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A disregard doctrine no direito administrativo brasileiro

28/10/2012 às 07:55
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Em qualquer hipótese, judicial ou administrativa, a desconsideração da pessoa jurídica só poderá ocorrer com ampla defesa e contraditório.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objeto do presente estudo é a aplicação, tanto por ato judicial quanto por ato administrativo, do instituto da desconsideração da pessoa jurídica nas hipóteses em que esta é utilizada para trapacear o interesse público.

Inicialmente cumpre fixar que, em decorrência do princípio da autonomia patrimonial de que gozam as pessoas jurídicas, estas possuem patrimônio autônomo em relação aos seus membros. Em outras palavras, a sociedade empresária não responde por dívida dos sócios e vice versa.

Tal atributo outorgado à pessoa jurídica tem o poder de proteger tanto seu patrimônio como o de seus sócios, o que é de suma importância à economia, pois diminui os riscos, aumenta os investimentos e potencializa a garantia de retorno financeiro. Ocorre que, em decorrência da perfídia, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica pode ser utilizada como meio para fraudar direitos de terceiros de boa-fé, denotando, desta forma, o mau uso da sociedade comercial para atos lesivos.

Por esta forma, no intuito de combater comportamentos desonrosos à ordem jurídica, no final do século XIX, na Inglaterra, emergiu a disregard doctrine ou teoria da desconsideração da pessoa jurídica, que consiste no afastamento temporário e episódico da autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que esta for utilizada como meio à fraude e ao abuso de direito.

No Brasil, graças aos esforços doutrinários e jurisprudenciais, a disregard doctrine começou a ser discutida no final da década de 60. Contudo, somente com a promulgação da Lei n. 8.078 de 1.990 (Código de Defesa do Consumidor) a citada teoria ganhou previsão legal expressa no ordenamento pátrio. Em seguida surgiram outras normas no mesmo sentido como, por exemplo, a Lei n. 9.605 de 1.998 que disciplina as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Nesta linha de intelecção, fixada a possibilidade de desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica para, ignorando seus aspectos aparentes, atacar aqueles que estão dirigindo abusivamente o instituo, vislumbra-se a viabilidade deste procedimento nas relações em que o particular embaraça o interesse da Administração Púbica.

Urge destacar que, ainda não há lei federal regulamentando o assunto, motivo pelo qual alguns positivistas defendem a impossibilidade da aplicação da desconsideração da pessoa jurídica no âmbito administrativo. Entretanto, o núcleo básico do princípio da juridicidade, no que se refere ao assunto ora abordado, informa que o administrador público deve se submeter ao direito que, por sua vez, necessita ser instrumentalizado por outros meios além da lei formal, ou seja, além da lei, o princípio da legalidade enunciado no texto constitucional compreende outros princípios (moralidade administrativa, supremacia do interesse público, indisponibilidade do interesse público, dever-poder de agir, eficiência etc.).

Ademais, a desconsideração da pessoa jurídica perante ato lesivo ao Estado é dever imposto à Autoridade Pública que, norteado pela razoabilidade e proporcionalidade, tem de fazer cessar toda conduta lesiva à Administração Púbica potencializando, assim, as mais perfeitas consequências aos interesses comuns da coletividade. Trata-se do princípio do dever-poder que revela a obrigação do agente administrativo em desenvolver suas atividades, em prol da Administração Púbica, da maneira mais eficaz possível. Portanto, lhe resta o cumprimento amplamente diligente e a irrenunciabilidade de suas atribuições legalmente assentadas.

Assim, em meio às prerrogativas pertencentes à Administração Púbica, especialmente o seu poder de autotutela, brota a possibilidade da desconsideração da pessoa jurídica por meio da autoridade pública competente sem a interferência do Poder Judiciário, observando-se, é claro, as peculiaridades que envolvem este ato administrativo, os requisitos de validade, a inafastabilidade do devido processo legal administrativo e o plausível controle judicial a posteriori.

2 APLICAÇÃO DA DISREGARD DOCTRINE NO DIREITO ADMINISTRATIVO

Como visto ao norte, as sociedades empresárias gozam de diversos privilégios, dentre eles a capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações, para que possam atuar no universo jurídico e desenvolver seu papel na economia. De tal modo, estas pessoas jurídicas têm de obedecer a legalidade e cumprir fielmente o seu objeto social, executando, deste modo, o contrato em torno do qual os sócios se juntaram para realizar determinada atividade.

Neste contexto, se determinada pessoa jurídica deliberar contratar com o Poder Público deve estar ciente que terá de submeter a rigorosos preceitos que visam proteger o interesse de toda coletividade avalizando, portanto, os valores éticos. Igualmente, não cabem falcatruas nem manobras arbitrárias por artifícios de seus dirigentes. Portanto, a fraude tem que ser sumariamente ignorada pelo direito, não há de se admitir nenhuma espécie de abuso ou arbitrariedade no uso dos institutos jurídicos.

