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Busca e apreensão coletiva

03/11/2012 às 15:31
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A busca e apreensão coletiva não encontra amparo no art. 243 do CPP, não sendo admissível exclusivamente como meio de obtenção de provas no processo penal, pois o fim almejado não autoriza a infração à estrita legalidade, o que implica a ilicitude das provas dela decorrentes.

Questão que suscita vivo debate na doutrina refere-se à admissibilidade de expedição de mandados de busca e apreensão coletivos, que abarquem todo um quarteirão, conjunto habitacional, ocupação ou favela, e a compatibilidade de tal procedimento com a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio.

O excelente magistrado paulista Fábio Aguiar Munhoz Soares, após reconhecer ser a majoritária doutrina pátria contrária a medidas desta espécie, sustenta o seu cabimento especialmente contra grupos criminosos, hipóteses nas quais seria admissível a sobreposição “do bem comum a ser alcançado pelo Estado” a direitos e garantias fundamentais do cidadão. Valendo-se de decisão do não menos brilhante juiz de direito Marcelo Matias Pereira, arremata: “Tempos excepcionais exigem medidas também excepcionais, com o intuito de manutenção do Estado democrático de Direito e a ordem pública. Segundo o princípio da proporcionalidade deve o julgador sopesar os bens jurídicos em conflito, no momento de proferir sua decisão. Conforme a melhor doutrina constitucional os direitos individuais não são absolutos, mas sim relativos, tanto é que existem medidas próprias para que sejam os mesmos violados, quando em conflito com interesses maiores, vale dizer coletivos. Assim sendo, o interesse coletivo sempre prepondera sobre o interesse individual, razão pela qual são constitucionalmente previstas as limitações a estes, vale dizer a possibilidade de violação do domicílio, nas hipóteses previstas no art. 5º, inciso XI, da CF (...)”[1].

Apesar do respeito que merecem, todavia, discordamos dos argumentos elencados.

Com efeito, é correta a afirmação de que “tempos excepcionais exigem medidas também excepcionais”, inclusive, se necessário, com a suspensão de garantias constitucionais, conforme previsões dos artigos 136 (estado de defesa) e 137 (estado de sítio) da Constituição Federal.

O reconhecimento da situação de excepcionalidade, decretação de tais estados e suspensão das garantias individuais, no entanto, são privativos do Chefe de Estado e somente são cabíveis nas hipóteses estritamente previstas – inclusive quanto ao procedimento a ser adotado - pela própria Constituição Federal, não cumprindo ao Judiciário, que se trata de seu último guardião, desviar-se da legalidade e usurpar os seus poderes para, ainda que em situações de prática de graves crimes, suprimir as garantias dos cidadãos.

Também é correta a afirmação de que os direitos e garantias individuais não são absolutos, tanto que existem medidas próprias para serem violados.

Mas esta afirmação, ao contrário de fundamentar o cabimento das buscas coletivas, serve apenas a clarear a inexistência de legitimidade da adoção de medida desta natureza para buscar provas de crimes, ainda que graves.

De fato, se os direitos e garantias individuais admitem restrição ou violação diante de uma “medida própria”, evidente que tal medida, para ser preenchida de “propriedade”, deve observar o princípio da legalidade, isto é, estar de acordo com a previsão legal.

Assim, se o art. 243 do CPP dispõe que a busca e apreensão será individualizada – indicação precisa da casa em que será realizada e o nome do proprietário ou morador – esta característica é a que lhe confere propriedade. O desrespeito a esta previsão e a determinação de diligência coletiva, indiscriminada, em determinada região ou conjunto de habitações, por não estar de acordo com o que determina a lei, retira-lhe a propriedade e, em consequência, a legalidade. Os direitos e garantias individuais não são absolutos, mas cabe à lei – nos limites permitidos pela Constituição Federal – a sua relativização e flexibilização[2].

Quanto ao princípio da proporcionalidade, cremos que também não se presta, em regra, a justificar o afastamento ou suspensão de um direito ou garantia individual para a busca de provas de prática de crimes.

O princípio da proporcionalidade, apesar de não se encontrar expressamente positivado na Constituição Federal, tem a sua existência reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência como fruto do Estado democrático de Direito, de seus princípios e garantias fundamentais.

