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Considerações sobre os abusos na apreensão e perdimento de mercadorias pela Receita Federal do Brasil

24/10/2012 às 14:26
Leia nesta página:

O Fisco interpreta a expressão “em compatibilidade com as circunstâncias de sua viagem” de maneira literal e pretende exercer um controle bastante rigoroso sobre a entrada dos bens pessoais dos viajantes procedentes do exterior.

É cada vez mais frequente o relato de apreensões de bens que compõem a bagagem acompanhada de viajantes procedentes do exterior. Em alguns casos houve um abuso do Fisco na interpretação de algumas normas da Instrução Normativa n. 1.059/2010.

Assim sendo, é importante analisar as normas que disciplinam a isenção de tributos aos bens de uso e consumo pessoal que o viajante procedente do exterior trouxer em sua bagagem acompanhada e apontar os equívocos existentes na legislação aduaneira.


LEGISLAÇÃO

O artigo 33 da Instrução Normativa 1.059/2010 é fundamental para entender a questão:

“Art. 33. O viajante procedente do exterior poderá trazer em sua bagagem acompanhada, com a isenção dos tributos a que se refere o caput do art. 32: I - livros, folhetos, periódicos; II - bens de uso ou consumo pessoal; III - outros bens, observado o disposto nos §§ 1º[ii] a 5º deste artigo, e os limites de valor global de: a) US$ 500.00 (quinhentos dólares dos Estados Unidos da América) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via aérea ou marítima; e b) US$ 300.00 (trezentos dólares dos Estados Unidos da América) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via terrestre, fluvial ou lacustre”.

O conceito de bagagem consta do art. 2º, incs. II, VI e VII da referida Instrução Normativa:

“Art. 2º Para os efeitos desta Instrução Normativa, entende-se por:

II - bagagem: os bens novos ou usados que um viajante, em compatibilidade com as circunstâncias de sua viagem, puder destinar para seu uso ou consumo pessoal, bem como para presentear, sempre que, pela sua quantidade, natureza ou variedade, não permitirem presumir importação ou exportação com fins comerciais ou industriais;”

Para aclarar a questão da isenção tributária de alguns bens e a sujeição de outros à penalidade de perdimento veja-se o seguinte quadro:

Bagagem acompanhada

Mercadoria

Livros, folhetos periódicos (art. 33, inc. I)

Bens de uso ou consumo pessoal (art. 33, inc. II)

Outros bens que não forem de uso ou consumo pessoal e se enquadrarem nos limites estabalecidos no art. 33, inc. III

Outros bens que ultrapassarem os limites impostos no art. 33, inc. III.

Bens que possuírem destinação comercial

Possuem isenção de tributos

Possuem isenção de tributos

Possuem isenção de tributos

Incide tributação especial de 50% sobre o valor excedente ao limite de valor global

Sujeitos à importação regular e à pena de perdimento

Veja-se que os bens de uso ou consumo pessoal possuem isenção de tributos independentemente de seu valor e não se enquadram nos limites estabelecidos no art. 33, inc. III da IN 1.059/2010.

Note-se, também, que apenas os bens que possuírem destinação comercial (mercadorias) estarão sujeitos à aplicação da pena de perdimento. No sentido adotado pelo Regulamento Aduaneiro e demais normas de direito aduaneiro, mercadoria trata-se de produto procedente do exterior que se destina a ser incorporado ao aparelho produtivo nacional, passando a circular economicamente.


O PROBLEMA

Para decidir se o bem se enquadra no conceito de bagagem acompanhada ou de mercadoria existem apenas três parâmetros na já referida instrução normativa: quantidade, natureza ou variedade.

