1. Introdução
Atualmente, a existência de uma sociedade de risco é notória, e cada vez mais, a humanidade vem despertando, para consciência de que tal sociedade nada mais é do que resultado do sistema que se sobrepôs ao socialismo no século XX, o capitalismo.
O lucro, dentro do referido sistema, configura-se como objetivo final, não sendo medidos esforços para alcançá-lo. Como resultado, o risco de degradação do meio ambiente torna-se, a cada dia, mais frequente e devastador, tendo-se observado a proliferação desenfreada de diversos danos ambientais, o que traz consigo consequências nefastas e de abrangência até então inimaginável.
O pensamento individualista e a tecnocracia tornaram-se pedras fundamentais da atual civilização. A exploração desmedida tende de forma crescente, ao esgotamento dos recursos naturais. Contudo, há mais de vinte anos, uma força social crescente dia a dia, revela-se frente a esses estados de irreflexão, reinvindicando um novo modelo político de pensar e atuar.
Nesse contexto, Ulrich Beck aduz que tais constatações resultam o fim do pensamento pelo qual se colocava natureza e a sociedade em situação de contraposição. Ou seja, a natureza já não pode ser pensada sem a sociedade, e, reciprocamente, já não pode mais ser concebida a noção de sociedade apartada da natureza.
Diante desse panorama, o Direito Ambiental tem-se consolidado por todo o mundo. Diariamente, são inovados os ordenamentos jurídicos nacionais e pensadas soluções a nível global em resposta às situações de dano, ou risco de dano, cada vez mais presentes no cotidiano de nosso planeta.
Entretanto, há de se distinguir a atuação legislativa, ou mesmo a ação do Poder Executivo, da situação concreta de efetividade da legislação e dos programas implementados, a partir do que se visualiza a necessidade de um despertar de consciência e de uma atuação popular engajada, cujo ponto de partida consiste em uma ética legítima, que emerge e se desenvolve no plano individual e, consequentemente, se reflete no pensar e agir sociopolítico de toda a comunidade.
Isto porque o direito ambiental é a concretização de uma reinvindicação política que tem seu marco nos “chamados Estados do bem estar (welfare state) típicos das sociedades industriais avançadas ou pos-industriais.” Mas o que se constata primeiramente é que “as versões mais acabadas do Estado do bem estar, longe de satisfazer a necessidade do cidadão de gozar dos bens ambientais, a torna impossível. Encontramo-nos assim, com a emergência do direito humano ao meio ambiente, que exige uma mudança radical no modelo atual de Estado.”[1]
A cidadania ambiental planetária, nesse contexto, coloca-se como uma premissa, necessária tanto à provocação, quanto à legitimação das ações tendentes a concretizar o direito humano fundamental ao meio ambiente e, consequentemente, para a efetividade do Direito Ambiental.
2. Cidadania Ambiental: um novo conceito de cidadania
O Conceito de cidadão surgiu na Grécia antiga, sendo a palavra cidadania oriunda do latim, civitas, ou seja, cidade. Esse termo referia-se ao indivíduo que vivia na cidade e ali exercia suas atividades, ou, melhor dizendo, cidadão seria aquela pessoa que convivia em sociedade.
O conceito de cidadão que se conhece atualmente teve sua origem com a Revolução Francesa, devido às profundas mudanças sociais e culturais que surgiram na sociedade ocidental após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quando o contexto de liberdade, igualdade e fraternidade conferiram ao “novo” cidadão o poder de participar democraticamente do espaço público, por meio da representatividade e do processo de elegibilidade política.
Desta feita, a cidadania incorpora todos os efeitos de sua evolução, passando a integrar todos os direitos pleiteados ao largo da história, sejam políticos, civis ou sociais, assim como as obrigações atribuídas ao cidadão pelo Estado.
Notadamente no Estado Democrático de Direito, cidadão é, portanto, o sujeito no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado. A qualidade de cidadão, em termos gerais, é conferida pelo exercício de um conjunto de direitos sociais e políticos, assim como pela existência de uma série de debates que todos devem conhecer e cumprir, e que se relacionam ao sistema de direitos fundamentais consagrado por aquele Estado.