De acordo com os princípios que conduzem a Administração Púbica e as características e regras que contornam a teoria da desconsideração da pessoa jurídica infere-se que este instituto se adequa luminosamente ao Direito Administrativo.

Este também é o posicionamento de Marcela Capachi Nogueira Soares que, defendendo a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica no Direito Administrativo, escreveu:

Verifica-se que também no âmbito do direito administrativo a aplicação da teoria sob comento torna-se pertinente, sobretudo no que tange à aplicação da penalidade de suspensão temporária de licitar e impedimento de contratar com a administração pública, bem como da declaração de inidoneidade para esses mesmos fins, ante a realidade que ora se apresenta. (SORES, 2008).

É possível que os sócios de uma pessoa jurídica impedida de contratar com o Poder Público em virtude de sanção imposta pela Administração Púbica, em consequência de irregularidade perpetrada, constituam outra sociedade com a finalidade de burlar a penalidade cominada. Neste caso hipotético, se o instituto da disregard não for utilizado a nova pessoa jurídica formada pelos mesmos sócios, objeto social e demais características da antiga, poderá celebrar com a Administração Púbica como se nada tivesse ocorrido, haja vista estar acobertada por uma personalidade autônoma e apta a contratar com o Poder Público.

Os profícuos exemplos apresentados pelo professor Diogenes Gasparini ilustram a possibilidade do uso fraudulento da pessoa jurídica contra a Administração Púbica:

Com efeito, com certa frequência tem-se verificado, por exemplo,           que sócios de determinada empresa não consegue a CND junto ao     INSS, seguramente porque deve a essa instituição previdenciária     enorme quantia e não tem como regularizar tal situação que a          impede, no mais das vezes, de transacionar com a Administração     Púbica, deixam-na inativa e constituem nova empresa. A esta         atribuem o mesmo endereço e objetivos, permitindo-lhe                      utilizar os empregados, bens, equipamentos e instalações pertencentes     à empresa desativada. Com essa sociedade assim mascarada     participam de negócios públicos, fraudando a Constituição Federal         que proíbe a pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios (art. 195, § 3º). (GASPARINI, 2008, p. 134).

Sempre que houver desvio de finalidade no uso da pessoa jurídica em face do interesse público, seja através de fraude, abuso de direito ou até mesmo confusão patrimonial, tem-se a viabilidade da decretação da disregard doctrine. Diante desta conjuntura cabe à Administração Púbica ou ao Ministério Público, nas hipóteses em que lhe é dado atuar no feito, pleitear judicialmente a teoria da desconsideração que, ao suspender a capa protetora da pessoa jurídica (sua personalidade jurídica), possibilita alcançar os sócios ou até mesmo outras sociedades empresárias por estes constituídas.

Com a utilização da disregard doctrine no Direito Administrativo de nada adiantará a criação de uma nova pessoa jurídica com a finalidade de contornar a sanção aplicada pela Administração Púbica, porquanto a punição aplicada se estenderá à novel sociedade que, apesar de se apresentar como pessoa jurídica distinta, factualmente trata-se daquela sociedade anteriormente penalizada pelo Poder Público. Assim, estendem-se os efeitos da punição administrativa à pessoa jurídica que está sendo utilizada de fachada, uma vez que com a aplicação da teoria da desconsideração os impedimentos alcançarão as pessoas dos sócios (GASPARINI, 2008). 

À corroborar este tema, é válido trazer à baila o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia:

A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social,               com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição             a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção       administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações        Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os     efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída. (BRASIL, 2003).

Neste mesmo sentido, apresenta-se, ainda, à colação o escólio do Marcos André Bohler:

Na seara da Administração Pública, a aplicação da doutrina,       tipicamente civilista, da desconsideração da personalidade jurídica pode  ter lugar no fundamental problema das sanções administrativas      impostas no processo de licitação ou mesmo na contratação   administrativa (...) onde a utilização da pessoa jurídica tem como escopo neutralizar os efeitos de uma sanção imposta, caracteriza a utilização abusiva da personalidade autônoma. De fato, o objetivo é            puramente fraudar a lei, ou seja, torná-la ineficaz, contornando o seu espaço de atuação, tornando a sanção totalmente inócua. (BOHLER, 2008).

Além da possibilidade de aplicação da disregard doctrine por meio de decisão judicial, vislumbra-se, igualmente, a decretação deste instituto através de ato administrativo, desde que observadas as peculiaridades e os requisitos específicos deste ato.

