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Direção sem habilitação: crime ou infração administrativa?

13/11/2012 às 14:24
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O simples fato de dirigir veículo automotor sem habilitação representa apenas infração administrativa. Para configuração do crime previsto no art. 309 da Lei n° 9.503/1997, é necessário que o guiador do veículo, além da falta de habilitação, revele perigo concreto de dano, pela maneira anormal de dirigir.

Desde a elaboração do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), vem sendo objeto de divergência a questão da natureza jurídica da direção de veículo automotor sem habilitação. Para uns configura crime, enquanto outros consideram como mera infração administrativa. A finalidade do presente escrito é contribuir para o esclarecimento do assunto, oferecendo opções de leitura ao interessado no assunto.

Quanto à natureza jurídica da conduta de dirigir sem habilitação, convém gizar, ab initio, que a direção de veículo automotor sem habilitação configura infração administrativa de trânsito, descrita no art. 162 do Código de Trânsito Brasileiro, in verbis:

“Art. 162. Dirigir veículo:

I - sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (três vezes) e apreensão do veículo”.

Para configuração do crime de trânsito consistente na direção de veículo automotor sem habilitação, há necessidade da demonstração da existência do elemento do tipo denominado “perigo de dano”. Aliás, tal expressão demarca a fronteira entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, ipsis verbis:

“Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.

O professor Damásio de Jesus explica em que consiste o crime de perigo de dano concreto, verbo ad verbum:

“Perigo concreto é o real, o que na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto jurídico só não ocorre por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo um sério risco (efetiva situação de perigo). Na palavra da Claus Roxin, o resultado danoso só não ocorre por simples casualidade (Derecho Penal; parte general, cit., p. 336). O bem sofre uma real possibilidade de dano. São aqueles casos em que se diz que o resultado não foi causado ‘por um triz’, em que o ‘quase’ procura explicar a sua não-superveniência. São episódios em que o comportamento apresenta, de fato, ínsita a probabilidade de causar dano ao bem jurídico e que, para a existência do delito, é necessário provar sua ocorrência. Perigo concreto é, pois, o que precisa ser demonstrado (valoração ex post, ‘prognose póstuma’). Ex.: no art. 132 do CP há a definição de crime de perigo para a vida de outrem. O perigo, no caso, não é presumido, mas, ao contrário, precisa ser investigado e comprovado” (CRIMES DE TRÂNSITO. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 6).

A contravenção de “falta de habilitação para dirigir veículo”, inscrita no art. 32 do Decreto-lei n° 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), foi revogada, segundo entendimento da doutrina amplamente majoritária e orientação uniforme dos Tribunais Superiores.

Os mestres Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves tratam do tema com exatidão, ipsis verbis:

“Se o agente é legalmente habilitado, configura mera infração administrativa o fato de dirigir veículo sem estar portando o documento” (ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 55).

Os autores acima citados acrescentam que “a simples conduta de dirigir sem habilitação passou a configurar simples infração administrativa (art. 162, I), demonstrando que o legislador quis afastar a incidência de normas penais para o caso” (obra citada, p. 57).

Os mesmos professores foram além, esclarecendo ainda que “pela sistemática antiga, o ato de dirigir sem habilitação configurava concomitantemente a contravenção penal do art. 32 e a infração administrativa prevista no art. 89, I, do antigo Código Nacional de Trânsito. O novo Código, entretanto, tratou tanto da questão administrativa quanto da penal, dispondo que, se a conduta gera perigo de dano, há crime, mas, se não gera, há mera infração administrativa” (obra citada, p. 57). Os docentes concluem que “o art. 32 da Lei das Contravenções Penais está derrogado, valendo apenas no que se refere à sua segunda parte (dirigir, sem a devida habilitação, embarcação a motor em águas públicas)” (obra citada, p. 60).

Os penalistas Sérgio Salomão Shecaira e Luiz Flávio Gomes ensinam que “não ocorrendo condução anormal, inexiste crime, subsistindo apenas a infração administrativa. Assim, se o motorista é surpreendido estando conduzindo normalmente o veículo, só há infração administrativa (art. 162, I, II e V, do CT)” (In DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO – conferência – Cursos sobre Delitos de Trânsito, Complexo Jurídico Damásio de Jesus, São Paulo, 6-3-1998, apud ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 61).

O criminalista Renato Marcão destaca que “a mera condução de veículo automotor em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, não é suficiente para a conformação típica. É imprescindível que se associe a tal prática a ocorrência de perigo concreto, condição sem a qual a conduta não se ajusta ao tipo em comento, ficando remetida à condição de mera infração administrativa” (CRIMES DE TRÂNSITO. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 206).

