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expressão atribuída a um detento
RESUMO: Na Modernidade Tardia temos visto o recrudescimento das práticas do excepcionalismo em roupagens jurídico-institucionais que procuram agregar maior legitimidade, a partir do medo e do terrorismo social. Há uma tentativa de se associar, fundir técnicas próprias do Estado de Exceção à arena criminal, em especial no sistema judiciário. A segurança pública é equiparada à segurança nacional, num senso comum que retoma teorias e dogmas da Razão de Estado e que querem justificar a aplicação de uma ambivalência jurídica denominada de Direito Penal do Inimigo: como inimigos do Estado, os mitigados da sorte social, em geral, e os encarcerados, em particular, podem ser abatidos com os meios e recursos excepcionais destinados à salvaguarda estatal. Afinal, doravante, os meios justificam os fins – e o bem maior não é a Justiça, mas aquilo que se entenda por Segurança do Estado (travestida no non sense de Segurança Pública). É neste sentido que se pode analisar massacres como do Urso Branco/RO e Carandiru/SP, indicando-se que a ultima ratio se torna a primeira opção, em que o direito à vida é subtraído pela aplicação sistêmica da pena de antecipação da morte. Para efeito didático, o texto está dividido em duas partes: 1) Estado Penal; 2) O Carandiru como volta do coronelismo.
Palavras-chave: Estado Penal; Pena de Antecipação da Morte; Carandiru; Estado de Exceção.
Ao longo da argumentação apontaremos algumas aproximações/relações da tese pós-contratualista do Direito a ter direitos na atual confluência sócio-política e jusfilosófica. O Direito a ter direitos surge como Declaração de Direitos, opondo-se ao absolutismo da determinação dos deveres. Porém, nesta era atual, antagônica e dramaticamente, a luta política pelo Direito a ter direitos tende a invadir esferas da Razão de Estado e, deste modo, sofre retaliações do poderio estatal por meio da escatologia política do Estado Penal.
1ª Parte
Estado de Exceção Permanente e Global
O Estado de Exceção Permanente e Global (Martinez, 2010) alterna força repressiva e ilegalidade com a roupagem do Estado Penal (Santos, 2009). Assim, utiliza-se de todos os meios lícitos, legais, como monopólio do uso legítimo da força física (Weber, 1979) e de outros anti-jurídicos (até imorais) para a contenção e repressão das forças sociais – da repressão social ao encarceramento em massa. Responde a pressões econômicas como ativista do capitalismo dissipativo – em que Estado e capital estão metabolizados e implica uma visão de mundo política hegemônica e imperial (Hobsbawm, 2007).
Uma de suas faces, como meio de contenção social mundial, corresponde ao Estado Penal – marcado pela tipificação em aberto, como cheque assinado em branco. Este tipo penal estatal corresponde à segurança do capital com o recrudescimento das penas e a própria militarização social.
Com o neoliberalismo, a privatização da segurança pública conheceu seu auge. Como doutrina, o Estado Penal equipara segurança pública e segurança nacional: as forças de segurança pública são, efetivamente, forças de segurança do capital. O emprego de forças de repressão mercenária com empresas a exemplo da Blackwater (Scahill, 2008), sem a cobertura e a responsabilização legal de seus crimes, aproxima o Estado de Exceção clássico ou Estado de Sítio político (Marx, 1986) – sob a forma jurídica do Estado de não-direito (Canotilho, 1999) – ao Estado Penal da atualidade, em que a segurança subverte a liberdade. Em nome da segurança do capital, manipula-se o Estado de Direito – a exemplo do Poder de Polícia e que não se limita ao poder de matar – e assim debela-se a liberdade social do cidadão.
O Estado de Exceção clássico corresponde à globalização da força física repressora, sob a forma convertida em Estado de direito (Agamben, 2004). Uma espécie de Estado de Sítio Global, em que as liberdades podem ser cassadas a qualquer momento. A coerção intercala ameaça e força bruta na proteção do capital e no combate à anomia do caos social. A “justiça”, não raramente, troca a balança pelo machado.
Pelo Princípio da Exceção, excepcionalmente, admite-se a suspensão da regularidade e, então, o cotidiano passa a ser regulado de modo que, anteriormente, seria absolutamente irregular, isto é, o irregular é normalizado.
