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Restituição em dinheiro e privilégio trabalhista.

Análise da validade da norma sob o prisma do direito empresarial

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28/11/2012 às 14:25
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4 Restituição em dinheiro e o direito de propriedade

O caput do art. 149 da Lei nº. 11.101/2005 traz a ordem geral de pagamento dos créditos na falência, prescrevendo que serão realizadas as restituições, pagos os créditos extraconcursais (art. 84) e os créditos concursais (art. 83), nesta ordem. In verbis,

Art. 149. Realizadas as restituições, pagos os créditos extraconcursais, na forma do art. 84 desta Lei, e consolidado o quadro-geral de credores, as importâncias recebidas com a realização do ativo serão destinadas ao pagamento dos credores, atendendo à classificação prevista no art. 83 desta Lei, respeitados os demais dispositivos desta Lei e as decisões judiciais que determinam reserva de importâncias.

Em contrapartida, o art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 determina que as restituições em dinheiro somente poderão ser satisfeitas após o cumprimento do disposto no art. 151 da mesma lei, que prescreve o pagamento, aos credores trabalhistas, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos três meses anteriores ao requerimento da falência, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador.

Simionato[68] afirma que o comando normativo contido no art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 se aplica a toda e qualquer restituição em dinheiro e não apenas aquelas previstas nos incisos I, II e III do caput de referido artigo. Assim, para ele, as restituições decorrentes de direito de propriedade (art. 85, caput), quando o bem não mais existir quando da sua efetivação por já ter sido alienado pela massa falida ou por ter perecido em poder desta, a mercadoria vendida a crédito entregue nos quinze dias anteriores à decretação da falência (art. 85, parágrafo único), quando já alienadas pela massa falida, a restituição relativa às quantias devidas em virtude de contrato e aquelas previstas na legislação extravagante (como a Lei nº. 8.212/1991) somente serão realizadas após o pagamento dos credores trabalhistas, nos termos tratados pelo art. 151 da Lei nº. 11.101/2005.

De acordo com esse autor[69], trata-se de obrigação legal do administrador judicial, que não poderá, sob pena de responsabilidade civil, iniciar o pagamento dos credores na ordem disposta no art. 149 da Lei nº. 11.101/2005 sem antes cumprir o comando normativo contido no art. 151 da mesma lei. Para ele, o art. 86, parágrafo único, excepciona a regra do art. 149, inserindo uma classificação absolutamente prioritária na falência, qual seja: a dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos três meses anteriores à decretação da falência, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador. Referida categoria, segundo Simionato, ficaria atrás apenas das restituições in natura.[70]

Simionato[71] não vê qualquer irregularidade na disposição contida no art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 e parece concordar com o seu conteúdo ao afirmar, com bastante ênfase que

Nada tem preferência de pagamento sobre o art. 151 da Lei. Todos os outros, restituição, extraconcursal e quadro geral de credores, não recebem um único centavo enquanto não se liquidar e solver a obrigação trabalhista derivante do texto legal, art. 151. As restituições somente serão efetuadas após o pagamento previsto pelo art. 151, tudo conforme o art. 86, parágrafo único, da Lei.

O administrador judicial está impedido de pagar o art. 149 antes de pagar os créditos trabalhistas, no montante previsto pelo art. 151 da Lei, sob pena de responsabilidade civil. O valor, que o art. 151 estabelece, pode, ademais, ser objeto de arresto, caso não seja observada a regra legal.[72]

Segundo Sérgio Mourão Corrêa Lima[73], em obra sob sua coordenação e de Osmar Brina Corrêa-Lima, o art. 149 da Lei 11.101/2005 determina que as restituições serão realizadas antes do pagamento de qualquer crédito, sejam elas pelo bem individualizado ou pela respectiva importância em dinheiro.