Em qualquer hipótese, judicial ou administrativa, a desconsideração da pessoa jurídica só poderá ocorrer se for sob o império do devido processo legal com os desdobramentos da ampla defesa e do contraditório. Ademais, destaca-se a necessidade de uma decisão fundamentada e prolatada por autoridade competente, assegurado o direito recursal e a vedação de excessos por parte da Administração.

2.1DECRETAÇÃO JUDICIAL

De acordo com as regras que regem o processo civil brasileiro são diversos os momentos processuais em que o magistrado, desde que provocado, poderá aplicar a disregard doctrine. Assim, a desconsideração da pessoa jurídica pode ocorrer em um processo autônomo onde se discutiu a aplicação desta teoria, em um processo de execução, em um processo de conhecimento ou até mesmo por meio de um incidente processual, desde, é claro, que estejam presentes os requisitos autorizadores de tal medida (fraude, abuso de direito, confusão patrimonial) e sejam estabelecidos o contraditório e a ampla defesa.

Na lição de Diógenes Gasparini:

O juiz, em razão da provocação de uma das partes ou mesmo do Ministério Público quando lhe cabe intervir, verificando estar demonstrada a fraude ou o abuso de direito praticado pela sociedade contra terceiros, decretará a desconsideração da pessoa jurídica e prescreverá seu exato alcance. (GASPARINI, 2008, p. 140).

O fato é que existe a possibilidade da Administração Púbica buscar o Poder Judiciário para, através da disregard doctrine, vedar o uso fraudulento da pessoa jurídica contra o Poder Público. Aliás, o objetivo deste instituto é justamente ignorar uma realidade jurídica (a personalidade da sociedade empresária) para tutelar interesses lesados pelo mau uso da pessoa jurídica.

Apesar da Administração Púbica poder, diante de determinado caso concreto, decretar a desconsideração episódica da pessoa jurídica, há casos em que a disregard demanda decisão judicial, como, por exemplo, na hipótese em que a Administração não tem a oportunidade de estabelecer o contraditório e a ampla defesa. Também é de se destacar, por oportuno, que a decisão judicial poderá ser revista através do duplo grau de jurisdição, enquanto que a discricionariedade da decisão administrativa ainda poderá ser controlada pelo Poder Judiciário. Este acontecimento pode, diante do caso fático, indicar para a Administração que o meio mais eficiente de se proceder a desconsideração é através do judiciário.

Ressalta-se que, como extensão da ampla defesa, independentemente do meio processual pelo qual se deu a desconsideração da pessoa jurídica deve ser facultado à parte o respectivo recurso judicial legalmente apto a discutir aquela decisão.

2.2 DECRETAÇÃO ADMINISTRATIVA

Diógenes Gasparini (2008) indica duas formas pelas quais a     Administração Púbica toma conhecimento de fatos que, teoricamente, autorizam a decretação da desconsideração da pessoa jurídica. Assim, tem-se a via direta, onde a Administração Púbica tem ciência da conduta maléfica de determinada sociedade empresária de acordo com seus próprios registros e experimentos pretéritos, como no caso de sócios de uma pessoa jurídica inidônea constituírem outra sociedade com os mesmos objetivos e características da anterior e, a via indireta, onde tais fatos chegam à Administração Púbica através de terceiros, como na hipótese de uma denúncia de algum do povo, da imprensa ou do Poder Legislativo.

Nesses casos, tendo em vista a situação abusiva que essa pessoa jurídica se apresenta diante da Administração Púbica, impõe-se ao administrador, como servo da moralidade e do interesse público, a aplicação da disregard doctrine. Nas palavras de Bohler:

Diante de tal situação, deve o administrador promover a retirada do véu que representa a personalidade jurídica e assim revelar o verdadeiro intuito dos membros desta, e conseqüentemente afastá-los do processo licitatório, sempre proporcionando o contraditório e a ampla defesa, em sintonia com uma concepção não autoritária de Administração Pública. (BOHLER, 2008).

Os princípios que norteiam a atividade administrativa, em especial o princípio do dever-poder de agir, do interesse público e da moralidade administrativa, justificam a aplicação da disregard doctrine por ato administrativo, desde que observado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. (GASPARINI, 2008).

O ato administrativo está para o Direito Administrativo, assim como o ato jurídico está para o Direito Civil na consecução, respectivamente, dos direitos e interesses do cidadão e da Administração Púbica. Pelo ato administrativo a Administração Púbica realiza o interesse público, seja no oferecimento de utilidades e comodidades aos administrados, seja na aplicação das sanções. (GASPARINI, 2008, p. 142).

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O art. 116, parágrafo único, do CTN permite que a Administração Fiscal desconsidere a forma jurídica de atos ou negócios praticados com fraude à lei e com clara intenção de sonegação fiscal. Assim, tem-se que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dois elementos constitutivos da obrigação”. (Brasil, 2003).