A “normatização” do que é excepcional tem, portanto, dois efeitos paralelos e complementares: a) normatiza-se o uso de meios excepcionais nas relações de poder (Estado); b) “normaliza-se” o sentido de que o ocasional vá se vertendo em forma regular de mediar a vida civil (sociedade).
· “Regularmente, o caso seria visto pelo ângulo dos Princípios da Justiça e da Proporcionalidade; ocorre, todavia, que o caso se volta contra a democracia e os direitos humanos. Portanto, em defesa da vida humana, como valor maior representado pelos direitos humanos, a fim de que não se tolere a intolerância, não se aplica aqui o Princípio da Regularidade”.
De tal modo, passa a ser “normal” – com eficácia e efeito de “normas cotidianas” – o que era basicamente acidental. Torna-se tão normal que a exceção não é mais vista como “anormal”. Normalizar, portanto, significa instituir normas para tornar aceitável como normal o que, até então, era indefinido ou definido como irregular. É assim que se regulariza na vida civil e na ordem política do Estado o que era “anormal”.
· O Princípio da Reciprocidade é a base civilizatória em que repousa o próprio direito internacional humanista ou cosmopolita (Kant, 1990) e seria a salvaguarda jurídico-institucional de manutenção da harmonia entre as várias Razões de Estado. Todavia, como nos consideramos a única superpotência, nos reservamos o direito de agir “preventivamente”, independente da reciprocidade que outros possam julgar necessária ou oportuna.
O Princípio da Exceção excede o limiar do aceitável, mas como é de uso regular, recebe a justificação jurídica necessária. A percepção de que há algo insólito (Camus, s/d) nas relações sociais e políticas vem desse efeito de se justificar o inaceitável. A exceção é tomada como resguardo dos valores da regularidade e da democracia. Desse modo, não há exagero em se afirmar que tanto a Razão de Estado quanto o crime organizado podem se valer do uso corrente dos meios de exceção.
O Estado de Exceção Permanente e Global, sob as vestes do Estado Penal, implica em mudanças e adaptações estruturais, dentro da ordem, para melhor absorver reflexos e implicações de uma crise sistêmica. As adaptações ou mudanças esperadas, controladas têm o intuito de tornar “natural” – para o senso comum – esta crise de civilização.
A “naturalização” dos conflitos políticos convive com a fragilidade da democracia ocidental. A incapacidade de exercer eficazmente o controle social espelha o crescimento da criminalidade. As crises econômicas indicam a desigualdade mundial na distribuição das riquezas.
Há uma versão de mercado que torna as necessidades assunto de Estado, porque a economia alimenta a sociedade de consumo. Esta mesma versão disfarça a incapacidade regulatória do Estado em gerir as demandas locais e globais. Assim, a crise sistêmica pode ser absorvida e explicada como algo rotineiro – até necessário.
Os recursos constitucionais dessa legitimação do uso/abusivo da força são: Estado de Necessidade para questões econômicas e ambientais; Estado de Defesa (em alguns países) a ser aplicado em descontroles sociais localizados, a exemplo de áreas militarizadas por ação do crime organizado; Estado de Sítio para conter guerras civis ou “guerras assimétricas de rua” ou “guerras irregulares”; golpe institucional, com o uso evidentemente político do Estado de Sítio, a exemplo de Honduras, Egito e Paraguai.
Mas, o Estado de Sítio ainda pode ser dividido em basicamente mais dois tipos: a) Estado de Exceção por anexação, como no Iraque, quando o Estado de Sítio é instituído pelas forças de ocupação invasoras; b) Estado de Sítio tradicional, como se vê na maioria dos países afetados pela chamada Primavera Árabe, especialmente Síria e Líbia.
O mais importante a destacar, no entanto, é que a quase totalidade dos países que seguiram a tradição do Estado Moderno – a partir do século XVII -, com a organização política centralizada em torno do território, povo e soberania, dispõe desses pré-requisitos constitucionais de forma latente, permanente.
A senha para serem acionados é (in)justamente a soberania. Na iminência de sua ameaça, tida ou não, contida ou não, todas as formas de contenção podem ser usadas. Em nome de sua soberania é legal, justo, ético, voltar-se o Estado contra seus desafetos. Portanto, o Estado de Exceção é uma atualização da clássica Razão de Estado, quando se invocava a “última razão dos reis” para, supostamente, defender a sociedade. No fundo, é a sociedade agredida pelo Estado, suprimindo-se a “regra da bilateralidade da norma jurídica” imposta pela necessidade da autocontenção do Estado.