O excelso Supremo Tribunal Federal proferiu decisões recentíssimas, verbo ad verbum:

“EMENTA: I. Infração de trânsito: direção de veículos automotores sem habilitação, nas vias terrestres: crime (CTB, art. 309) ou infração administrativa (CTB, art. 162, I), conforme ocorra ou não perigo concreto de dano: derrogação do art. 32 da Lei das Contravenções Penais (precedente: HC 80.362, Pl., 7.2.01, Inf. STF 217). 1. Em tese, constituir o fato infração administrativa não afasta, por si só, que simultaneamente configure infração penal. 2. No Código de Trânsito Brasileiro, entretanto, conforme expressamente disposto no seu art. 161 — e, cuidando-se de um código, já decorreria do art. 2º, § 1º, in fine, LICC — o ilícito administrativo só caracterizará infração penal se nele mesmo tipificado como crime, no Capítulo XIX do diploma. 3. Cingindo-se o CTB, art. 309, a incriminar a direção sem habilitação, quando gerar “perigo de dano”, ficou derrogado, portanto, no âmbito normativo da lei nova — o trânsito nas vias terrestres — o art. 32 LCP, que tipificava a conduta como contravenção penal de perigo abstrato ou presumido. 4. A solução que restringe à órbita da infração administrativa a direção de veículo automotor sem habilitação, quando inexistente o perigo concreto de dano — já evidente pelas razões puramente dogmáticas anteriormente expostas -, é a que melhor corresponde ao histórico do processo legislativo do novo Código de Trânsito, assim como às inspirações da melhor doutrina penal contemporânea, decididamente avessa às infrações penais de perigo presumido ou abstrato. II. Recurso extraordinário prejudicado: habeas-corpus de ofício. 5. Prejudicado o RE do Ministério Público, dado o provimento do recurso especial com o mesmo objeto, é de deferir-se habeas-corpus de ofício, se a decisão do STJ — no sentido da subsistência integral ao CTB do art. 32 LCP, é ilegal, conforme precedente unânime do plenário do Supremo Tribunal” (STF – 1ª Turma - RE-319556/MG – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma) (vide Informativo STF n° 230).

“EMENTA: - Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3. Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80665/SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma).

“EMENTA: - Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3. Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80969 / SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU de 24-08-2001, p. 64).

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Na esteira do entendimento sufragado pelo Pretório Excelso, o colendo Superior Tribunal de Justiça, passou a preconizar a orientação a seguir, verbatim:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. DIREÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. ART. 32, LCP. ART. 309, DA LEI 9.503/97 (CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). DERROGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32 DA LEI CONTRAVENCIONAL.

O Plenário do Col. Supremo Tribunal Federal proclamou, por unanimidade de votos, que o novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), ao regular inteiramente o direito penal de trânsito nas vias terrestres do território nacional, derrogou parcialmente o citado art. 32 da LCP, remanescendo o dispositivo na parte em que se refere a embarcação a motor em águas públicas (STF, Pleno, RHC 80.362/SP, j. 14.02.2001, Rel. Min. Ilmar Galvão, noticiado no Informativo-STF nº 217). Modificação do ponto de vista deste Relator. Embargos de divergência rejeitados” (STJ – 3ª Seção - ERESP 226849/SP – Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJU de 04/06/2001, p. 60).

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO – ABOLITIO CRIMINIS – ART. 32, DA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS – ART. 309, DO CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO.

- O art. 309, do Código Nacional de Trânsito, revogou o art. 32, da Lei de Contravenções Penais, acrescentando a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação. 

- Precedentes (Plenário do STF) e STJ (3ª Seção, EREsp 226849/SP, Rel. Ministro José Arnaldo, DJU de 11.06.2001) - Embargos do Ministério Público rejeitados” (STJ – 3ª Seção - ERESP 225558/SP – Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJU de 29/10/2001, p. 181).

Como se sabe, a 3ª Seção do colendo Superior Tribunal de Justiça é composta pelos dez ministros que integram a Quinta e a Sexta Turmas, às quais incumbe o julgamento das causas que envolvam matérias de direito penal, logo, o julgado transcrito reflete o entendimento pacífico do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Apenas para ilustrar o tema, convida-se à leitura de alguns julgados do colendo Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS. ARTIGO 32 DA LCP E ARTIGO 309 DA LEI 9.503/97.