Como sustenta Paulo Bonavides, o princípio da proporcionalidade se caracteriza pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a efeito. Haverá, assim, violação a tal princípio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não forem, por si mesmos, apropriados e/ou quando a desproporção entre meio e fim for particularmente evidente, ou seja, manifesta.[3]

Conforme Willis Santiago, o princípio da proporcionalidade representa dupla garantia: em sentido estrito constitui a necessidade de estabelecimento de uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, ou seja, aquela deve ser a melhor possível juridicamente; compreende, também, os princípios da adequação e exigibilidade ou indispensabilidade, de forma que o meio escolhido deve se prestar a atingir o fim estabelecido e ser exigível, isto é, não haver outro, igualmente eficaz e menos danoso a direitos fundamentais.[4]

Humberto Ávila, ao tratar do tema, explica que a adequação constitui em um exame inerente à proporcionalidade e “exige uma relação empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim”, isto é, a eficácia do meio deve contribuir para a promoção gradual do fim[5]. Prossegue o citado autor que a proporcionalidade também encerra o exame da necessidade, ou seja, a verificação se “os meios alternativos promovem igualmente o fim” e se estes “restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados”.[6] Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito “exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?”[7].

O princípio da proporcionalidade, pois, é um instrumento protetor do cidadão, que visa, entre os meios disponíveis, a opção pelo de menor restrição, e não uma ferramenta legitimadora de lesões e violações extralegais aos direitos fundamentais para a busca de provas no processo penal.

Este o entendimento já adotado pelo Supremo Tribunal Federal:

"Objeção de princípio – em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal – à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou – em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal – pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita” (HC 79.512, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 16-12-99, Plenário, DJ de 16-5-03

"Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: consequente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação." (HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 30-10-01, Primeira Turma, DJ de 14-12-01).

Em uma única hipótese, no entanto, cremos ser admissível a busca e apreensão coletiva: quando, após investigação, elementos apontem para a localização de “cativeiro” de vítima – especialmente, portanto, nos crimes de sequestro - em determinada região, mas não sejam suficientes a indicar, com precisão, o imóvel em que se situa.

Isto porque, neste caso, ao reverso da busca de provas da prática de crimes, o bem jurídico da vítima – liberdade e até mesmo a vida – colocado sob risco encontra-se em patamar superior na escala valorativa em relação àquele de terceiros que nada têm a ver com o crime e que sofrerão a violação pela busca – intimidade, vida privada.

A proporcionalidade, então, nesta hipótese – e somente aqui –, teria plena aplicabilidade, de forma que o grau de restrição aos direitos fundamentais para socorro do ofendido justificaria, excepcionalmente, a busca e apreensão coletiva.

Mas ainda que rejeitado o princípio da proporcionalidade para a adoção da medida, esta encontraria respaldo no princípio da solidariedade, previsto pelo art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, que não tem uma função meramente retórica ou programática.

Como bem observa Maria Celina Bodin de Moraes, a solidariedade, “longe de representar um vago programa político ou algum tipo de retoricismo, estabelece um princípio jurídico inovador em nosso ordenamento, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução das políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação-aplicação do Direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, pelos membros de toda a sociedade”. E prossegue esta autora: “a solidariedade como valor deriva da consciência racional dos interesses em comum, interesses esses que implicam, para cada membro, a obrigação moral de não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito”[8], e poderíamos completar: admitir em favor dos outros o que desejaria que fosse admitido em seu favor em uma situação de similitude[9].

A observância e a concretização do princípio da solidariedade viabilizam o equilíbrio entre pessoa e sociedade, interesses individuais e coletivos e orientam a formulação de um Direito de feição personalista, que logre não incorrer nos excessos do coletivismo – o interesse coletivo sempre prepondera sobre o direito individual, tratando-se o indivíduo de mero apêndice da sociedade – ou do individualismo – a pessoa supera a coletividade e dela pode esperar a resolução de todos os seus problemas, sobrepondo-se o seu ego ao interesse social.

