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O crime de apologia como instrumento de censura

25/09/2012 às 10:08

Resumo:


  • A Constituição brasileira garante o direito de reunião pacífica em locais públicos, sem armas, independentemente de autorização.

  • Decisões judiciais que proíbem manifestações de pensamento antes mesmo de acontecerem violam o princípio da liberdade de expressão.

  • O Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADPF 187, estabeleceu que a defesa da legalização das drogas não pode ser criminalizada no Brasil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Todos têm o direito constitucional de falar o que bem entender, mas poderão ser responsabilizados civil ou criminalmente, posteriormente, caso esta manifestação cause danos ilegítimos a alguém.

“Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”; está lá no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição brasileira. Muitos juízes brasileiros, porém, por conta própria, têm acrescentado logo após o texto constitucional uma objeção: “exceto se for para fazer apologia ao crime, isto é, defender uma mudança na lei da qual eu discorde”. E foi assim que a Marcha da Maconha foi proibida em várias cidades brasileiras, por ordens judiciais prolatadas às vésperas das datas programadas para as passeatas, inviabilizando qualquer possibilidade prática de recurso às instâncias superiores.

Do ponto de vista estritamente jurídico, o fundamento legal destas decisões judiciais é uma excrescência. A censura prévia é expressamente vedada pela Constituição brasileira (art.5º, IX) e a livre manifestação de pensamento é garantida, sendo vedado apenas o anonimato (art.5º, IV). Se a manifestação de pensamento for por qualquer motivo ilícita, deverá ser punida após sua expressão, mas nunca proibida antes de ser realizada. Em suma: todos têm o direito constitucional de falar o que bem entender, mas poderão ser responsabilizados civil ou criminalmente, posteriormente, caso esta manifestação cause danos ilegítimos a alguém.

Na prática, porém, muitos juízes brasileiros arrogaram-se o direito de prever o futuro e proibir manifestações de pensamentos que seus dons premonitórios já constataram que serão ilícitos. Juízes que julgam não fatos do passado, mas o que as pessoas irão dizer no futuro. E as proíbem de dizê-lo.

Muitas das manifestações em prol da legalização da maconha que estavam programadas para ocorrer no Brasil no mês de maio foram proibidas por ordens judiciais fundamentadas na premonição de que se faria apologia às drogas nestes eventos. Em São Paulo, o desembargador Teodomiro Méndez chegou a prever que os manifestantes usariam drogas na manifestação, como pode se ler em sua decisão, datada de 20 de maio de 2011: “O evento que se quer coibir não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha” (sic). Para prevenir que o crime previsto ocorresse, Sua Excelência determinou que fossem oficiados, entre outros, a Polícia Militar para que adotasse “as medidas legais necessárias para coibir a manifestação”.

O que seu viu, porém, na avenida Paulista, no dia 21 de maio de 2011, não foram as fumaças dos cigarros de maconha, mas das bombas do Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo. Muita gente acabou sendo brutalmente agredida por exercer seu direito constitucional de reunião e de manifestação de pensamento. Bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha para calar a multidão e obliterar seus cartazes, bem ao estilo das ditaduras nas quais a única manifestação de pensamento possível é a favorável à ordem vigente. A polícia alegou que a violência foi necessária para cumprir a ordem judicial e combater a apologia às drogas.

Bombas contra crimes de opinião. E a polícia não viu qualquer excesso na ação.


Apologia ao crime

O delito de “apologia ao crime” surgiu na legislação brasileira com o Código Penal de 1940, inspirado no código penal fascista italiano de 1930 (Codice Rocco). Sua redação no art.287 permaneceu inalterada até hoje: “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Um crime claramente incompatível com a liberdade de manifestação de pensamento garantida pela Constituição de 1988 e que, portanto, sequer deveria ser considerado vigente em nosso ordenamento jurídico. Como o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre sua inconstitucionalidade, tem sido usado rotineiramente como fundamento para calar a boca de quem defende mudanças nas leis.

Mesmo juristas conservadores, porém, sempre interpretaram a “apologia ao crime” como um elogio público a um delito específico ocorrido no passado, mas nunca como o elogio a um crime em tese e muito menos a um crime que poderá ser praticado – ou não – no futuro. Assim, seria apologia ao crime afirmar publicamente que “Tião Medonho fez muito bem em usar maconha, já que tem câncer e a maconha ajuda a suportar os efeitos colaterais da quimioterapia”, mas seria perfeitamente lícito afirmar que “o uso da maconha alivia os efeitos colaterais da quimioterapia”. Em suma: a apologia é um crime de opinião, mas de uma opinião sobre um fato, e não sobre uma ideia.