Hoje, em nome da segurança e da regularidade – como instâncias “normais”, absolutas da vida moderna – revoga-se a liberdade (Patrioct act) e a própria regularidade (Guantânamo). Aliás, em Guantânamo, suspende-se o próprio direito[3]. Mas, o exemplo mais atualizado do excepcionalismo é o decreto (Decreto de Autorização da Defesa Nacional) assinado pelo presidente Obama em janeiro de 2012 e que, na prática, anula a Constituição dos EUA – a citação é longa, mas em si é explicativa:
Com um debate mínimo na mídia, num momento em que os norte-americanos comemoravam o Ano Novo com os seus mais próximos, o “Decreto de Autorização de Defesa Nacional” HR 1540 (DADN) foi assinado pelo presidente Barack Obama e passou a letra da lei [...] Ele justifica a assinatura do Decreto como um meio de combate ao terrorismo, como parte de uma agenda de combate ao terrorismo. Mas, em termos práticos, qualquer norte-americano que se oponha às políticas do Governo dos EUA pode, de acordo com as disposições do Decreto, ser rotulado de “presumível terrorista” e ficar sob detenção militar [...] O Decreto HR 1540 revoga a Constituição dos EUA [...] A busca da hegemonia militar mundial exige também a “militarização da Pátria”, ou seja, o fim da República norte-americana [...] O Decreto autoriza a detenção militar arbitrária e indefinida de cidadãos norte-americanos [...] Se o quisermos colocar num contexto histórico comparativo, as disposições relevantes do Decreto HR 1540 são, em muitos aspectos, comparáveis aos que constam do “Decreto do Presidente do Reich para a Proteção de Pessoas e do Estado”, vulgarmente conhecido como o “Decreto do Incêndio do Reichstag” (Reichstagsbrandverordnung), promulgado na Alemanha sob a República de Weimar, a 27 de Fevereiro de 1933, pelo presidente (Marechal de Campo) Paul von Hindenburg [...] foi usado para revogar liberdades civis, incluindo o direito de Habeas Corpus [...] “Assim, as restrições à liberdade pessoal, ao direito à livre expressão de opinião, incluindo a liberdade de imprensa, ao direito de associação e reunião, as violações de privacidade das comunicações postais, telegráficas e telefónicas, os mandados de revista domiciliária, as ordens de confisco, bem como as restrições aos direitos de propriedade, são permitidos para além dos limites legais prescritos.” (Art. 1) [...] O decreto do Incêndio do Reichstag foi seguido, em Março de 1933, pela “Lei de Concessão de Plenos Poderes” (Ermächtigungsgesetz) que permitiu (ou concedeu) ao governo nazi do Chanceler Adolf Hitler invocar poderes de facto ditatoriais [...] A assinatura do Decreto HR 1540 e a sua passagem a letra de lei equivale a militarizar a aplicação da lei, a revogação do Decreto Posse Comitatus e a inauguração, em 2012, do Estado Policial nos EUA[4].
Assim, o Estado de Direito corresponde à mera ficção jurídica de que o direito se estende ao conjunto do corpo social, em que incluiria as delimitações do poder político (desenho jurídico do Estado) e a limitação do uso do poder por parte dos governantes (guardiães da soberania).
Não é à toa, portanto, que os defensores do chamado Direito Penal do Inimigo irão retomar os clássicos contratualistas (especialmente o absolutismo) do Estado Moderno: “Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos [...] um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança” (Hobbes, 1983, p. 112-3). Na releitura hobbesina aplicada ao Estado Penal, as ações contra a sociedade são equiparadas aos atentados contra a soberania do Estado:
Hobbes tinha consciência desta situação. Nominalmente, é (também) um teórico do contrato social, mas materialmente é, preferentemente, um filósofo das instituições. Seu contrato de submissão – junto a qual aparece, em igualdade de direito (?) a submissão por meio da violência – não se deve entender tanto como um contrato, mas como uma metáfora de que os (futuros) cidadãos não perturbem o Estado em seu processo de auto-organização [...] Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição: <Pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de natureza [...] E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos (Jahobs & Meliá, 2005, p. 27 – grifos nossos).