Já há entendimento no STJ no sentido de se fazer uma analogia entre a aludida regra do CTN e a desconsideração da pessoa jurídica pela Administração Púbica como meio de combate à fraude e ao abuso de direito.

Analogamente, como forma de garantir à Administração Pública um mecanismo eficaz de combate à fraude, é de admitir-se, em homenagem aos Princípios da Moralidade Administrativa e da Indisponibilidade do Interesse Público, possa a Administração desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade constituída em fraude à lei e com abuso de forma, mesmo à margem de previsão legal específica e sem a interveniência do Poder Judiciário, graças à executoriedade dos atos administrativos, desde que, repita-se, tenha sido assegurado ao administrado a mais ampla defesa em processo administrativo regular. (BRASIL, 2003).

Diógenes Gasparini (2008) lembra que, não obstante a fundamentação da teoria da disregard na Administração Púbica sob o manto da legalidade, para a sua decretação por ato administrativo é imperiosa a observância de outra ordem de princípios e determinações legais como, por exemplo, o princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

O devido processo legal é aquele que está em conformidade com o direito. Em outras palavras, é o processo onde são observados os princípios e garantias constitucionais. Trata-se, assim, do devido processo constitucional. Deste modo, impõe-se à Administração Púbica a observância de todos esses mandamentos, desdobrando-se, por esta forma, na obrigatoriedade do devido processo administrativo.

Neste sentido, traz à colação o magistério de Marçal Justen Filho:

O devido processo legal é uma conquista do pensamento jurídico ocidental e retrata a concepção de que a arbitrariedade nas            decisões é restringida através da observância de uma serie           ordenada de formalidades. Essas formalidades visam a comprovar             a presença e o conteúdo dos fatores formadores da convicção do julgador. Além disso, essas formalidades permitem a todos os interessados oportunidade de manifestação (...) Neste ponto, a         perfeita compreensão da disciplina legal exige, mais do que nunca, conjugação com a CF/88. O art. 5º, inc. LV, da Constituição determinou a aplicação do contraditório e da ampla defesa ao processo administrativo. O art. 37 impôs o respeito ao princípio da igualdade no desenvolvimento da atividade administrativa. (JUSTEN FILHO, 1999, p. 85).

2.2.1Devido Processo Administrativo

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LIV, enuncia que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e, em seguida, no inciso LV, do mesmo dispositivo, determina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O ato administrativo possui como condição de forma um prévio procedimento administrativo onde serão observados todos os requisitos para a sua formação e, em consonância com os preceitos constitucionais supracitados, quando este ato atinge a esfera de alguém se torna imprescindível a existência deste processo.

Deste modo, tem-se que o processo administrativo e suas garantias basilares foram resguardados em nível constitucional. Assim, “para a decretação da desconsideração da pessoa jurídica há que existir processo administrativo formal, regular e autônomo, aberto por determinação da autoridade competente”. (GASPARINI, 2008, p. 150).

Na esfera federal o processo administrativo está regulamentado pela Lei n. 9.784/99, onde se vislumbra as principais regras de amparo aos direitos dos administrados e da persecução do interesse público. O art. 2º desta lei estabelece que a Administração Púbica deve obedecer, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Neste sentido, tem-se a doutrina de Marçal Justen Filho:

A Lei de Processo Administrativo torna explícitos princípios cuja incidência deriva diretamente da própria Constituição. Isso produz uma situação muito peculiar. A Lei n. 9.784 disciplina o tem do processo administrativo no âmbito federal. Portanto, poderia dizer-se que o diploma não afetaria as demais órbitas federativas, titulares de competência privativa para dispor sobre o tema em seu próprio âmbito. Ocorre que a Lei n. 9.784 torna evidente certos postulados de natureza constitucional, de observância obrigatória em toda e qualquer atividade administrativa. Logo, os princípios constitucionais explicitados através da Lei n. 9.784 não podem deixar de ser respeitados pelos demais entes federais. (JUSTEN FILHO, 1999, p. 87).

Em relação à autoridade competente para presidir o processo administrativo de desconsideração da pessoa jurídica, por se tratar de um sujeito do ato administrativo, esta autoridade tem que ser um agente público, considerando-se todos que exercem função pública. A fonte da competência se encontra na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional. Contudo, em havendo omissão é possível haver delegação ou avocação, exigindo-se, contudo, a devida justificação. Sobre este ponto, seguem os importantes ensinamentos do professor Diógenes Gasparini:

É evidente que só pode decretar a desconsideração da pessoa jurídica a autoridade que recebeu esta competência da lei, mas se essa for omissa dita atribuição será da maior autoridade hierárquica da entidade interessada em tal medida. A decretação praticada fora desses   parâmetros é nula e pode sujeitar seu autor ao crime de usurpação de função pública, além da responsabilidade administrativa. (GASPARINI, 2008, p. 153).

