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Sobre o neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios constitucionais

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4. OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS NO PENSAMENTO DE ROBERT ALEXY

Juntamente com o pensamento dworkiniano, a teoria jurídica de Alexy se apresenta como uma das mais influentes dentro do modelo pós-positivista, que tem marcado o novo constitucionalismo. Conforme restará evidenciado, embora a teoria do Direito desenvolvida por Alexy apresente inegáveis pontos de semelhança e aproximação com a obra de Dworkin, inclusive no âmbito da divisão do sistema jurídico em regras e princípios, ambas expressam tanto diferenças formais como substanciais. (ATIENZA, 2001, p. 674)

Alexy (1994, p. 40-41) assenta grande parte de sua teoria dos direitos fundamentais na divisão estrutural entre regras e princípios jurídicos como espécies normativas distintas. Segundo o autor, as regras são normas que se constituem em mandamentos definitivos, sendo que os direitos baseados em regras são direitos definitivos. Diversamente, os princípios são normas que ordenam que algo deva ser feito na maior medida fática e juridicamente possível. Estando as possibilidades jurídicas determinadas por regras e por outros princípios opostos, há exigência de ponderação, sendo que os direitos baseados em princípios não são definitivos e sim prima facie.

A distinção entre regras e princípios jurídicos proposta por Alexy (1993, p. 86-87) abandona o âmbito gradual e avança para aspectos qualitativos. Para o autor, os princípios são normas que ordenam a realização de determinado direito na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, enquanto as regras somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, deve ser cumprida na sua exata medida, nem mais nem menos. As regras contêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possível, ao passo que os princípios são “mandamentos de otimização.”

Afirmar que a medida do cumprimento dos princípios está vinculada às possibilidades jurídicas significa dizer que a aplicação de determinado princípio depende diretamente dos princípios e regras jurídicas àquele contrapostos. Da mesma forma, a vinculação às possibilidades fáticas atesta que o conteúdo dos princípios somente pode ser determinado, a partir do problema prático. Assim, pode-se dizer que os princípios veiculam obrigações prima facie, que podem ser derrogadas por outros princípios em caso de colisão, ao passo que as regras instituem obrigações absolutas, que não podem ser superadas por outras regras, devendo ser cumpridas na sua exata medida.

Pode-se dizer que a distinção entre regras e princípios jurídicos se apresenta como qualitativa ou conceitual. Neste caso, da mesma forma que Dworkin, Alexy rechaça a teoria segundo a qual entre regras e princípios há apenas uma diferenciação gradual, o que equivaleria admitir que os princípios nada mais são que regras com um alto nível de generalidade. (LARRAÑAGA, 1994, p. 221)

O critério gradualista-qualitativo[21] defendido por Alexy consiste em conferir aos princípios o caráter jurídico de mandamentos de otimização, que podem ser cumpridos em diferentes graus, sendo que a medida devida de seu cumprimento depende não só das possibilidades reais, mas também das jurídicas.

Os princípios, normas impositivas de otimização, podem ser realizados ou concretizados em diferentes graus, variando segundo condições fáticas e jurídicas. O mesmo princípio pode apresentar variadas dimensões de aplicação na resolução de problemas práticos. O valor conferido a determinado princípio, em uma dada situação, poderá ser diverso em outra, podendo até, por vezes, ter sua aplicação afastada. Já as regras, normas que prescrevem uma dada situação ou impõem um determinado comportamento, quando válidas, devem ser cumpridas na exata medida de suas prescrições. (ALEXY, 1988, p. 142-43)

Discutindo acerca das dimensões morais do Direito, Aleksander Peczenik distingue regras e princípios de modo em tudo semelhante à teoria de Alexy. Segundo Peczenik (1990, p. 92), uma situação regulada por uma regra somente admite duas possibilidades, obedecê-la ou não. Assim, a ação humana pode ser qualificada como conforme ou contrária à determinada regra, em um caráter binário do tipo 0 ou 1, tudo ou nada. Já os princípios estabelecem um ideal que se pode realizar em diferentes graus, sendo possível a qualificação de uma ação ou pessoa como mais ou menos perfeita à luz de determinados princípios, não no sentido binário e sim gradual.

Essa distinção estrutural fica clara quando da resolução das colisões entre princípios e dos conflitos entre regras, situações em que duas normas, aplicadas independentemente, conduzem a resultados incompatíveis, ou seja, a juízos de dever ser jurídico contraditórios[22]. Enquanto o conflito entre regras se resolve no plano da validade, com a invalidação de uma das regras em conflito ou a introdução de uma cláusula de exceção capaz de solucionar a contradição, a colisão entre princípios se resolve no plano do valor, tendo em vista as circunstâncias do caso, em uma relação de precedência condicionada. (ALEXY, 1994, p. 87-92)

O conceito de princípios como mandamentos de otimização, como traço decisivo para respaldar a distinção entre regras e princípios, não está imune a críticas. Segundo defendem Atienza e Ruiz Manero, nem todos os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus, sendo esta qualidade afeta apenas aos princípios que estes autores definem como diretrizes, com a exclusão dos chamados princípios em sentido estrito[23].