O delinquente ou criminoso se vê tratado como inimigo do Estado, porque sua insubmissão namora com o estado de natureza. Diante deste fato, a soberania é uma das mais claras construções da modernidade e o criminoso socialmente reprovável configuraria uma ameaça pública, mas no sentido de política – no fundo, o criminoso é uma ameaça ao status quo e um inimigo político. De todo modo, a fim de se assegurar a integralidade do poder, a indivisibilidade do poder soberano recebe todo o destaque de Hobbes:
Como a grande autoridade é indivisível, e inseparavelmente atribuída ao soberano, há pouco fundamento para a opinião dos que afirmam que os reis soberanos, embora sejam singulis majores com maior poder do que qualquer de seus súditos, são apesar disso univesis minoris com menos poder do que eles todos juntos [...] Mas se por todos juntos os entendem como uma pessoa (pessoa da qual o soberano é portador), nesse caso o poder de todos juntos é o mesmo que o poder do soberano, e mais uma vez a fala é absurda [...] Porque é na soberania que está a fonte da honra (Hobbes, 1983, p. 112-3).
De modo indireto, se assim quisermos, a Razão de Estado de Botero lhe serviu de lastro. Em 1589, Giovanni Botero (1544-1617), com o livro Razão de Estado, protagonizou uma jornada em torno do poder absoluto que perdura até hoje, sob a máxima do poder soberano. Tomando por base o pensamento de Tácito (e não Tito Lívio, como fizera Maquivel), o autor recomendava ao Príncipe ter atenção nas três opções possíveis de poder: fundação, conservação ou ampliação do Estado (Ricciardi, 2005).
A Razão de Estado privilegiava a autoconservação, como se viu na Guerra dos Trinta Anos, em que a dimensão territorial dos Estados esteve em pauta: era mais fácil conservar um Estado com dimensões medianas. Aí já se destacava uma diferença em relação a Maquiavel: o espaço estava fora da alçada da ação de virtude do Príncipe.
O extraordinário se metamorfosearia em ordinário na medida em que o Príncipe se confundisse com o poder. Legitimando-se como o único intérprete e executor da Razão de Estado, o Príncipe se viu promovido (legalmente) a representante do público. Também estava aberto o caminho para a articulação entre o indivíduo e o poder absoluto: a matriz genética do Estado Moderno e o Estado Penal, como seu herdeiro.
A diferenciação entre governados e governantes exigia disciplina e era essencial à paz. Esta disciplinarização acabaria por reconhecer a necessidade de alguma tirania e dominação — a Razão de Estado nasceu da necessidade da unificação das frações políticas. De fato, será privilegiada a luta por autoconservação do poder, porque tanto a aquisição quanto a perda do poder podem se verificar, se houver somente o uso da força. A legitimação jurídica viria mais tarde, na previsão do uso da força excepcional prevista no Estado de Direito – o que Weber (1999) denominou de “monopólio do uso legítimo da força física”, sob a terminologia de Estado Racional.
Sob esta justificativa política, o uso prático do Poder de Polícia mitiga a liberdade e a intimidade – como um Estado de Polícia (Silva, 2003). A quebra do “monopólio do uso legítimo da força física” autoriza o uso de formas até então não legítimas de violência (a tortura e técnica investigativa) e a exceção se torna regra.
O Outro se contorce em “o outro”, suscetível às outras regras – aquelas reservadas pelo poder para agir contra “alguns” (Matos, 2006). Recuperando-se a ética-pagã (Maquiavel, 1979) e a ética protestante capitalista (Weber, 1999), identificam-se os meios válidos (e validáveis) aos fins da Razão de Estado.
Para nós, tudo isso se tornou natural, como se tornou natural a vida sob o Estado Moderno. É natural que o Estado se utilize de todas as regras disponíveis para sobreviver; incluindo o direito de legislar sobre a exceção; tal qual o indivíduo pode/deve agir em legítima defesa. Esta é a conclusão do senso comum, pois não se percebe que, para se defender, o Estado não pode se voltar contra seus defensores.
2ª Parte
Estado Penal: Carandiru e a volta do coronelismo
No Brasil o coronelismo garantia o direito de matar, aliado à ética dos “punhos de renda”. Já se disse que a ética brasileira se resume a uma questão de estilo. É a moral dos punhos de renda. Da combinação da gravata com o lencinho no bolso do paletó. É a lei da compensação dos bem nascidos. O feito não está em roubar, mas em ser larápio sem classe.
Um brasil minúsculo
É preciso esclarecer o subtítulo: “Um brasil minúsculo”. Não há erro quanto à grafia “brasil”, em minúsculo, porque cabe indagar: O que faz o Brasil, brasil?
