Nesses tempos, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento já histórico, delibera sobre a Ação Penal 470, conhecida como “Mensalão”, a mídia pela voz de juristas e – em geral – de patronos de réus, suscita o tema da suposta exigência absoluta do duplo grau de jurisdição, como eventual espécie de garantia constitucional, máxime para decisões finais em matéria penal.
Em outras palavras, a questão posta em relevo traz indagações sobre os feitos de competência originária do STF, especialmente os de natureza penal, no sentido de perquirir se a decisão colegiada pode e deve esgotar-se em si mesma, ou, se de alguma forma caberia novo exame dos autos por uma instancia adicional.
É de ver, desde logo, que a matéria parece trazer uma contradição insuperável, pois se a ação, “in casu” é de competência originaria da Corte Suprema, o ápice da estrutura jurisdicional pátria, qual outro colégio judiciário poderia reapreciar a demanda?
Nesse sentido, o tema em pauta, na verdade, se restringiria aparentemente ao âmbito do STF, porque, em relação ao outros tribunais superiores suas decisões em sede de competência originaria podem não se esgotar nas Cortes, na medida em que recurso caberá ao Supremo, desde que haja matéria constitucional a ser examinada.
A proposição sobre o duplo grau de jurisdição, no que respeita a ser ou não forma de garantia constitucional, portanto, assegurada “erga omnis”, foi debatida e decidida – já se antecipa para adotar postura de negação – pelo Pleno do STF, nos autos do Recurso em Habeas Corpus 79785/RJ, em 2000, sendo Relator, o Ministro Sepúlveda Pertence.
A análise então procedida e que resultou na deliberação por maioria, vencidos os Ministros Carlos Velloso (então Presidente) e Marco Aurélio de Mello, traz à baila a apreciação da Carta Federal “vis a vis” com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). [1]
Como já anotamos antes, o “decisum” aqui comentado, observa – primeiramente – que “o duplo grau de jurisdição há de ser concebido (...) com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária”. E, a seguir, conclui que: “com esse sentido próprio (...) não é possível (...) erigir o duplo grau em principio e garantia constitucional, tantas são as previsões, na própria Lei Fundamental, do julgamento de única instancia ordinária, já na área cível, já, particularmente, na área penal”.
Segue, então, que a orientação pacificada no âmbito da própria Suprema Corte indica que – inobstante a estipulação firmada no Pacto da Costa Rica, acerca do duplo grau de apreciação judiciária – tal postura é inaplicável ao direito positivo do Brasil: “Em relação ao ordenamento pátrio (...) para dar eficácia à cláusula do Pacto de São José (...) não bastaria sequer lhe conferir o pode de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação oponível à lei (...): mais que isso, seria necessário emprestar à norma convencional força ab-rogante da Constituição mesma (...) o que não é de admitir”.
Ao exame – nesse importante precedente que trazemos a colação – dos votos vencidos já enunciados, um do Presidente de então, Carlos Velloso, e outro do Ministro Marco Aurélio, tem-se a expressão do acatamento da cláusula posta pelo Tratado internacional, porém ressalvando-se, como cogita o Ministro Velloso, a sua inaplicabilidade em relação ao próprio STF no caso das ações originarias, ao dizer que, na hipótese, a “Constituição proíbe, com relação à Suprema Corte, sim, porque não existe outro Tribunal superior ao Supremo Tribunal Federal”, sendo que, a seu turno, o Ministro Marco Aurélio também denota esse relevante aspecto de ser o STF, o cume da estrutura judiciária, anotando que: “De qualquer forma, não havendo outro Tribunal acima do Supremo, a exigência do Pacto é atendida com o reexame pelo próprio Supremo”. [2]
A conclusão que parece possível, em torno desse debate, milita no sentido de que a cláusula convencional que demanda a duplicidade do grau de jurisdição, particularmente em matéria penal, não encontra ressonância no que se refere às ações originarias no seio do STF, sendo certo que a admissibilidade dos Embargos Infringentes às decisões do Pleno não deixam de cumprir – embora em termos restritivos – o desiderato do duplo grau. [3]
Notas
[1] A Convenção foi recepcionada e promulgada nos termos do Decreto 678 de 1992 e, assim, incorporada ao Direito brasileiro. Como diz a ementa do Acórdão do RHC, aqui cogitado, o Tratado, nesse tópico especifico em tela “consagrou, como garantia, ao menos na esfera processual penal, o duplo grau de jurisdição”. Essa garantia, prossegue o Acórdão, é compreendida como “o direito de toda pessoa acusada de delito, durante o processo, de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”.
[2] A remissão do Ministro Marco Aurélio, nesse caso, é ao cabimento de Embargos Infringentes, previstos no Regimento Interno do STF, como forma de reexame de matérias julgadas em sede de ação originária. Porém, os que defendem a eventual prevalência da Convenção da Costa Rica, postulam, como refere – entre outros – o advogado Pedro Paulo Medeiros, o cabimento de recurso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a saber: “No caso Barreto Leiva contra Venezuela, se depreende precedente indicativo de que o julgamento da Ação Penal 470 no STF poderá ser revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição para todos os réus” (htpp://www.dm.com.br/#!/texto?id=64691).
[3] A propósito, o artigo 333, “caput” do Regimento Interno do STF ao remeter-se à figura processual dos Embargos de Infringência, observa seu cabimento em relação aos julgados, tomados por maioria, pelo Plenário dando pela procedência de ação penal, demandando-se, como requisito (cf. Paragrafo Único) a existência de, no mínimo, 04 (quatro) votos divergentes do entendimento majoritário.