O uso de expressões tendenciosas aliado a uma interpretação excessivamente literal por parte do Fisco é extremamente preocupante. A expressão em compatibilidade com as circunstâncias de sua viagem” está sendo interpretada da seguinte maneira pela Receita Federal do Brasil:

“É comum, principalmente nas fronteiras terrestres, que viajantes dirijam-se ao exterior para efetuar pequenas compras, voltando no mesmo dia. Nessas circunstâncias, em que o viajante sai do País sem a necessidade de pernoite no exterior, muitas vezes sem malas, torna-se compatível com as circunstâncias da viagem, para efeito de enquadramento como bem de uso ou consumo pessoal adquirido no exterior, apenas o vestuário e o material de higiene e toucador necessários ao uso do viajante durante o período’ (disponível em <http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/viajantes/PerguntasRespostas/Default.htm>).

Tarefa das mais difíceis é definir o que é compatível com uma viagem de turismo e o que não é? A norma em debate não diz, deixando ao Fisco grande margem de discricionariedade. A explicação colacionada acima deixa claro que o Fisco interpreta a expressão (“em compatibilidade com as circunstâncias de sua viagem”) de maneira literal e pretende exercer um controle bastante rigoroso sobre a entrada dos bens pessoais dos viajantes procedentes do exterior.

Há um claro indicativo de não é livre a locomoção no território nacional e que as pessoas não podem aqui ingressar ou sair com seus bens sem estarem sujeitas a cometer uma infração fiscal, muito embora a Constituição Federal diga exatamente o contrário.

É ainda mais preocupante a expressão “não permitirem presumir importação ou exportação com fins comerciais ou industriais”. O legislador pecou ao se utilizar de uma fórmula negativa para construir a frase, truncando a sua interpretação. Interpretando-se a expressão literalmente, chegamos à conclusão de que um bem poderá ser enquadrado como mercadoria sempre que assim puder se presumir. É evidente a afronta ao art. 5º, inc. XV da Constituição Federal[i].

Por exemplo, uma máquina fotográfica de alguns milhares de reais pode ser considerada um bem de uso pessoal ou será sempre considerada uma mercadoria por sua natureza e alto valor. Este é o tipo de problema que os conceitos confusos ora apontados acabam gerando e que dependem de posicionamento do Judiciário.

Portanto, como saber se um livro de R$ 10.000,00 ou uma garrafa de vinho de R$ 20.000,00 possuem isenção tributária? Lendo o art. 33 da citada norma o turista pode concluir que seu livro e sua garrafa de vinho possuem isenção e estão desobrigados a serem declarados como bagagem acompanhada, conforme disciplina o art. 3-A da instrução normativa ora estudada[ii].

Qual norma me obriga a declarar como bagagem acompanhada o bem que possuir isenção tributária na declaração de bagagem acompanhada? Nenhuma. E se o turista decidir transportar a tal garrafa de vinho em seu veículo sem a declaração de bagagem acompanhada e seu carro for apreendido com fundamento no art. 688, V do Regulamento Aduaneiro? Haverá margem para a apreensão (abusiva) do veículo graças à tendenciosa redação do art. 2º, II, da IN 1.059/2010 combinada com a péssima redação do art. 688 do Regulamento Aduaneiro.

Tais problemas somente acontecem devido à confusa e parcial legislação aduaneira, de difícil interpretação até mesmo para os especialistas, deixando o cidadão comum exposto aos abusos do Fisco.


CONTROLE JUDICIAL

Mas a falta de limites claros à atuação da Receita Federal do Brasil no controle aduaneiro das bagagens dos turistas pode ser suprida pelo Poder Judiciário, gerado pela tendenciosa e confusa legislação aduaneira.

Cabe ao Poder Judiciário afastar a aplicabilidade de normas arbitrárias, criando o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. Sobre o assunto, é importante citar a lição de Liana Maria Taborda Lima[iii]:

“Não resta dúvida de que, se a norma revelar-se tisnada pelo vício da irrazoabilidade ou desproporcionalidade, configurado está o excesso de poder em que incidiu o Estado, o que compromete a própria função constitucional inerente à atividade de positivação do Direito, pois o princípio da tripartição dos poderes não autoriza ao Estado a aplicação de normas injustas, revestidas de conteúdo arbitrário, que maculem os direitos fundamentais do cidadão, podendo o Judiciário declará-la inconstitucional visando preservar o Estado Democrático de Direito”.