A resposta não é simples e requer de todos voltar a atenção aos inúmeros aspectos que conformam nossa chamada brasilidade. De saída, vale dizer que o brasil minúsculo é este real e que não queremos.
É o brasil da corrupção, do analfabetismo, da concentração de renda, da miséria extrema, e tantas outras negatividades que impedem o brasil real de se tornar o Brasil que queremos. Para Damatta, a principal razão desta espécie de miséria política é a incapacidade de formularmos uma lógica na ordem da cultura que leve à preservação da coisa pública:
Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta. Aqui, a emoção é englobadora, confundindo-se com o espaço social que está de acordo com ela. Nesses contextos, todos podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também são ‘irmãos’ porque pertencem a uma mesma pátria ou instituição social. Leituras pelo ângulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação (Damatta, 1985, p. 16).
Ironicamente, o povo brasileiro tem o conhecimento necessário acerca da lógica política que deve regular a ordem e a formalidade da vida civil e pública: o que chama de a lógica da “rua”.
Do mesmo modo, também possuiríamos uma lógica que nos permite viver em relativa harmonia quando dentro de quatro paredes, momento de encontro da intimidade familiar com a própria identidade social: este que é o arco cultural que ronda a “casa”. Porém, na prática, mesmo sabedores das diferenças evidentes entre a casa e a rua, diria que acabamos por colonizar o público pelo privado.
Em nosso raciocínio privatizado, o mundo das formalidades, da regularidade, do direito e da burocracia, da garantia da impessoalidade necessária ao âmbito estatal, é simplesmente ocupado e tratado pela lógica familiar.
A lógica da casa - “ao amigo-tudo; ao inimigo-nada”, do jeitinho brasileiro e da não punição aos erros cometidos, do perdão tácito às infrações, da não-condenação dos crimes, posto que “a mãe tudo perdoa” -, invade e leva seus princípios aos domínios do espaço público. Com esta invasão de espírito privatista, ocorre por fim que a coisa pública acaba por ser tratada como bem de família.
O que é o chamado “jeitinho brasileiro” senão a eterna tendência de darmos uma volta descarada na ordem, burlar as regras, transpor a étegras, transpondo a damente na ordem, burlano as tema fica para outro momento.ntia da impessoalidade necessidade, privacidadeica e o direito? O que é esse jeitinho senão o nosso pedido para que algum “amigo” nos trate de forma diferenciada e melhor qualificada, afinal somos amigos ...??
A corrupção, na base da alma que conforma a cultura brasileira, não é nada mais do que isto, uma consequência histórica e endêmica que privatiza tudo o que é público. Alguns diriam que esta é a essência do sistema capitalista, mas esta abordagem do tema fica para outro momento.
Há um antigo ditado do sertão nordestino, reduto dos coronéis, que expressa bem este pensamento. Um coronel responderia a seus interlocutores que insistiam em saber de suas reais forças políticas, mais ou menos assim: “A lei é igual à cerca da fazenda. Se está rígida, passo por baixo. Se está frouxa, passo por cima”. Será que é só o velho coronel quem passa por cima da lei?
Aliás, esta confusão deliberada entre público e privado é mais um indicativo de como sempre estivemos envolvidos com a militarização da segurança pública – coirmã da atual criminalização das relações sociais. Sabe-se que o título de “coronel” atribuído a alguns civis no nordeste brasileiro, devia-se à ausência do Estado na região. Então, o civil guardador do staus quo recebia a patente militar para atuar como se fosse o Estado – exercia o Poder de Polícia, tomava a justiça nas próprias mãos, diante da incompetência pública.
De toda sorte, nossa história social pode/deve ser relembrada a fim de entendermos este fenômeno global de insegurança e que tem como contrapartida a própria militarização da segurança pública. O modelo reflete a atribuição de garantias e recursos à Razão de Estado e não necessariamente à sociedade e ao cidadão[5].