O conceito de cidadania conduz, desta forma, a um tema central: a construção da sociedade humana, a partir da noção de que o conjunto dos seres humanos podem e devem tomar parte ativa no processo de seu próprio desenvolvimento, como indivíduos pensantes, membros de uma comunidade, de uma nação, em suma, como seres humanos responsáveis vinculados a espaços geográficos e processos históricos e culturais, e como cidadãos deste Planeta Terra.[2]
Na seara do Direito Ambiental, a partir da constatação da conversão do conceito de risco ambiental em dano efetivo, o que restou comprovado com as últimas catástrofes ambientais, surgiu a necessidade de uma especialização do conceito de cidadania. Desta feita, há que se exigir uma cidadania modificada, já que sem ela não há como se defender da realidade atual.[3] É sobretudo neste contexto que se verifica a emergência do nascimento de uma cidadania ambiental.
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA define o cidadão ambiental como um “cidadão crítico e consciente que compreende, se interessa, reclama e exige seus direitos ambientais e que, por sua vez, está disposto a exercer sua própria responsabilidade ambiental”. Segundo o referido Programa, o conceito de cidadania ambiental parte dos direitos e responsabilidades de cada ator social frente ao meio ambiente, assim como das noções básicas contidas no conceito de cidadão: a igualdade e a participação.[4]
Sobre este tema, não se pode deixar de citar Andrew Dobson, que apresenta os conceitos de cidadania ambiental e cidadania ecológica, os quais acredita ser complementares. A primeira idéia seria a cidadania em si mesma, em seu molde tradicional, contemplando, para além, direitos ambientais, cujo exercício limita-se à esfera pública, que fora modelado pelo Estado-nação.[5]
Quanto à cidadania ecológica, Dobson a conceitua como uma cidadania focada na sustentabilidade ambiental e, portanto, baseada na noção de virtude cívica, considerando-se o interesse dos demais e o bem comum. Ou seja, essa cidadania caracteriza-se por ser desterritorializada, (pois as consequências dos danos ambientais não respeitam territórios), e estaria fundamentada mais em deveres do que em direitos, a exigir uma postura mais ativa do cidadão.[6]
Eloísa Tréllez Solís esclarece que a cidadania ambiental configura-se quando ocorre “por meio de alguns elementos, entre eles os direitos a vida, ao desenvolvimento sustentável, ao ambiente sano, os deveres ambientais e a participação real para defender os direitos e levar a prática aos deveres ambientais. Então ela se configura quando em um marco ético e de responsabilidade forma cidadãos para participar diretamente no processo de gestão ambiental, em defesa do patrimônio natural e cultural, em defesa da vida e ainda mais, quando realizam-se atividade de participação efetiva da cidadania nestes processos.[7]
A cidadania ambiental pode ser configurada por meio de alguns elementos, entre eles os direitos: a vida, ao desenvolvimento sustentável, ao ambiente sano, os deveres ambientais e a participação real para defender os direitos e levar à prática os deveres. Então, ela configura-se quando se criam, reforçam ou promovem mecanismos e instrumentos efetivos de participação cidadã para o exercício dos direitos e deveres ambientais, e quando em um marco ético e de responsabilidade forma os cidadãos para participar diretamente no processo de gestão ambiental, em defesa do patrimônio natural e cultural, em defesa da vida, e mais ainda, quando se realizam atividades de participação efetiva da cidadania nestes processos.[8]
Seguindo-se ou não as definições de Dobson, o certo é que, indiferentemente do nome que adotemos, a cidadania ambiental ou ecológica, global ou planetária, conforme abalizada doutrina, tem como exegese a atenção local aos temas globais ambientais.
Isto porque a cidadania ambiental é mais abrangente e não está circunscrita espacialmente a determinado território, ou ligada a um determinado povo oriundo da significação clássica de nação, tendo como objetivo comum a proteção intercomunitária do bem difuso ambiental, o que alarga os conceitos de cidadania clássica. [9] O cidadão global sai da mera posição retórica para a ação real.
Esta cidadania tem por base os princípios gerais da cidadania nacional, dos direitos e obrigações dos cidadãos de um país ou de uma nação, mas, em certo sentido, vai mais além dos direitos e obrigações políticos, sociais e econômicos, e mais além, ainda, dos limites da soberania nacional. Um conceito real de cidadania ambiental enfatizaria os direitos e obrigações para com o meio ambiente, e considera a obrigação de preservar os recursos naturais e cuidar dos ecossistemas e minimizar os impactos ambientais devidos à contaminação. Partindo-se dessa perspectiva, a cidadania ambiental global significa preocupar-se com o meio ambiente, independentemente da nacionalidade do indivíduo. [10]
São, portanto, características da cidadania global o fato de que esta se inicia a nível local, e então eleva seu âmbito de ação para abarcar assuntos mais amplos, em nível global. A ação cidadã assume espaço nos assuntos cujo âmbito transcende os limites locais e que são de preocupação geral, tais como eliminação de minas, os direitos das minorias e as questões relacionadas ao livre comércio, temas que integram um núcleo temático que ultrapassa fronteiras territoriais.
