Pouco tempo atrás (atrevo-me a citar a Constituição de 1988 como marco temporal), presenciávamos com triste frequência a exploração de mão de obra pelas empresas, que contratavam sem a devida anotação na CTPS e oferecendo salários miseráveis e jornadas exaustivas. Tal conduta feria, frontalmente, os preceitos legais do nosso ordenamento, até então regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Contudo, graças ao rigor legal e efetividade nas fiscalizações dessas atividades abusivas, nossa sociedade atual é amparada por um dos sistemas de proteção das relações de trabalho mais rigoroso do mundo.
A Constituição Federal de 1988 dedicou lugar de destaque (inserido no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais) em seu artigo 7º, para tratar dos direitos dos Trabalhadores, tornando indiscutíveis, no âmbito jurídico, várias questões de garantia desses direitos. A exemplo, temos o direito a percepção de salário nunca inferior ao mínimo, o direito ao repouso semanal remunerado e tantos outros que ainda não tinham o devido respeito.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), datada de 1943, hoje funciona paralelamente à Constituição Federal quando o assunto é a proteção do trabalhador.
No entanto, hoje, os empregados se aproveitam da lei para manipular a relação contratual, omitindo sua carteira de trabalho, objetivando um litígio trabalhista no futuro. Ainda que ingresse com uma reclamação sem qualquer fundamento, lhe é garantida uma possibilidade de acordo judicial na qual receberá o dobro ou mesmo dez vezes mais o que lhe era devido por direito.
O fato é que não mais vivemos naquela sociedade dividida onde, de um lado tem-se o grande empresário, detentor do capital, e do outro o “Zé ninguém”, pouco esclarecido, sem formação e desprovido de renda. Nossa sociedade expressa a ascensão da classe média, onde as diferenças sociais estão cada vez mais atenuadas. Presenciamos a multiplicação das micro e pequenas empresas, cujo capital é menor, a mão-de-obra é menor, no entanto, o trabalho e as dívidas são quase que equivalentes às empresas de grande porte.
Dessa forma, a imagem do empregador mais frequente nos dias de hoje aproxima-se muito mais a de um colega de trabalho do que a de um patrão autoritário. E esse novo modelo de “patrão” permite-se, pela ausência de recursos, muitas vezes, a não monitorar os horários de seus trabalhadores, bem como outras atividades cotidianas.
Tais horários são administrados comumente por conversas informais entre empregador e empregado onde pode o primeiro solicitar ao funcionário que estenda um pouco seu horário em virtude de uma emergência ou compromisso improrrogável, ou o segundo pode informar que gostaria de ficar até mais tarde de modo a atualizar-se ou adiantar o serviço da semana.
Assim como o exemplo acima, muitos outros comportamentos, a princípio inofensivos, ainda convertem-se em litígios perante a Justiça do Trabalho e não são conhecidos por nossos magistrados, que aplicam a legislação protecionista e condenam o empregador pela desobediência aos “intervalos intrajornada”, “intervalos interjornada”, e pagamento da “jornada extraordinária”. Arrisco-me a acrescer que o empregado do exemplo exigirá que tal condenação seja aplicada a todo o período do contrato de trabalho, aproveitando-se do descuido do empregador em não registrar seus horários.
Não pretendo aqui justificar qualquer tipo de abuso ou descumprimento dos dispositivos constitucionais de proteção ao trabalhador. Muito pelo contrário. A necessidade constante da tutela jurisdicional é fato e não pode ser relaxada. Mas o que é preciso modificar, tal qual há muito já ocorre nos demais ramos do direito, é a visão do jurista face à realidade atual da sociedade. Ou seja, é necessário ponderar e adequar a aplicação da lei no caso concreto.
Afinal, a Lei existe para regulamentar direitos e evitar abusos. Não pode chegar ao ponto de uma das partes querer tirar vantagem ou simplesmente planejar beneficiar-se disso. Quando isso ocorre, é necessário um posicionamento jurisprudencial ou mesmo doutrinário que restabeleça a seriedade da justiça.
Nosso sistema demonstrou essa capacidade ao modificar o entendimento a respeito do que foi intitulado “indústria do Dano Moral”, no âmbito civil, ou mesmo a respeito do “princípio da insignificância” no Direito Tributário.
O caráter protecionista do Direito do Trabalho não pode mais ser utilizado como escusa ao julgamento mais consciente dessas ações, mesmo porque, como já advertido, a hipossuficiência do trabalhador encontra-se cada vez mais atenuada, merecendo maior rigor jurisdicional.
Cabe ressaltar que essa hipossuficiência caminha ao lado da “função social da empresa”, o que nos leva a questionar sobre os inúmeros casos em que empresas e empregadores em geral são forçados a “fechar as portas” em virtude de condenações em causas trabalhistas, prejudicando a estabilidade econômica local.