Lançando objeções ao conceito de princípios de Alexy, Prieto Sanchís assevera que a hipótese de colisão total entre princípios, embora pouco corrente, não pode ser integralmente rechaçada. Da mesma forma, as características de mandamento de otimização e máxima da ponderação não cabem exclusivamente aos princípios, mas também para algumas regras que não se apresentam na forma binária, mas sim gradual. Neste sentido, a idéia de mandamento de otimização tem aplicação tanto para os princípios como para as regras, não servindo como critério decisivo de diferenciação. O mandamento de otimização representa antes uma técnica de argumentação, que pode ser útil na aplicação de qualquer standard normativo, e não um critério de diferenciação qualitativa entre regras e princípios. Em última análise, esta diferenciação normativa proposta por Alexy com base na noção de mandamento de otimização parece melhor caracterizar uma distinção funcional que morfológica ou estrutural (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 46-50).

O próprio Alexy apresenta possíveis contestações ao conceito de princípios jurídicos enquanto mandamentos de otimização. A primeira se refere à possível existência de colisões de princípios solucionáveis mediante a declaração de invalidade, como ocorre no conflito entre regras. Entretanto, o autor admite esta possibilidade apenas no caso de princípios marcados por uma extremada debilidade, que não precedem a quaisquer outros em nenhum problema prático.

Outra possível oposição ao conceito de princípios como mandamentos de otimização remete à existência de princípios absolutos, sumamente fortes e capazes de preponderar em todos os casos de colisão. Há que se reconhecer, entretanto, que a existência de princípios absolutos é inconciliável com o próprio conceito de princípios defendido por Alexy, porquanto estes não conheceriam limites jurídicos, mas tão somente fáticos. Ademais, esta idéia não se coaduna com a teoria dos direitos fundamentais, que exige estarem os princípios limitados por questões fáticas e jurídicas.

A última objeção que Alexy enfrenta contra seu conceito de princípios jurídicos se refere à considerável amplitude desta concepção, englobando tanto os direitos individuais como os bens coletivos. Em decorrência de sua fragilidade, esta objeção é pouco combatida pelo autor, que se limita a demonstrar suas divergências com o conceito restritivo defendido por Dworkin, para quem os princípios estariam adstritos aos direitos individuais, enquanto os bens coletivos seriam meras diretrizes políticas[24].


5. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Além das funções apresentadas, cabe destacar a importância dos princípios no processo de justificação jurídica, o papel que desempenham na argumentação jurídica. Essa dimensão por assim dizer justificatória dos princípios jurídicos constitui-se em uma de suas mais relevantes funções dentro da teoria do Direito. Os princípios jurídicos não são apenas parâmetros explicativos do Direito, mas também e, sobretudo, pautas de justificação do discurso jurídico e da decisão judicial.

A dimensão justificatória dos princípios jurídicos é apresentada por Atienza e Ruiz Manero (1991, p. 113-19), que sustentam ser próprio dos princípios o desempenho de duas funções básicas, uma função de explicação e outra de justificação. A função explicativa dos princípios jurídicos refere-se à capacidade destas normas em sintetizar os traços centrais do ordenamento, e dotá-lo de sentido e coerência. Afora a marcante qualidade sintetizadora, exsurge sua aplicação enquanto parâmetro de justificação das decisões judiciais, como verdadeiras pautas de ponderação e conformação da argumentação jurídica.

Conforme defende Prieto Sanchís (1992, p. 163), a utilização do modelo dos princípios como parâmetro de justificação das decisões judiciais, sobretudo quando da resolução dos chamados casos difíceis, deve ser analisada a partir de determinados métodos de interpretação, tais como o critério de universalização, as considerações consequencialistas e a interpretação sistemática.

5.1. Argumentação de princípios e argumentação consequencialista

Afora o critério de universalização, outro forte âmbito de justificação onde a teoria dos princípios desempenha um papel fecundo é a argumentação consequencialista. Consequencialismo aqui entendido como um modelo interpretativo informado pela argumentação teleológica ou finalista, segundo o qual “o ordenamento propõe certos valores ou objetivos políticos e morais que devem ser perseguidos por todos os operadores jurídicos.” (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 170)

A grande restrição feita à aplicação da argumentação consequencialista sustenta sua contraposição à argumentação de princípios, porquanto esta consiste na adoção da melhor decisão baseada em critérios preexistentes e que devem ser aplicados independentemente dos seus resultados, ao passo que aquela é prospectiva e exige uma ponderação acerca dos benefícios políticos e sociais de determinada decisão para o futuro.