Recentemente o Juiz Federal de Foz do Iguaçu Dr. Diego Viegas Veras decidiu que:

 “De acordo com o artigo 2º, §, 1º, da IN n, 1.059/2010, uma máquina fotográfica é considerada bem de caráter manifestamente pessoal. A par disso, o art. 33, II da referida norma autoriza ao viajante procedente do exterior trazer em sua bagagem acompanhada, bens de uso ou consumo pessoal, com a isenção de tributos. Portanto, a máquina fotográfica apreendida está enquadrada dentre os bens de uso pessoal, nos termos da IN citada, de modo que alcançada pela isenção lá prevista. Cumpre referir, por derradeiro, que referida IN não faz menção a valor máximo em relação aos bens de uso pessoal. Assim, verifica-se a isenção independentemente do valor desses bens” (decisão proferida no processo n. 50048355420114047002).

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No caso acima mencionado o valor da máquina fotográfica era relativamente alto e foi utilizado pelo Fisco para justificar a apreensão do bem, o qual se utilizou das expressões já referidas acima para concluir que o alto valor do bem é um indicativo da intenção do turista em comercializá-lo, pois não seria compatível com as circunstâncias da viagem.

A decisão do Juiz Federal de Foz do Iguaçu Dr. Diego Viegas Veras balizou corretamente o tema e merece aplausos. Trata-se de um precedente importantíssimo e um indicativo de como se devem interpretar as normas aduaneiras que disciplinam a isenção da bagagem acompanhada dos turistas.

Não há qualquer limite de isenção aos bens de uso e consumo pessoal, pois a Instrução Normativa n. 1059/2010 não faz menção a valor máximo de isenção em relação aos bens de uso pessoal. E nem poderia[iv], pois é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

Deve ressaltar que a Instrução Normativa ora citada prevê apenas uma limitação na isenção tributária dos outros bens[v] (art. 33, inc. III), conforme disciplina o § 1º da citada norma. Em outras palavras, os bens de uso e consumo pessoal e os livros e periódicos não se enquadram na cota de U$ 300,00 a que faz jus o viajante que ingressar no Brasil por via terrestre.

Portanto, é importante frisar que os bens de uso e consumo pessoal podem ingressar livremente no território nacional e possuem isenção fiscal independentemente de seu valor, pois não há qualquer limite de isenção  previsto na Instrução Normativa n. 1059/2010 a estes bens.


Notas

[i] “Art. 5º  (...).

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

[ii] Art. 3º-A Estão dispensados de apresentar a Declaração de Bagagem Acompanhada (DBA) de que trata o art. 3º os viajantes que não estiverem obrigados a dirigir-se ao canal “bens a declarar” nos termos do disposto no art. 6º.

[iii] Lima, Liana Maria Taborda. Abuso de poder fiscal. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 25,

ago. 2008. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao025/liana_lima.html>

Acesso em: 09 ago. 2012.

[iv] “MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 53/2008, artigo 9º A bagagem acompanhada de todas as categorias de viajantes está isenta do pagamento de tributos relativamente a: a) roupas e objetos de uso pessoal; e b) livros, folhetos e periódicos”.

[v] Estes outros bens são todos aqueles que não se enquadrarem nos incisos I e II do citado art. 33. Destes outros bens, os que ultrapassarem o valor global de isenção sofrerão uma tributação especial de 50% sobre o valor excedente do valor global de isenção.

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Sobre o autor
Diogo Bianchi Fazolo

Advogado do escritório DBF Advocacia, em Foz do Iguaçu (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAZOLO, Diogo Bianchi. Considerações sobre os abusos na apreensão e perdimento de mercadorias pela Receita Federal do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3402, 24 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22872. Acesso em: 18 abr. 2024.

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