A esse respeito, explica Pacheco que a urgência de se atender de maneira imediata a uma série de problemas ambientais resultou na emergência da sociedade civil internacional como uma força importante na luta pelo desenvolvimento sustentável. Dada a escassez de recursos e a abundância de assuntos ambientais que requerem soluções, assim como a resistência de muitos países em resolver a problemática do manejo sustentável dos recursos e a proteção dos ecossistemas, a sociedade civil está buscando novas formas de organização, que permitam incidir de maneira mais eficaz na arena da política ambiental internacional, a fim de realizar os ideais de proteção dos ecossistemas de maneira mais efetiva. [11]
Este fenômeno também tem dado origem a um crescimento acelerado do número e tipo de ONG’s que dedicam seus esforços aos assuntos ambientais. Estas organizações formam redes transnacionais, com diferentes graus de coesão, que tem por objetivo influir na política ambiental tanto em escala nacional como em escala internacional (global).
Nesse contexto, a humanidade está se agrupando em Organizações não Governamentais – ONG’s, tendo como um de seus objetivos a tentativa de influenciar a elaboração das políticas, principalmente as ambientais.
Sem dúvida, pertencer a essas organizações não garante a mesma homogeneidade nas visões individuais sobre a melhor maneira de responder aos problemas da proteção ambiental, contudo, possibilita a criação de uma identidade comum e o compartilhamento de um conjunto de valores e premissas. Esse processo consiste justamente em uma das etapas prévias à plena formação da cidadania global e da cidadania ambiental global. [12]
Além disso, a mera existência de grupos organizados da sociedade civil não garante a participação desses nas decisões de negociações ambientais internacionais, a formação de coalizões, sem dúvida, é parte importante e primordial do processo de “cidadanização” da política ambiental. E, é nesse contexto, que se retoma a discussão acerca da relevância da noção de cidadania ambiental global.
Dessa feita, e como já se disse, o conceito de cidadania ambiental ultrapassa o conceito convencional de cidadania, vez que não trata de estabelecer somente direitos, trazendo também em seu âmago os deveres desses novos cidadãos, os quais acompanham os problemas advindos da questão ambiental contemporânea e da atual sociedade de riscos. Ademais, tampouco está a cidadania ambiental adstrita à esfera pública, podendo e devendo ser exercida na esfera privada, nas indústrias, nos lares, etc. Muito menos está restrita a um Estado-nação, visto que as obrigações assumidas pelos cidadãos ambientais não estão dirigidas ao seu país de origem, nem mesmo ao momento em que vive, alcançando o futuro, bem como as gerações que lhe integrarão.
É fato que a sociedade civil, hodiernamente, possui papel indispensável na modificação do sistema, por meio da adoção de comportamentos coorporativos mais amigáveis ao ambiente, mediante uma forma emergente de regulação civil, por meio de coalizões, ou outras ações que visem estabelecer ideais de comportamento corporativo que sejam responsáveis e sustentáveis.
A idéia de cidadania ambiental, para além, possui como característica a aquisição de um melhor conhecimento acerca do meio ambiente e a utilização dessa informação e conhecimento como ferramenta para uma ação ambiental cidadã responsável, tanto individual como coletiva. Além disso, passa pela percepção da evolução da vida em sociedade, que se propõe a valorizar o conteúdo da relação político-social entre indivíduos e grupos, na perspectiva de construir um novo pacto social no qual o ambiente seja um fator básico a preservar, e assim assegurar a sobrevivência da própria sociedade.
De fato, conforme observado, vive-se em uma sociedade de risco, sujeita a catástrofes em escala planetária e que, de maneira geral, minimamente exerce uma cidadania solidária e participativa, quando se leva em conta a exigência de proteção de um bem que pertence a todos de forma difusa, e não no seu viés individualista e tradicional.
Dessa forma, verifica-se que a cidadania ambiental, na era da sociedade de risco, deve ser exercida em termos planetários, transfronteiriços e exige uma participação compartilhada do Estado e dos cidadãos na consecução dos seus novos fins de promoção das responsabilidades difusas com o ambiente, sendo fundamental pensar como cidadão do mundo e assumir as obrigações éticas que vinculam a sociedade aos recursos naturais do planeta.