Para eles[74], o proprietário com direito à restituição não é credor, por isso, não pode se sujeitar à execução concursal. O que o difere dos credores do falido é que estes são titulares de direito crédito em virtude de uma obrigação assumida pelo devedor, podendo apenas exigir o seu adimplemento. Já o proprietário que tem direito à restituição, em razão do disposto no art. 1.228 do CC/2002 e no art. 85 da Lei nº. 11.101/2005, poderá reaver o bem de sua propriedade na execução concursal da falência sem precisar se submeter às mesmas regras aplicadas aos credores. Nesse sentido, Corrêa Lima[75] afirma que o art. 85 da Lei nº. 11.101/2005 obedece ao comando contido no art. 5º, XXII, da CRFB/1988 na medida em que implementa a proteção à garantia fundamental do direito de propriedade.

Assim sendo, Corrêa Lima[76] elabora, muito didaticamente, a sequência de pagamento que entende adequada na falência, de acordo com a interpretação sistemática que faz dos art. 149, 150, 151, 85, 84 e 83 da Lei nº. 11.101/2005. Verbis:

A interpretação conjugada dos arts. 149, 150, 151, 85, 84 e 83 conduz à sequência ainda mais precisa:

(1º) implementação das restituições;

(2º) satisfação dos créditos extraconcursais, “cujo pagamento seja indispensável à administração da falência”, que “serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa”;

(3º) destaque de recursos para satisfação dos créditos extraconcursais que não requeiram pronto pagamento;

(4º) pagamento dos “créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos por trabalhador”, pagos com recursos disponíveis em caixa; e

(5º) pagamento dos créditos contra o falido, observada a classificação prevista no art. 83.[77]

Percebe-se que, para Correa Lima[78], o cumprimento do disposto no art. 151 da Lei nº. 11.101/2005 somente poderá se dar depois da implementação de todas as restituições devidas, sejam elas in natura ou em pecúnia. Por isso, de acordo com esse autor, o art. 149 prescreve que as restituições antecedem ao pagamento de quaisquer credores, independentemente de sua classe ou ordem. Trata-se, segundo ele[79], de consolidação do entendimento sedimentado no STJ ainda quando da vigência do Decreto-lei nº. 7.661/1945.

Foram propostas duas ADI no STF questionando dispositivos da Lei nº. 11.101/2005. A primeira, ADI nº. 3.934-2/DF[80], de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, impugnando os art. 60, parágrafo único, art. 83, I e VI, ‘c’, e art. 141, II, da Lei nº. 11.101/2005 em face do art. 1º, III e IV, art. 6º, art. 7º, I, e art. 170 da CRFB/1988, julgada integralmente improcedente em novembro de 2009. E a segunda, ADI nº 3.424/DF[81], de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, arguindo a inconstitucionalidade do art. 83, I e VI, ‘c’, e §4º[82], art. 84, V, e art. 86, II, da Lei nº. 11.101/2005 em face do art. 5º, XXII, da CRFB/1988, que se encontra ainda em tramitação.

Porém, não há arguição de inconstitucionalidade referente ao art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 no que se refere à restituição em dinheiro, ao proprietário, do bem arrecadado na falência do devedor e alienado pela massa falida ou que haja perecido em poder desta (art. 86, I). Portanto, a princípio essa discussão tem ficado apenas no âmbito doutrinário e apenas alguns autores (dentre os quais Corrêa Lima[83] é o de mais destaque) posicionam-se pela inconstitucionalidade de referido dispositivo se interpretado literalmente.

Souza[84] considera positiva a redação do art. 151 da Lei nº. 11.101/2005 por reputar, segundo ele, um progresso em relação à proteção da dignidade da pessoa do trabalhador, mas não se manifestam sobre a validade da disposição contida no parágrafo único do art. 86 da mesma Lei no que tange à tutela do direito/garantia fundamental de propriedade prevista no art. 5º, XXII, da CRFB/1988.

Os demais autores contemporâneos, da doutrina do Direito Empresarial, pesquisados e que tratam do assunto, como Silva Pacheco[85], Negrão[86], Almeida[87], Junqueira[88], Abrão[89] e Salles[90], limitam-se a nos ensinar sobre a norma do art. 86, parágrafo único, c/c art. 151 da Lei nº. 11.101/2005, afirmando a precedência absoluta do credor trabalhista enquadrado neste último dispositivo legal. Porém, não se manifestam claramente sobre a constitucionalidade ou não do art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005.

