entendimento doutrinário, a opção pela adoção da terminologia “responsabilidade civil extracontratual do Estado”[15]. Com efeito, a matéria que se pretende abordar pertine a situações alheias ao âmbito negocial da Administração Pública – daí porque extracontratual, capazes de ensejar a reparabilidade do dano mediante pagamento de indenização.

Observe-se que a opção terminológica acaba por delimitar o aspecto de abordagem, retirando desta análise as violações decorrentes da condição contratual que, por vezes, vincula o Estado. Nesse diapasão, Helena Elias Pinto esclarece:

...parece que melhor se faz a distinção a partir da natureza do direito violado, e não da existência ou ausência do vínculo obrigacional preexistente. Assim, a violação de direitos absolutos (oponíveis ‘erga omnes’) resulta do ilícito absoluto, ensejando a responsabilidade extracontratual; a lesão a direitos relativos (obrigacionais) resulta na responsabilidade contratual.

A este respeito, Irene Patrícia Nohara[16]:

A adoção de responsabilidade pela Administração pode conduzir à indesejada aproximação com a noção de responsabilidade administrativa, conexa com a situação de punição administrativa proveniente da prática de infração funcional ou disciplinar, que é prevista em dispositivo de cada estatuto do “funcionalismo”. A responsabilidade administrativa recai sobre o agente público quando ele pratica ilícito administrativo ou funcional, independentemente de tal fato ter gerado danos a terceiros. Já o Estado será responsabilizado patrimonialmente ou, como preferem outros autores, civilmente, pelos atos que seus agentes praticam que causam danos a terceiros.

Por outro lado, enquanto a expressão “Administração Pública” é multifacetada, ora significando a estrutura direta e indireta da organização administrativa, ora importando no desempenho da própria função administrativa, a palavra “Estado” possui o condão de significar, lato sensu, a personalidade jurídica do Ente Público. Nesse passo, Maria Silvia Zanella Di Pietro:

Trate-se de dano resultante de comportamento do Executivo, Legislativo ou do Judiciário, a responsabilidade é do Estado, pessoa jurídica; por isso é errado falar em responsabilidade da Administração Pública, já que esta não tem personalidade jurídica, não é titular de direitos e obrigações na ordem civil. A capacidade é do Estado e das pessoas jurídicas públicas ou privadas que o representam no exercício de parcela de atribuições estatais. A responsabilidade é sempre civil, ou seja, de ordem pecuniária.[17]

Malgrado se haja consagrado a terminologia “responsabilidade civil”, calha a consideração de que, hodiernamente, os princípios aplicáveis não se referem ao Direito Civil, mas sim ao Direito Público. Com efeito, ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo, ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem, a pessoas determinadas, ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.

A responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos.

4.1. TEORIAS:

A abordagem da responsabilização civil do Estado tem sido realizada, ao longo do tempo, de diversas formas, desde a absoluta irresponsabilidade governamental pelos danos causados a terceiros até a consagração hodierna da responsabilidade objetiva, constante, inclusive, em dispositivo expresso da Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 37§6º).

A primeira teoria a ser considerada, portanto, é a TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE, baseada na ideia de soberania, em razão de que qualquer responsabilidade atribuída ao Estado significaria coloca-lo no mesmo nível que o súdito em desrespeito à sua soberania.

A adoção da teoria da irresponsabilidade do Estado decorre da compreensão dos princípios “the king can do not wrong” (o rei não pode errar) e “quod principi placuit habet legis vigorem” (o que agrada o príncipe tem força de lei), presentes na época dos Estados Absolutistas.

Segundo José dos Santos Carvalho Filho, a adoção desta teoria era condizente com as condições da metade do século XIX. Em seu entendimento, “o denominado Estado Liberal tinha limitada atuação, raramente intervindo nas relações entre particulares, de modo que a doutrina de sua irresponsabilidade constituía mero corolário da figuração política de afastamento e de equivocada isenção que o Poder Público assumia àquela época”.[18]

A doutrina administrativista é uníssona em reconhecer que esta teoria vigorou por pouco tempo, logo sendo combatida diante da compreensão de que o Estado, sendo pessoa jurídica, não pode se furtar em responder pelos danos decorrentes de sua atuação, comissiva ou omissiva.

As teorias civilistas estão apoiadas na ideia de culpa e podem ser repartidas em: 1) Teoria dos atos de império e de gestão e 2) Teoria da culpa civil.

A teoria dos atos de império e de gestão, baseada nos critérios de direito civil (privado), considera a imposição de responsabilidade pelos atos de gestão editados pelo Estado, mas exclui a possibilidade de obrigação decorrente de atos de império. Nos atos de gestão, a atuação do Estado é próxima dos particulares, por isso submete-se ao regime de responsabilização civil; dos atos de império, porém, resulta evidente a soberania do Estado não se sujeitando ao mesmo tratamento.

Por outro lado, no que pertine à teoria da culpa civil ou responsabilidade subjetiva, procura-se equiparar a responsabilidade do Estado à do patrão, ou comitente, pelos atos dos empregados ou prepostos. Assim, a responsabilidade somente decorria da comprovação de culpa.

A responsabilização do Estado a partir de teorias publicistas teve início com o caso Blanco, através do qual se buscava a reparação pelos danos decorrentes do atropelamento da menina Agnes Blanco por uma vagonete da Companhia de Manufatura de Fumo de Bordeaux. Em casos como tais, o fundamento de responsabilidade é objetivo, não importando conhecer a culpa deste, ou de seus agentes, para a produção do resultado danoso.

Por tal via, pode-se indicar a teoria da culpa administrativa, e a teoria do risco, subdivida em risco administrativo e risco integral[19].