Repito, a lei existe e deve ser obedecida. E tal obediência tem sido cada vez mais presente em nossa sociedade. Tanto que já não mais nos deparamos com empresas ou mesmo trabalhadores completamente leigos a esse respeito. É certo que o domínio da legislação trabalhista ainda é restrito, porém, conhecer o direito ao décimo terceiro salário, ou à jornada de oito horas diárias, ao salário mínimo, ao recolhimento de INSS e FGTS, entre outros, já é, felizmente, presente nos trabalhadores, indistintamente.
No entanto, não obstante essa realidade, as condenações trabalhistas ainda encaram o trabalhador como explorado e enganado pelo empregador. O que acaba por tornar a “indústria das verbas rescisórias” cada vez mais lucrativa.
Arrisquei-me nesse ponto a ser amplamente criticada ao fazer tal comparação, mas não pude me conter diante de tal semelhança. No entanto, chega a ser ainda mais grave, pois repousa, em grande parte, nos fatos, ou seja, num caráter objetivo (enquanto que a análise do dano moral possui caráter subjetivo).
Fatos não comprovados, ou mal comprovados que são alegados e revestidos pelo manto do “princípio da primazia da realidade” que, curiosamente, tende a beneficiar quase que exclusivamente o trabalhador. Infelizmente, creio que atingimos (se já não ultrapassamos) o ponto em que este (o trabalhador) passa a alegar como verdadeiros fatos que sequer existiram, pelo simples fato de não serem passíveis de comprovação (ante ao citado princípio).
Voltando ao exemplo, seria o caso de o funcionário alegar, em reclamação trabalhista, o comprimento de jornada extraordinária todos os dias, durante todo o contrato de trabalho, quando sabe não ter ocorrido, pelo fato de, pelo principio da primazia da realidade, os próprios registros de ponto serem passíveis de questionamento e até desconsideração.
Ora, é como dizer que o fato por si só não é capaz de exprimir a dimensão do dano. Assim como o é ao se alegar o “dano moral”. E temo em afirmar que essa proteção tem levado trabalhadores a estender sua jornada voluntariamente, a pedir pelo não gozo das férias, a criar empecilhos à anotação de sua CTPS, dentre outras condutas que no cotidiano da relação podem parecer inofensivas mas que oportunamente irão traduzir-se em pecúnia.
Muitos sequer comparecem à empresa a fim de receber as verbas rescisórias, pois preferem encarar os trâmites judiciais com promessa de valores mais vantajosos. Afinal, porque receber o equivalente a seiscentos ou oitocentos reais das verbas rescisórias que lhe são realmente devidas se lhe pode ser ofertado um acordo de cinco mil ou oito mil reais que, devido à insegurança oferecida pela via judicial e a notável parcialidade da Justiça do Trabalho, acaba por deixar o empregador sem a esperança de ter comprovada sua boa-fé.
Nosso procedimento legal trabalhista chegou a chamar a atenção da imprensa britânica que, em reportagem intitulada “Employer, beware” (Empregador, cuidado), para a revista “Economist”, afirmou:
“As leis trabalhistas brasileiras são extraordinariamente rígidas: elas impedem tanto empregadores como trabalhadores de negociar mudanças em termos e condições, mesmo quando há um acordo mútuo".
Para a revista, a nossa legislação incentiva trabalhadores insatisfeitos a tentar que sejam demitidos em vez de pedir demissão. Esse ciclo, acrescenta a Economist, induz também empresários a preferir não investir em treinamento de seus funcionários, já que esse é um investimento que pode não dar retorno.
O que se percebe a partir dessas observação é a possível retrocessão de nosso modelo econômico, culminando no receio das empresas em seu desenvolvimento e ascensão, por temer as responsabilidades com a classe operária, cada vez mais interessada em desenvolver litígios, paralelo com a insegurança de serem eventualmente atingidas por uma condenação exorbitante que comprometa sua atividade econômica.
Acredito não ser a via judicial o melhor caminho em muitos casos. Nesse aspecto, cabe ao advogado a devida orientação de seu cliente, abstendo-se de visualizar apenas os cálculos matemáticos dos erros de seu oponente e avaliando a questão de maneira mais ampla.
Em segundo plano, cabe ao magistrado oferecer maior seriedade no julgamento de tais demandas, buscando conhecer a verdade dos fatos e não apenas a realidade que o empregador não pôde provar.
Aplicar a Lei não significa somente punir a parte por sua falta de atenção. Significa, sobretudo, trazer a justiça ao litígio, agir com sabedoria e reprimir práticas abusivas. Tal atividade não é exclusiva do juiz, mas de todo operador do Direito, de todo cidadão.