Próximo ao crime de apologia, encontra-se no artigo 286 de Código Penal brasileiro o delito de incitação ao crime: “incitar, publicamente, a prática de crime”. Ao contrário da apologia, a incitação ao crime pune uma manifestação que faz referência a um delito futuro e não passado. É preciso, para que se possa condenar alguém por este delito, que se prove inequivocamente a intenção do agente de incentivar alguém à prática de algum crime. Em sentido muito semelhante à lei de drogas (Lei 11.343/2006) também prevê, em seu art.33, §2º, punição para quem “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”. Não se trata, pois, de um mero delito de opinião, mas de uma inequívoca atuação do agente no sentido de influenciar psicologicamente alguém a cometer o delito. E, obviamente, uma passeata pedindo a alteração de uma lei decididamente não caracterizaria qualquer incentivo à prática de crime, até porque se a lei for alterada, como querem os manifestantes, já não haverá mais um crime, mas uma conduta lícita como outra qualquer. Do contrário, passeatas em defesa da legalização do aborto e da eutanásia também seriam instigações a abortos e eutanásias, o que inviabilizaria qualquer intento por mudanças nas leis criminais.

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Nem os juristas mais conservadores do passado conceberam que os delitos de apologia ou incitação ao crime pudessem ser usados como pretextos para coibir manifestações reivindicando a legalização de uma determinada conduta. Os códigos não são leis estanques e são constantemente atualizados para melhor expressar a realidade social. No passado, os Estados Unidos proibiram a venda de bebidas alcoólicas; hoje proíbem a maconha; amanhã podem proibir o chocolate. O que não se pode proibir é que se reivindique mudanças na lei, sob pena de o Direito tornar-se um mero instrumento de manutenção do status quo.

A liberdade de expressão protege o direito de quem quer se expressar, mas também o direito de quem quer ouvir a expressão do pensamento. Nas felizes palavras de Ronald Dworkin: “O Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas.”

Então seria lícito fazer uma passeata pela descriminalização do homicídio ou do sexo com crianças? Claro que sim! Não deve haver tabus no Estado Democrático de Direito e, se alguém for suficientemente desvairado para propor manifestações neste sentido, tem todo direito de fazê-lo, ainda que seja pouco provável que consiga reunir meia dúzia de adeptos para a causa. Se a manifestação, porém, conseguir agrupar um número considerável de pessoas lutando pela causa é no mínimo razoável que – longe de tentar calá-los – se ouçam seus argumentos para que sejam incorporados à legislação ou simplesmente refutados no ambiente saudável da discussão de ideias. É esta tolerância às opiniões alheias divergentes das nossas que nos distingue das ditaduras.


STF

Para pôr um fim às proibições judiciais das Marchas da Maconha, a então procuradora-geral da República em exercício Deborah Duprat impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de julho de 2009, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187. A relatoria da ação foi encaminhada ao ministro Celso de Mello, que infelizmente não a julgou a tempo de evitar as proibições da Marcha da Maconha em 2011.

Trata-se de uma questão juridicamente simples, e um acórdão da suprema corte brasileira em sentido contrário poderia levar o Brasil a ser julgado e condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que o Pacto de San Jose da Costa Rica garante expressamente no seu art.13 a liberdade de pensamento e expressão.

A decisão do STF, porém, não colocará fim na imaturidade democrática dos muitos juízes brasileiros que creem ser possível calar as ruas com uma caneta. Feliz do povo que pode sair às ruas para contestar suas leis, seus governantes e seus juízes. Os que ainda não têm este direito precisam conquistá-lo. Na corte constitucional ou nas ruas. Canetas togadas ou bombas fardadas podem até calar alguns por algum tempo, mas não poderão calar a todos para sempre.


Nota de atualização (do Editor):

Em 15/6/2011, a ADPF 187 foi julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,  para dar, ao artigo 287 do Código Penal, com efeito vinculante, interpretação conforme à Constituição, "de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos".

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Sobre o autor
Túlio Vianna

Túlio Lima Vianna, Professor de Direito Penal dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2006) e Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001), onde também se bacharelou (1999). Autor dos livros Fundamentos de Direito Penal Informático (Forense, 2003) e Transparência pública, opacidade privada (Revan, 2007), este último com tradução para o espanhol publicada na Argentina (Ad-hoc, 2010). Tem participado como palestrante em dezenas de congressos e seminários nacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, Túlio. O crime de apologia como instrumento de censura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3373, 25 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22684. Acesso em: 21 dez. 2024.

Mais informações

Publicado originalmente na Revista Fórum nº 99.

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