Celso Antônio Bandeira de Mello, examinado a autoridade do mandamento constitucional que confere o contraditório, a ampla defesa e a recorribilidade nas decisões proferidas em litígios administrativos, delineia a importância do devido processo administrativo nos seguintes termos:

Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal         regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Púbica, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe      oportunidade de contraditório e de ampla defesa, no que se inclui o direito a recorrer das decisões tomadas. Ou seja: a Administração Púbica não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais. (MELLO, 2003, p. 1035).

O processo administrativo configura um instrumento de defesa determinando, consequentemente, a manifestação do administrado. Ademais, além de viabilizar a defesa do particular, o processo administrativo tem o condão de registrar toda a conjuntura, bem como a ocorrência do ato.

Diante da necessidade do devido processo administrativo para a decretação da desconsideração da pessoa jurídica, restou decidido:

A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. (BRASIL, 2003).

Após a instauração do processo administrativo, a pessoa jurídica que se pretende desconsiderar deve ser intimada para que conheça os limites em que está sendo acusada e lhe seja outorgada o direito de defesa com todas as garantias constitucionais e a produção de provas legalmente admitidas, desencadeando, deste modo, a instrução processual administrativa que se findará com a decisão devidamente fundamentada pela autoridade competente. Nas palavras de Diógenes Gasparini:

Encerrada a instrução deve ser dada vista à acusada para sua defesa final. Só então ocorrerão o relatório e a motivada decisão. Se a autoridade for a competente para decidir, o processo administrativo deve ser remetido à que tiver essa atribuição com o devido relatório e a sugestão de decretação da desconsideração ou de arquivamento por falta de provas ou por não ser o caso de aplicação dessa medida ou, ainda, de remessa, se for o caso, para o órgão competente para conhecer os fatos e punir a sociedade denunciada. (GASPARINI, 2008, p. 151).

Ainda quanto a motivação da decisão administrativa, considerada como formalidade necessária para o controle da legalidade do ato, Carlos Ari Sundfeld, citado por Rita Tourinho, advertiu que se trata de um ato da administração que, “como requisito procedimental necessário à validade de qualquer ato administrativo, serve à revelação dos pressupostos de fato ou de direito que autorizaram ou exigiram a atuação administrativa”. (TOURINHO, 2005, p. 140).

 Da decisão proferida no processo administrativo caberá recurso (art. 5º, LV, CF). É o denominado recurso hierárquico uma vez que, em regra, será apreciado pelo superior da autoridade que pronunciou a decisão. Esta decisão também pode ser questionada perante o Poder Judiciário, haja vista a possibilidade do controle judicial do ato administrativo.

Desta forma, fortalecendo a possibilidade de revisão da decisão administrativa pelo Poder Judiciário, tem-se a inteligência do julgado do Superior Tribunal de Justiça:

Ao prejudicado restará sempre aberta a porta do Judiciário, para             que então possa provar, perante um órgão imparcial, a ausência de   fraude à lei ou de abuso de forma, afastando, por conseguinte, a   aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. (BRASIL, 2003).

2.2.2 Contraditório e Ampla Defesa

Consagrados no inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal, estes princípios estão previstos também no art. 2º da Lei n. 9.784 de 1.999 que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Púbica Federal. Deste modo, todas as situações de litígio em que os administrados estiverem sob a égide do poder punitivo estatal, têm-se aplicável estes postulados.

Os princípios do contraditório e da ampla defesa são desdobramentos do devido processo legal. Destarte, observá-los no campo da Administração Púbica é cumprir o mandamento constitucional e reverenciar o devido processo legal administrativo.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2003) expõe que o contraditório decorre da bilateralidade do processo e é inerente ao direito de defesa, exigindo-se a notificação dos atos processuais à parte interessada; a possibilidade de exame das provas constantes do processo; o direito de assistir a inquirição das testemunhas e o direito de apresentar defesa escrita.

Humberto Theodoro Junior, explanando sobre a necessidade de haver esta paridade de tratamento processual, bem como a inadmissibilidade de exceções ao princípio do contraditório, leciona que:

O principal consectário do tratamento igualitário das partes se            realiza através do contraditório, que consiste na necessidade de ouvir a pessoa perante a qual será proferida a decisão, garantindo-lhe o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o                 curso do processo (...) embora os princípios processuais possam       admitir exceções, o do contraditório é absoluto, e deve sempre ser observado, sob pena de nulidade do processo. (THEODORO Jr., 2003, p. 24).