Através da teoria da culpa administrativa (ou culpa do serviço), a “falta” do serviço passa a ser suficiente para a responsabilização do Estado. Por falta do serviço, compreendem-se:

· Inexistência propriamente dita do serviço;

·  Mau funcionamento do serviço;

· Retardamento do serviço.

Em qualquer das hipóteses, presume-se a culpa administrativa e há o dever de reparar.

Para a responsabilização na teoria do risco administrativo, basta a ocorrência do dano causado por ato lesivo e injusto, não importando a culpa do Estado ou de seus agentes. Funda-se, portanto, no risco que a atividade administrativa gera necessariamente, sendo seus pressupostos:

·  A existência de um ato ou fato administrativo;

·  A existência de dano;

·  A ausência de culpa da vítima;

·  O nexo de causalidade.

Por fim, no tocante à teoria do risco integral, o Estado sempre seria responsabilizado, não admitindo qualquer forma de exclusão, sempre que verificado prejuízo causado a terceiros por atos ou fatos administrativos. Embora exista controvérsia, parte considerável da doutrina administrativista brasileira considera ser esta a via de responsabilização do Estado em caso de danos nucleares, a teor do disposto no artigo 21, XXIII, “d” da Constituição Federal de 1988[20].

Tratando da distinção entre as teorias do risco, Sérgio Cavalieri Filho[21] escreve que:

Com efeito, a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da Administração, permite ao Estado afastar a sua responsabilidade nos casos de exclusão do nexo causal – fato exclusivo da vítima, caso fortuito, força maior e fato exclusivo de terceiro. O risco administrativo, repita-se, torna o Estado responsável pelos riscos de sua atividade administrativa, e não pela atividade de terceiros ou da própria vítima, e nem, ainda, por fenômenos da Natureza, estranhos à sua atividade. Não significa, portanto, que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular. Se o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, não terá lugar a aplicação da teoria do risco administrativo e, por via de consequência, o Poder Público não poderá ser responsabilizado.

É fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado (baseado no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais) A ideia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. É indiferente que o serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular.

Sinteticamente, são requisitos da responsabilidade objetiva:

·  Que se trate de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos;

·   Que essas entidades prestem serviços públicos, o que exclui as entidades da Administração Indireta que executem atividade econômica de natureza privada;

· Que haja um dano causado a terceiros em decorrência da prestação de serviço público (nexo de causa e efeito);

·  Que o dano seja causado por agentes destas pessoas jurídicas;

·  Que o agente ao causar o dano, aja nessa qualidade.

No Estado Brasileiro, já na Constituição Imperial de 1824, previa-se a responsabilização decorrente de atos comissivos e omissivos de prepostos do Estado (artigo 178, nº 29), previsão que se repetiu na primeira Constituição Republicana, em 1891 (artigo 79). Nesses casos, o fundamento de responsabilidade tinha esteio na culpa civil, circunstância que foi modificada com a inserção do artigo 15 do Código Civil de 1916, in verbis:

Art. 15 – As pessoas jurídicas de Direito Público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando o dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

Atualmente, a disciplina da responsabilidade extracontratual do Estado Brasileiro perpassa, inicialmente, pela redação do artigo 37§6º, donde se vislumbra que:

As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Nesse diapasão, ressalta-se que o fato gerador da responsabilidade não se encontra adstrito à identificação de ilicitude ou não da conduta do agente público, mas tão somente a constatação da ocorrência dos dois elementos: o dano e o nexo de causalidade entre a conduta do preposto do Estado e a lesão ocorrida.

A este respeito, o administrativista argentino Roberto Dromi[22] esclarece que, atualmente, na vigência da concepção objetiva, a responsabilidade extracontratual do Estado prescinde de que os danos sejam decorrentes de um comportamento ilícito, doloso ou culposo, bastando a identificação da conduta de risco e desde que o sujeito lesado não esteja juridicamente obrigado a suportar o dano causado ao seu patrimônio. Em suas palavras,

La antijuridicidad del daño es contemplada en sentido objetivo desde el punto de vista de la posición del sujeto danado, y existirá siempre que el titular del patrimônio danado no tenga el deber jurídico de soportar el daño. La antijuridicidade, como elemento determinante del daño resarcible, es desplazada de la conducta subjetiva del autor material hacia el daño objetivo causado al patrimônio. La CSJN[23] ha dicho que, para reconocer legitimamente um perjuicio sufrido, no es necessário indagar en la existência de pactos subjetivos de atribución de responsabilidade sino que debe estarse a aquél, de naturaliza objetiva, que encuentra fundamento en la garantia irrenunciable para el Estado de amparar elementales derechos de sus integrantes (CSJN, 21/3/95, “Rebesco, Luis M c/ Ministerio del Interior”, JÁ, 1997- I- sintesis)

Na hipótese que se pretende investigar – de responsabilização do Estado em decorrência de atentados terroristas, o dano não se encontra atrelado a uma conduta adotada pelo Ente Público, mas assumida por este em nome do interesse coletivo dentro de uma posição geral de cautela. Assim, para além da reparação decorrente dos atos de seus prepostos, isenta da verificação de culpa, o Estado Brasileiro assume, para si, a responsabilidade de indenizar as vítimas de atentados terroristas. Os fundamentos para tal assunção serão analisados a seguir.

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Sobre a autora
Bartira Pereira Dantas

Doutoranda em ciências jurídicas e sociais pela Universidade Del Museo Social Argentino,especialista em direito pela Escola de magistrados da Bahia- EMAB/UCSAL, Servidora pública do Tribunal de Justiça da BA, professora universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Bartira Pereira. A caracterização do atentado terrorista em aeronaves e a incidência da responsabilidade do Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3358, 10 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22583. Acesso em: 28 mar. 2024.

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