Entretanto, historicamente, no Brasil, houve evolução institucional: do chicote escravocrata, ao cárcere de segurança máxima; do exílio à prisão superlotada; dos mucambos às celas fétidas; do terreiro ou do pelourinho aos muitos Carandirus/SP e Ursos Brancos/RO que ainda resistem; do cortiço à marginalidade social e criminalidade; de favelado a encarcerado; de pobre a criminoso; de escravo ou “sem-nada” a “Sem-Terra” ou “Sem-Teto”, “sem comida”, “sem dignidade”, mas com muita punição e penas severas. Nisto também seguimos o modelo estadunidense, especialmente quanto à contenção dos recursos sociais, antes destinados ao Estado caritativo:
[...] não obstante as desigualdades sociais e a insegurança econômica terem se agravado profundamente no curso dos dois últimos decênios [...], o Estado caritativo americano não parou de diminuir seu campo de intervenção e de comprimir seus modestos orçamentos, a fim de satisfazer a decuplicacão das despesas militares e a redistribuição das riquezas em direção às classes mais abastadas. A tal ponto que a “guerra contra a pobreza” foi substituída por uma guerra contra os pobres, bode expiatório de todos os maiores males do país [...] doravante intimados a assumir a responsabilidade por si próprios, sob pena de se verem atacados por uma saraivada de medidas punitivas e vexatórias destinadas, se não a recolocá-los no caminho certo do emprego precário, pelo menos a minorar suas exigências e, portanto, seu peso fiscal (WACQUANT, 2003, pp. 23- 24).
De fato, historicamente, a única joia que esse povo todo vai ver de perto, usando diuturnamente, exibindo aos seus amigos (inimigos), vizinhos e familiares, são as “pulseiras eletrônicas” como modernização do controle social. Sempre controlados à distância, para melhor reprimir os pequenos delitos (“tolerância zero”), enquanto os grandes delitos continuam sendo tolerados. Os mais vitimados já estão sitiados pela miséria e violência, além de excluídos da Justiça e da paz.
Mas, será que com tanta incerteza, inquietações, meias-respostas, verdades oportunistas, ainda precisamos de mais “força”? Será que precisamos de mais violência, repressão, tratamento de choque e perseguições? Ou seria mais razoável para enfrentar essa “crise social” (chamada eufemisticamente “guerras assimétricas das ruas”) pensar em paz, educação, responsabilidade social, igualdade de oportunidades?
Essa maximização do Direito Penal revela-se extremamente onerosa para o Estado e para a sociedade. A onerosidade social se dá quando ocorre a transferência de verbas públicas – cada vez mais utilizadas na repressão à criminalidade –, mas que poderiam ser alocadas para suprir gastos com programas sociais, garantindo direitos sociais elementares para os cidadãos e consequentemente minorando as práticas delituosas. Um exemplo concreto disso pode ser constatado na cidade de São Paulo, mais especificamente no Bairro Jardim Elisa Maria, zona norte da capital, quando da implantação de programas sociais com o objetivo precípuo de combater a violência criminal e seu avanço.
Este programa de ação integrada de cidadania, chamado de Virada Social, contou com a participação de 600 policiais militares da Tropa de Choque da Policia Militar, que em 81 dias de trabalho ajudaram na redução da criminalidade. Assim, a saída se mostrou como mais assistência social e respeito aos direitos sociais e menos repressão/coerção.
No dia 31 de maio, começou a Virada Social propriamente dita, com a saída da Tropa de Choque – o policiamento da área, no entanto, permaneceu reforçado – e a chegada de programas de inclusão social que envolvem 26 secretarias e órgãos públicos estaduais e municipais além de organizações não-governamentais. A ideia, segundo a secretaria, é que o ‘problema da violência não pode ser resolvido somente com a repressão policial; e que a inclusão social é um importante instrumento de segurança pública’ (GODOY, 07/09/2007).
Por outro lado, o ônus estatal tem aumento drástico quando essas verbas são utilizadas em políticas de premissas repressivas e cuja justificativa é a preservação da lei e da ordem, e da segurança dos “cidadãos de bem”. A experiência e a realidade brasileira demonstram que as técnicas e os métodos utilizados como medidas punitivas/repressivas não deram e nem dão respostas positivas ao problema da delinquência, pois, ao contrário, parecem agravá-lo ainda mais.