O contraditório e a ampla defesa são de tanta importância no processo administrativo que não podem, sequer, serem adiados sob o fundamento da urgência de uma decisão. A decretação administrativa da disregard só deve ocorrer com a prévia aplicação destes princípios embasadores da ampla defesa e, consequentemente, do devido processo legal administrativo. Assim, quando não puderem ser obedecidos pelo administrador, este resta impedido de aplicar a medida constritiva lhe cabendo, no entanto, valer-se do Poder Judiciário.

Não se cogita da Administração Púbica decretar a desconsideração da pessoa jurídica sem obedecer ao aglomerado de formalidades que compõe o processo administrativo. Ao contrário da decretação judicial que possui as garantias e peculiaridades inerentes ao judiciário como, por exemplo, a imparcialidade, onde se permite a disregard incidentalmente, a decretação administrativa não tem como assegurar o contraditório e a ampla defesa em uma decisão súbita.

Sobre a matéria, têm-se os ensinamentos de Diógenes Gasparini:

Não se tem como assemelhar essas situações àquelas em que o Juiz pode decretar a desconsideração da pessoa jurídica incidentalmente. Aqui a doutrina e a jurisprudência aceitam a desconsideração incidental da pessoa jurídica dada, cremos, a maior solenidade do devido processo judicial e do amplo quadro recursal posto à disposição dos alcançados pelo ato de desconsideração judicial da personalidade jurídica. (GASPARINI, 2008, p. 150).

Ocorre que, além de não ser imparcial, a Administração Púbica não possui a estrutura que o Poder Judiciário tem em postergar a ampla defesa para um momento futuro oportuno, garantindo, ainda, todo um sistema recursal, como ocorre, por exemplo, diante de uma decisão liminar onde os requisitos da disregard saltam aos olhos e a espera da ampla defesa naquele exato momento pode restar na ineficácia do objeto da desconsideração, assim adia-se o contraditório garantindo-se à parte que este ocorrerá. Tal poder não pode ser conferido à Administração Púbica, a qual só pode decretar a desconsideração de uma pessoa jurídica mediante uma religiosa observância da ampla defesa. Caso não seja possível deve a Administração valer-se do judiciário.

Outra não é a preleção do professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Deles decorre, entretanto, que, nos casos em que a urgência demande postergação provisória do contraditório e ampla defesa, a Administração, de regra, não poderá por si mesma tomar as providencias constritivas – e seria inconstitucional lei que a autorizasse -, pois deverá recorrer ao Poder Judiciário, demandando que as determine liminarmente. (MELLO, 2003, p. 106).

Com isto fica fulgente que a autoridade administrativa não poderá decretar a desconsideração da pessoa jurídica incidentalmente ou de outro modo que, devido à urgência e necessidade, não permitam o estabelecimento do contraditório e da ampla defesa. Nestes casos, deve a Administração Púbica requerer a aplicação da disregard doctrine ao Poder Judiciário, o qual tem o arcabouço para decidir liminarmente, suprindo a premente necessidade da Administração em superar determinado ato lesivo a seus interesses.

Fredie Didier, citando Mendonça Júnior, conclui a matéria dizendo que o contraditório é qualificado pela ampla defesa, trata-se de figuras conexas, uma vez que não há contraditório sem ampla defesa nem defesa sem contraditório. Ou seja, o direito de defesa se realiza através do contraditório. “A ampla defesa é direito fundamental de ambas as partes, consistindo no conjunto de meios adequados para o exercício do adequado contraditório. Trata-se do aspecto substancial do contraditório”. (DIDIER Jr., 2006, p. 70).

2.2.3 Decretação do Ato

A decretação administrativa da teoria da disregard doctrine se dar por meio de um procedimento formal, regular e autônomo que se completa com a fundamentada decisão de desconsideração da pessoa jurídica. Esta decisão, que tem de ser prolatada pela autoridade competente (agente público), nada mais é do que um ato administrativo, devendo, portanto, obediência aos seus requisitos de validade.

Para que um ato administrativo seja considerado válido é necessário que ele percorra sua trajetória obedecendo todos os requisitos legais. Os elementos do ato administrativo estão previstos na Lei n. 4.717/65 (Lei de Ação Popular). São eles: sujeito competente, forma, motivo, objeto e finalidade.

Desta forma, a desconsideração da pessoa jurídica decretada pela Administração Púbica que não obedecer tais requisitos é uma determinação inválida, podendo ser anulada tanto pela própria Administração quanto pelo Poder Judiciário.