3. A Importância da Cidadania Ambiental na construção e consolidação do Direto Ambiental
Com a intensificação do comércio internacional, bem como das políticas de globalização, que culminaram em maciça destruição do meio ambiente, a humanidade passou a se preocupar com a questão ambiental de uma forma mais concreta. A natureza alertou a sociedade sobre a necessidade do homem parar de explorar ostensivamente os recursos naturais, e se conscientizar de que não precisa proteger a natureza por si, e sim para que possa garantir a própria sobrevivência de sua raça.
Em uma digressão histórica, tem-se que, a partir da Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, em julho de 1972, que elevou o meio ambiente a um direito fundamental do ser humano, reconheceu-se, do ponto de vista internacional, o direito do ser humano a um bem jurídico fundamental, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a qualidade de vida, com uma preocupação focada não apenas nas presentes gerações, mas também nas gerações futuras.
Estas mudanças são paulatinas e ainda estão longe do ideal a ser alcançado. Nos últimos anos, tem-se ampliado ostensivamente os esforços para se alcançar que a comunidade internacional relacione coletivamente quanto aos desafios ambientais, mas os resultados efetivos seguem sendo escassos. A sociedade está caminhando para um nível de compromisso, isto é certo, mas falta saber se com a celeridade e a intensidade que os problemas ambientais requerem.[13]
O que ocorreu fora uma verdadeira proclamação do Direito Ambiental como um direito intergeracional de participação solidária que extrapola, em seu alcance, o direito nacional de cada Estado soberano, e atinge um patamar intercomunitário, caracterizando-se como um direito que assiste a toda humanidade.
Desta forma, o Direito Ambiental passou ideologicamente a reger o Direito Internacional, pois a consciência dos problemas globais têm impulsionado a adoção de uma grande quantidade de instrumentos de diversos aspectos, inspirados em um princípio que poderia formular-se como “pensar globalmente e atuar localmente”.[14]
Neste momento, surge o que se chama de Estado ambiental, que se poderia definir como a forma de Estado que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável, orientado na busca da igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural. A esse respeito, afirma Canotilho que, atualmente, o Estado de Direito só é Estado de Direito, de fato, se for protetor do ambiente e garantidor do direito ao meio ambiente. [15]
Ademais, não é excesso reiterar que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, coroado ao artigo 225 de nossa Norma Ápice insere-se na categoria dos direitos humanos da solidariedade ou de terceira dimensão, na festejada classificação dos direitos humanos.
A categoria dos direitos humanos da solidariedade, ou da terceira geração, tem sua origem científica na classificação dos direitos humanos. Os novos direitos humanos ou direitos da solidariedade recebem este nome, pois procedem de certa concepção da vida em comunidade, e somente se podem realizar pela conjunção dos esforços de todos os que participam da vida social. [16]
A esse respeito, Paulo Bonavides leciona que os direitos de terceira geração assentam-se sobre a fraternidade, e são dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, não se destinando especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado, mas tendo primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta[17].
Entre os direitos de terceira dimensão, ressalte-se que Norberto Bobbio, à introdução de sua aclamada obra “A Era dos Direitos”, situa como mais importante aquele direito reivindicado pelos movimentos ecológicos, que consiste no direito de viver em um ambiente não poluído[18].
Nesse contexto, pode-se noticiar que o presidente da Assembleia Geral da ONU em 2008 e 2009, Miguel D'Escoto, após consulta a um vasto número de personalidades e chefes de Estado, decidiu-se por reformular um projeto de Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, texto esse que complementará a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e será divulgado na Conferência Internacional sobre o Clima prevista para abril deste ano, em Cochabamba, Bolívia.[19]
Destarte, tendo-se em vista que a proteção do meio ambiente depende de que se progrida na governabilidade do bem ambiental, estabelecendo o Planeta como âmbito territorial de jurisdição, a progressiva evolução pela qual passou e passa o Direito Ambiental, bem como o grau de efetividade que urge seja alcançado pelos instrumentos de proteção ao meio ambiente estão umbilicalmente relacionados à noção de cidadania ambiental planetária, que impulsiona e legitima as movimentações relativas ao progresso da ciência e da prática relativa ao bem ambiental, notadamente enquanto materialização do princípio da solidariedade, noção em que se fundamenta tanto o Direito Ambiental, quanto todo o conjunto de direitos difusos.