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Com efeito, conforme sustenta Juan Manuel Burgos, a sociedade é um emaranhado de relações que deve estar a serviço das pessoas concretas, não de anônimas forças coletivas. “Porém, a pessoa, de sua parte, não deve ser um mero receptor egoísta dos benefícios que lhe proporcionam essas relações, mas deve pôr seu esforço a serviço dos demais. Este é o núcleo central sobre o qual se funda a doutrina personalista da relação do homem com a sociedade”[10]. O personalismo não se confunde com o individualismo, pois dá prioridade à pessoa – a todas elas e, por isso, põe em relevo a comunidade – e não apenas ao eu individual, o que significa exigir, de cada um, o respeito ao valor singular e inalienável da outra pessoa, bem como ao seu próprio[11], pois o agir centrado apenas em um ego individual, com a exclusão ou menosprezo pelos outros, é incompatível com a vida em comum[12].

Logo, postas estas premissas, podemos afirmar que a busca e apreensão coletiva, tratando-se de procedimento que não encontra amparo no art. 243 do CPP, não é admissível exclusivamente como meio de obtenção de provas no processo penal, pois o fim almejado não autoriza a infração à estrita legalidade, o que implica a ilicitude das provas dela decorrentes; com fulcro no princípio da solidariedade, para a busca e socorro de pessoas vítimas de crimes e para salvaguarda de sua vida e liberdade – valores de igual ou superior hierarquia aos atingidos e estreitamente ligados ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana -, no entanto, deve ser admitida excepcionalmente, pois a dignidade de cada um é problema de todos e, como assevera Marcel Conche: “não posso salvaguardar minha dignidade humana aceitando para outro o que é indigno (...). O discurso moral é o discurso da dignidade do homem como noção ao mesmo tempo individual e universal”[13]. Em tal caso, portanto, tratando-se de medida excepcional justificada – lícita -, as provas eventualmente obtidas encontrariam admissibilidade no processo penal.


Notas

[1] Prova Ilícita no Processo, pp. 103-104.

[2] Como sustentam Roxin, Arzt e Tiedemann, a vinculação formal da prova da verdade – que também se denomina formalismo do processo penal - é uma das seguranças fundamentais do processo penal de um Estado de Direito e corresponde, em certa medida, ao princípio da legalidade penal. Assim como no Direito Penal os tipos penais formalizam e delimitam a justiça, somente um processo penal realizado devidamente, ou seja, formalista, é apropriado para condenar e remover a presunção de inocência. E arrematam, citando o seguinte julgado do Tribunal Supremo Federal alemão, também aplicável ao nosso Direito: “Não é um princípio da lei penal que se tenha que investigar a verdade a qualquer preço. Com efeito, esta opinião jurídica tem como consequência que importantes meios, em determinadas circunstâncias os únicos, para o esclarecimento de fatos puníveis, quedam inservíveis. Sem embargo, isto tem que ser aceito – BGHSt, t. 14, p. 358 (365)” (Introducción al Derecho Penal y al Derecho Processual Penal, pp. 138 e 145).

[3] Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., p. 315.

[4] GUERRA FILHO, Willis Santiago. O princípio da proporcionalidade em direito constitucional e em direito privado no Brasil, disponível em Internet: www.mundojurídico.adv.br, acesso em 22.8.2005.

[5] Teoria dos Princípios, p. 116.

[6] Idem, p. 122.

[7] Idem, p. 124.

[8] O Princípio da Solidaridade. Disponível em internet: http://www.idcivil.com.br/pdf/biblioteca9.pdf, acesso em 21.8.2012.

[9] Trata-se do exercício da empatia, que, em termos gerais, constitui a experiência que um “eu” tem de outro “eu” e de suas vivências (STEIN, Edith. Sobre el Problema de la Empatia, p. 27), o colocar-se no lugar do outro.

[10] El Personalismo, p. 180.

[11] MERTON, Thomas. A Via de Chuang Tzu, p. 26.

[12] SANTORO FILHO, Antonio Carlos. O Sentido de Ser Pessoa, p. 109.

[13] O Fundamento da Moral, p. 85. 

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Sobre o autor
Antonio Carlos Santoro Filho

Juiz de Direito em São Paulo (SP). Pós-graduado em Direito Penal. Autor de livros de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Busca e apreensão coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3412, 3 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22941. Acesso em: 28 mar. 2024.

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