Neste sentido, tem-se o magistério de Diógenes Gasparini, o qual corrobora o entendimento doutrinário a respeito do tema:

Na esfera administrativa é, induvidosamente, um ato administrativo cuja validade exige a observância dos requisitos: competência, finalidade, forma, motivo, objeto e conteúdo, que dispensam qualquer comentário, pois de frequência obrigatória nos compêndios de Direito Administrativo. Sua forma é escrita. Seu motivo, como antes mencionado, é a circunstancia de fato e de direito que, tendo por base o devido processo administrativo, a autoridade competente leva em conta para decidir sobre a desconsideração ou não da pessoa jurídica ou para determinar outro encaminhamento. (GASPARINI, 2008, p. 153).

Ressalta-se que a própria Administração Pública deve analisar o ato e retirá-lo quando ilegal (princípio da autotutela). Ou seja, não se trata de uma mera faculdade do administrador que tem o dever legal de anular o ato insanável que não preencheu os requisitos de validade.

O Poder Judiciário faz controle de legalidade, trata-se de legalidade em sentido amplo (lei e princípios constitucionais). Deste modo, se um ato não é razoável, proporcional, eficiente, também pode ser retirado através do controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário. Daí a extrema necessidade da decretação administrativa da desconsideração da pessoa jurídica se dá dentro dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Os efeitos da desconsideração da pessoa jurídica limitam-se restritivamente aos mencionados no ato de sua aplicação. Seja para atingir os sócios que se contemplaram com o abuso da personalidade jurídica, seja para alcançar outra pessoa jurídica que utiliza da sua autonomia para encobrir a fraude, as consequências da disregard devem ser delimitadas no ato que a decreta episodicamente naquela situação especifica, restando a personalidade jurídica intacta nas demais relações que assuma, desde que não seja alvo de outra ordem capaz de superar sua personalidade.

O ato administrativo de decretação da disregard doctrine deve ser publicado. Esta publicação tem o efeito de desencadear os prazos recursais administrativos, de interposição de medidas judiciais e de prescrição. (GASPARINI, 2008).

Após a publicação do ato, ainda como desdobramento da ampla defesa, o administrado pode recorrer administrativamente da decisão. Este recurso deve ser dirigido, em regra, ao superior hierárquico da autoridade prolatora. Há, também, a possibilidade de se impugnar judicialmente a decisão, oportunidade em que poderá haver controle deste ato pelo Poder Judiciário.

 
3 CONCLUSÃO

De todo o exposto, infere-se que a natureza da pessoa jurídica é considerada uma realidade técnica, se coadunando assim com a teoria da realidade das instituições jurídicas, vale dizer que sua capacidade e personalidade não são fictícias, são atributos conferidos pelo ordenamento legal lhe tornando sujeito de direitos e obrigações.

Por serem titulares de personalidade própria as pessoas jurídicas possuem direitos e obrigações autônomas em relação aos seus sócios, trata-se do princípio da autonomia patrimonial. Em decorrência deste princípio, tão importante a estes entes de suma relevância social e econômica, vislumbra-se a possibilidade dos sócios utilizarem a capa protetora da sociedade empresária como meio ardiloso objetivando lesar direito de terceiro.

A desconsideração da pessoa jurídica é um meio eficaz de reprimir a fraude perpetrada através do mau uso da sociedade comercial. Nos casos em que houver fraude, abuso de direito ou desvio de função, afasta-se temporariamente a personalidade jurídica da sociedade responsabilizando os sócios pelos atos praticados em nome daquela. Ressalta-se que a disregard doctrine deve estar sempre vinculada aos critérios da eventualidade e da temporariedade.

A doutrina brasileira se vale de duas teorias distintas que delimitam o campo de aplicação da desconsideração da pessoa jurídica, tem-se a teoria maior e a teoria menor da disregard doctrine.

A teoria maior da desconsideração exige determinados requisitos concretos, o juiz somente desconsiderará a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela, não se afastando do caráter episódico e temporal, segundo este não se extingue a personalidade da pessoa jurídica, a desconsideração deve durar até os credores se satisfazerem no patrimônio pessoal dos sócios.

Para a teoria menor basta haver prejuízo dos credores ou até mesmo confusão patrimonial, entre os bens dos sócios e os da sociedade, para dar ensejo à disregard. Tal teoria defende que se vincular a desconsideração da sociedade empresária à existência de fraude ou abuso de direito excluem-se as hipóteses em que os sócios obtêm proveitos da autonomia patrimonial da pessoa jurídica sem incorrer em qualquer ato ilícito. Isto porque, em muitos casos só é possível vislumbrar a conduta ilícita depois do superamento da personalidade jurídica, haja vista que a sociedade objeto da disregard se apresenta em aparente conformidade com a ordem legal. A teoria menor é adotada pela legislação brasileira.