Investir na coerção/punição acaba por impedir a realização de outros tantos direitos sociais, muito mais fundamentais para as necessidades da população e cuja efetividade – reforce-se – apresentar-se-ia como a mais viável e eficaz alternativa, como política e programa para a redução das práticas tidas como delituosas. André Copetti (2000, p. 73-74) nos alerta que:
[...] é demasiadamente sabido que o custo do delito para o Estado é muito alto, e se a análise deste aspecto levar em consideração os resultados negativos obtidos, atinge patamares estratosféricos. Estes custos para as finanças públicas decorrem da necessária estruturação do Estado para a realização de atividades destinadas à repressão, à investigação, a estudos científicos, à prevenção e, até mesmo, do custo das infrações contra as finanças do Estado. Tem assim, o erário público especificamente, para a execução da lei, para a administração da justiça e para o “tratamento” do delinquente, que aportar recursos para o pagamento dos salários de policiais, do Ministério Público, da magistratura, de ministros, do pessoal administrativo, do pessoal penitenciário, para amortização de prédios públicos, para a aquisição de equipamentos, de instalações ocupadas na prevenção, na administração da justiça e na reabilitação.
Neste sentido, podemos assegurar que não há como combater a criminalidade com a redução da efetividade dos direitos sociais. Assim é que nos chamam a atenção às considerações de Edson Passetti (2004, p. 29): “Os direitos sociais podem ser, comparativamente, sob certas circunstâncias históricas, meios para a contenção de políticas de segregação sociais, encarceramento prisional e um redutor de desequilíbrios sociais, ampliando as práticas de tolerância”.
A substituição do Estado Providência pela maximização do jus puniendi certamente não se afigura como o melhor caminho. Apenas alastra o terror quase que generalizado e a falsa crença de que ao trancafiar e jogar as chaves fora, a sociedade estará protegida dos marginais. “Punir é o verbo que circula entre zunzuns e algaravias e o que contagia as pessoas pelos diversos segmentos sociais” (PASSETTI, 2004, p. 29).
Uma demonstração mais recente do quanto o Estado Penal brasileiro tem crescido, pode ser vista quando se trata da construção de presídios de segurança máxima, um ônus para o Estado e para a sociedade e uma medida repressiva, sem que se saiba quais são seus efeitos positivos mais genéricos.
Não é impossível impedir que celulares – ou armas – cheguem aos presos [...] Eles estão equipados com detectores de metais e têm capacidade para apenas 208 presos – um em cada cela –, vigiados por 250 agentes penitenciários – 60 em cada turno –, ganhando R$ 4 mil por mês. ‘O problema é que os presídios dos Estados não estão devidamente aparelhados, não têm pessoal nem tecnologia’, afirma Kuehne (SANT’ANNA, 18/03/2007 - grifos nossos).
Vê-se que o crescimento carcerário não diminuiu a criminalidade, nem no Brasil e nem nos EUA, que já passaram há muito do um milhão de presos. É de se pensar que só o rigor penal jamais resolverá o problema da assombrosa violência criminal no Brasil, pois associado a isso está o crescimento da miséria que sem dúvida é a maior violência instituída no/pelo Estado. As vozes clamam de todos os lados, a sensação de profunda angústia paira sobre toda a sociedade, gerando medo e descrédito. Para o jurista e professor de filosofia do direito Tercio Sampaio Ferraz Junior:
Mas, em termos práticos, endurecer resolve? O que a gente observa é que a degradação humana, provocada por aquilo que eu chamo de organização do crime, não se corrige com punições altamente rigorosas. Porque o sujeito não se importa muito com isso. Se disser a ele que está condenado à morte, não importa, ele está esperando a morte a todo momento. Então há um equivoco nessa apreciação. O que a gente tem que levar em consideração, e isto é importante, é que as penas estabelecidas, do jeito que a lei prevê, sejam cumpridas (BIANCARELLI, 18/02/2007).
Corrobora com esse pensar outro jurista, o advogado Miguel Reale Junior (03/03/2007), ex-Ministro da Justiça, em considerações acerca da morte do menino João Hélio, ainda no primeiro semestre de 2007: “se mudanças legislativas são necessárias, mais importantes são medidas, as mais diversas, de política criminal de cunho social, rejeitando as reações primárias instintivas que facilmente seduzem do homem simples ao intelectual”.
Todo esse desgaste emocional e atemorizante provocado na sociedade, ainda esconde outro ganho, agora privado, daqueles que lucram, legalmente, com a prática da criminalidade, com serviços prestados ao sistema penitenciário. Estamos falando da privatização de presídios e/ou da terceirização de serviços penitenciários – como é o caso do Brasil, das quentinhas à própria segurança privada –, como principal solução para a contenção de gastos estatais com o aprisionamento, já despontando como um novo ramo de negócio bem sucedido do mercado financeiro.
O crime realmente tornou-se um business altamente lucrativo! É bom frisar que nossos projetos nacionais seguem de perto o modelo estadunidense.