A novatio legis, que acrescentou a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação, revogou a contravenção (artigo 32 da LCP) (Plenário do Pretório Excelso). Recurso desprovido, com a ressalva do entendimento do relator” (STJ – 5ª Turma - RESP 311053/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER , DJU de 20/08/2001, p. 522).

“CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. DIRIGIR VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. REVOGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. RECURSO DESPROVIDO.

I - A Lei nº 9.503/97 regulou todas as ações relativas ao direito penal do trânsito terrestre de qualquer natureza, revogando parcialmente o art. 32 da Lei das Contravenções Penais e fazendo com que a simples conduta de dirigir sem habilitação subsista como infração administrativa.

II - Recurso desprovido” (STJ – 5ªTurma - RESP 225567/SP – Rel. Min. GILSON DIPP, DJU de 27/08/2001,  p. 368).

“PENAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 9.503/97. MERA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ATIPICIDADE PENAL.

- O ato voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir a Carteira de Habilitação, antes definido como contravenção penal, recebeu novo tratamento jurídico após a edição do novo Código Nacional de Trânsito, que deu-lhe novo conceito: (a) se tal postura não acarretar efetivo perigo de dano, com demonstração objetiva dessa potencialidade, o fato consubstancia mera infração administrativa; (b) se demonstrado o perigo, o fato é definido como crime (art.  309).

- A mera conduta de dirigir motocicleta, sem perigo de dano, não tem repercussão no campo criminal, sendo conduta penalmente atípica. - Recurso especial conhecido” (STJ – 6ª Turma - RESP 264166/SP – Rel. Min. FONTES DE ALENCAR, DJU de 11/06/2001, p. 264).

“RECURSO ESPECIAL. CONDUZIR VEÍCULO AUTOMOTOR SEM HABILITAÇÃO. CONTRAVENÇÃO. ATIPICIDADE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.

1. A partir da vigência do novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), o ato voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir habilitação consubstancia fato de mera infração administrativa, sendo definido como crime somente se demonstrado o perigo de dano concreto, hipótese alheia à versada na espécie. Precedentes. 

2. Recurso provido” (STJ – 6ª Turma - RESP 331304/SP – Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJU de 25/03/2002, p. 316).

A decisão abaixo do colendo Superior Tribunal de Justiça confirma tudo que foi exposto acima, verbo ad verbum:

RECURSO ESPECIAL. PENAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ART. 32 DA LEI DE CONTRAVENÇÃO PENAL E ART. 309 DA LEI 9.503/97.

1. As Cortes Superiores sedimentaram o entendimento no sentido de que a direção de veículos automotores sem habilitação, nas vias terrestres, pode constituir crime, nos termos do art. 309 do CTB, ou infração administrativa, consoante o art. 162, inciso I, do CTB, a depender da ocorrência ou não de perigo concreto de dano, restando, pois, derrogado o art. 32 da Lei de Contravenções Penais.

2. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, provido” (STJ - REsp 331.104/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2004, DJ 17/05/2004, p. 266).

Conforme demonstrado acima, o simples fato de dirigir veículo automotor sem habilitação representa apenas infração administrativa. Para configuração do crime previsto no art. 309 da Lei n° 9.503/1997, é necessário que o guiador do veículo, além da falta de habilitação, revele perigo concreto de dano, pela maneira anormal de dirigir (exemplos: excesso de velocidade, dirigir sobre uma roda, freadas bruscas, trafegar em ziguezague, subir calçada, invadir cruzamento, “fechar” outros veículos, etc).

Finalmente, após o exame da legislação, da doutrina e da jurisprudência, resulta evidente que a mera direção de veículo sem habilitação configura apenas infração administrativa de trânsito, visto que somente ocorre crime de trânsito, propriamente dito, quando observa-se que há direção anormal capaz de configurar o perigo concreto de dano exigido pela legislação em vigor, em consonância com a exposição acima. Com efeito, não havendo perigo de dano na conduta investigada, o fato será penalmente atípico.

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Sobre o autor
Afonso Tavares Dantas Neto

Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Ceará desde 2002, com atuação específica na área de Família e Sucessões a partir de 2010. Especialista em Direito Público pela Faculdade Christus (Fortaleza, CE, 1999). Especialista em Direito Tributário pela UNIFOR (Fortaleza, CE, 2001).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS NETO, Afonso Tavares. Direção sem habilitação: crime ou infração administrativa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3422, 13 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23009. Acesso em: 19 nov. 2024.

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