A desconsideração também pode ocorrer na via inversa, responsabilizando a sociedade por obrigação do sócio, neste caso a pessoa jurídica foi utilizada como meio para ocultar o objeto da má-fé. São hipóteses em que os sócios, confiando na autonomia patrimonial da sociedade, desviam seus bens particulares para esta, objetivando assim fraudar direito alheio.

É possível aproveitar-se da personalidade jurídica para fraudar interesses da Administração Púbica. Via de regra, considerando-se as peculiaridades das hipóteses em que o particular se relaciona com a Administração, esta lesão é mais comum no campo licitatório e contratual. Isto não significa, contudo, a inexistência de outras situações em que determinada sociedade empresária pode ser utilizada como meio lesante ao interesse público.

Independente da ocasião, sempre que o instituto da pessoa jurídica for manipulado de má-fé, seja por fraude, abuso de direito ou até mesmo desvio de função contratual, a desconsideração da pessoa jurídica surge como meio eficiente para fazer cessar a lesão contra a Administração Púbica. Inadmitir a disregard doctrine nesses casos seria aceitar que o direito tutelasse o abuso de um instituto jurídico.

A decretação da disregard doctrine nas relações em que a Administração Púbica atua, desde que preenchidos os requisitos autorizadores, está sob a égide da legalidade administrativa proclamada no art. 37 da Carta Federal. Aqui a legalidade ganha o contorno da juridicidade, princípio pelo qual o administrador público deve se submeter ao direito que, por sua vez, deve ser instrumentalizado por outros meios além da lei formal. Deste modo, a inobservância dos princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, constitui afronta ao princípio da legalidade e sujeita o ato administrativo à pena de nulidade.

Destarte, à margem de legislação específica em sentido estrito, os princípios constitucionais da moralidade administrativa, da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do interesse público, do dever-poder de agir, da eficiência, dentre outros, juntamente com o da legalidade (juridicidade), legitima a disregard doctrine no Direito Administrativo.

Ademais, o ato de decretação da despersonalização deve estar dentro dos limites da razoabilidade e da proporcionalidade. Não se deve confundir a possibilidade da desconsideração da pessoa jurídica no âmbito administrativo, como meio de coibir lesões ao interesse público, com a banalização do instituto da autonomia e da capacidade jurídica das pessoas jurídicas. A disregard é medida de exceção e não deve ser utilizada à livre oportunidade do administrador, haja vista os requisitos objetivos para aplicação desta teoria.

Diante da fraude ou do abuso, cabe à Administração Púbica ou ao Ministério Público, quando legalmente legitimado, requerer judicialmente a disregard doctrine que, ignorando a personalidade da pessoa jurídica, possibilita alcançar os sócios ou até mesmo outras sociedades empresárias por estes constituídas.

A doutrina da despersonalização tem como um de seus principais objetivos preservar a integridade da sociedade empresária, uma vez que as condutas lesivas praticadas através da pessoa jurídica comprometem sua função original, desvirtuando-a de seu objeto contratual, de sua finalidade. Deste modo, evidencia-se que a teoria da desconsideração não é uma oposição ao princípio da autonomia patrimonial.

A decretação judicial pode se dá em um processo autônomo onde se discutiu a aplicação da teoria ora estudada, em um processo de execução, em um processo de conhecimento ou até mesmo por meio de um incidente processual.

É possível o emprego da disregard doctrine em decorrência de ação cautelar, podendo, inclusive, ser utilizado os diversos procedimentos cautelares dispostos na legislação vigente. Outrossim, executar exame pericial nos livros comerciais da sociedade mercantil no intuito de fazer um levantamento dos bens e dos ganhos do sócio.

Desde que observadas determinadas peculiaridades, a desconsideração também pode ser decretada pela Administração Púbica sem a interferência do Poder Judiciário.

Como visto, os princípios que norteiam a atividade administrativa justificam a aplicação da disregard doctrine por ato administrativo. Neste caso, deve haver um prévio processo administrativo, presidido por agente público legalmente competente, onde serão observados todos os requisitos para a formação do ato que terá por objeto a desconsideração da pessoa jurídica.

Seja por meio de decisão judicial ou de ato administrativo, a desconsideração só pode ocorrer se obedecido o devido processo legal com os desdobramentos do contraditório, da ampla defesa e do direito recursal, através de decisão fundamentada e prolatada pela autoridade competente.

Por fim, a desconsideração da pessoa jurídica deve atuar somente sobre os atos fraudulentos, ou seja, tem de ser temporária e episódica, não produzindo qualquer efeito nas demais atividades da pessoa jurídica que estejam em conformidade com a ordem legal.

 
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Sobre o autor
Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Ex-Advogado. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de obras jurídicas. Colunista do Canal Ciências Criminais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. A disregard doctrine no direito administrativo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3406, 28 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22864. Acesso em: 24 abr. 2024.

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