O caráter contraditório da relação entre estes dois âmbitos de argumentação é defendido por Dworkin, quando distingue os princípios de justiça em sentido estrito e os princípios políticos, estes vinculados a questões marcadamente utilitárias de bem-estar social da maioria, comprometidos com o maior benefício possível ao maior número de cidadãos. Para Dworkin, a argumentação consequencialista somente pode ser usada no processo de justificação da decisão judicial, após o esgotamento de todos os outros recursos de justificação, quando cabe ao julgador adotar a decisão que, segundo seu juízo, melhor satisfaça os objetivos do ordenamento jurídico.

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Essas críticas à argumentação consequencialista são rechaçadas por Prieto Sanchís, que nega sua contradição com a argumentação de princípios, até porque quando a interpretação é remetida àqueles argumentos não há simples alusão a concepções utilitárias – há sim preocupação com os resultados da decisão judicial, do ponto de vista dos princípios da liberdade das pessoas e do caráter democrático do Estado. No caso da eleição entre diversas interpretações deve-se decidir por aquela que possibilite maiores benefícios à satisfação de certo objetivo proposto pelo ordenamento jurídico[25].

Circunscrito o consequencialismo fora do chamado “utilitarismo do ato” – a análise das consequências de uma decisão em um caso particular e sua avaliação do ponto de vista subjetivo do intérprete sobre o melhor resultado – e adstrito a um modelo de utilitarismo que examina os resultados da decisão sob uma perspectiva geral e conforme ao ordenamento jurídico, parece inegável a relevância da argumentação consequencialista[26]. Se na decisão acerca de determinada situação, a norma prevista constitui uma das possíveis interpretações de alguma disposição jurídica válida, admitindo distintos graus de cumprimento, deve-se adotar aquela decisão que proporcione os melhores resultados, que melhor satisfaça os objetivos do ordenamento, o que implica um cálculo consequencialista.

Não se pode negar a relevante função dos princípios constitucionais na determinação dos fins e objetivos a serem considerados na avaliação prospectiva dos resultados de uma decisão. Os objetivos e finalidades dispostos explícita ou implicitamente no sistema constitucional são veiculados por meio de princípios constitucionais, sendo imperioso que o cálculo consequencialista dos resultados de uma decisão judicial se formule à luz desses parâmetros, quer maximizando sua satisfação quer minimizando sua restrição.

5.2. Argumentação de princípios e interpretação sistemática

O componente principialista também está presente no método de interpretação sistemática. Além do critério de universalização e da argumentação consequencialista, o argumento da exigência de coerência da decisão judicial com o sistema jurídico em seu conjunto, sem sombra de dúvidas, representa uma das mais fecundas aplicações da argumentação de princípios. Aplicação que não se restringe à exigência de adequação ou correção lógica entre uma norma e o conjunto de normas do sistema, espraiando-se à necessidade de adequação teleológica, o ajuste substancial dos significados de uma disposição normativa com o ordenamento jurídico conjuntamente considerado. A interpretação sistemática impõe, portanto, coerência lógica e teleológica das normas aplicadas na decisão judicial.

A interpretação sistemática pode ser dividida em duas formas distintas: primeiramente, a “interpretação sistemática em um sentido estrito”, conforme designada por Alexy (2001, p. 232), com referência à correção lógica das normas no sistema jurídico, a adequação e coerência lógica de uma norma inserta no ordenamento jurídico; afora o argumento sistemático, há o argumento teleológico sistemático, quando a interpretação sistemática é norteada à determinação da coerência material da disposição normativa com os fins dispostos no ordenamento. Neste sentido, pode-se dizer que o Direito é um sistema normativo que corresponde a um projeto racional do legislador, sendo a racionalidade do sistema jurídico uma espécie de diretriz. (CALSAMIGLIA, 1988, p. 96-99)

A junção da interpretação sistemática propriamente dita, ou seja, a correção lógica das normas ao ordenamento normativo, com a interpretação teleológica, a argumentação destinada à aferição da coerência material das normas e a aptidão de seus significados à satisfação dos fins do sistema jurídico, conduz à interpretação principiológica, que determina seja a Constituição aplicada e interpretada como um todo integrado e inseparável, não em partes isoladas e descontextualizadas.

Em sede de uma argumentação principialista, os princípios constitucionais funcionam como razões de correção que permitem justificar – lógica e teleologicamente – uma decisão que aplique ou afaste determinada disposição normativa. A interpretação sistemática possibilita a determinação racional das normas ou grupos de normas que devem ser aplicados na decisão de certo problema prático.

Desta forma, pode-se dizer que “os princípios desempenham uma função essencial na construção do sistema ou, talvez melhor, que as chaves valorativas e axiológicas que definem e dotam de caráter próprio o sistema são justamente os princípios.” (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 183)

 

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Sobre o neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios constitucionais . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3366, 18 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22634. Acesso em: 18 abr. 2024.

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