Simão Filho[91] entende que as restituições previstas nos art. 85 e 86 da Lei nº. 11.101/2005 somente serão implementadas após os “pagamentos imediatos contra disponibilidade de caixa”, entre os quais se incluem as despesas necessárias à administração da falência (art. 150), aquelas decorrentes da continuação provisória da atividade do falido (art. 150) e os créditos trabalhistas vencidos nos três meses anteriores ao requerimento da falência e até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador (art. 151).[92]

Segundo Corrêa Lima[93], o cumprimento do disposto no art. 151 da Lei nº. 11.101/2005 somente deve ocorrer quando houver “disponibilidade em caixa”. E considera-se “disponibilidade em caixa” os recursos que restaram depois da realização das restituições em dinheiro fundadas no direito de propriedade e da reserva de recursos para pagamento dos créditos extraconcursais (art. 84) indispensáveis à continuação provisória das atividades do falido (art. 150).[94]

Para esse autor[95], o art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 deve ser interpretado de forma diferente conforme seja a restituição fundada no direito de propriedade ou “decorrente de equiparação legal”, pois referido comando normativo somente deve se referir àquelas hipóteses de restituição previstas no art. 86, II e III, da Lei nº. 11.101/2005, não abrangendo aquelas previstas no art. 85 e art. 86, I, da mesma Lei.

Assim, às hipóteses de restituição em dinheiro por “equiparação legal”, fundadas em direito obrigacional, aplica-se a regra prevista no parágrafo único do art. 86, sendo implementadas somente após o pagamento prioritário de que trata o art. 151. Já as restituições em dinheiro fundadas no direito de propriedade (art. 85, caput), ainda que recaiam sobre o equivalente em dinheiro do bem recebido pelo falido e arrecadado pela massa, terão prioridade absoluta e serão realizadas antes mesmo do cumprimento do disposto no art. 151. Segundo Corrêa Lima, “Entender de outra forma seria sustentar a preterição do direito real de proprietários (art. 85, caput) em favor de direitos obrigacionais de credores (art. 83, I), em evidente afronta ao art. 5º da Constituição da República.”[96]

Diante do quadro acima apresentado, percebe-se a existência de divergência doutrinária sobre o tema da restituição em dinheiro decorrente do direito de propriedade e do pagamento prioritário dos créditos trabalhistas, nos limites previstos no art. 151 da Lei nº. 11.101/2005. Porém, a posição que nos parece mais adequada é aquela defendida por Corrêa Lima.[97]

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7 CONCLUSÃO

Os credores admitidos na falência, sejam os credores do falido (créditos concursais) ou da massa falida (créditos extraconcursais), somente poderão ser pagos com o produto apurado com a alienação dos bens de propriedade do devedor arrecadados pelo administrador judicial quando da decretação da falência.

É evidente que bens de propriedade de terceiros não poderão ser usados para pagar esses créditos sem a anuência do respectivo titular. Se assim não o fosse, estaríamos diante de esbulho possessório e flagrante violação ao direito/garantia fundamental de propriedade (art. 5º, XXII, da CRFB/1988).

Por isso, o ordenamento jurídico prevê o instituto da restituição (art. 85 e 86 da Lei 11.101/2005), disponibilizado ao terceiro para desconstituir o ato de constrição judicial decorrente da arrecadação de bens de sua propriedade.

Em regra, as restituições são implementadas para entrega do próprio bem indevidamente arrecadado na falência in natura (art. 85, caput, da Lei 11.101/2005). No entanto, se o bem objeto do pedido não mais existir, esse direito será satisfeito pelo seu equivalente em dinheiro com a quantia apurada na alienação do mesmo, caso a venda tenha sido realizada pela massa falida, ou pelo valor da avaliação desse bem, caso tenha ele perecido em poder da massa (art. 86, I, da Lei nº. 11.101/2005).

A Lei nº. 11.101/2005 prescreve, no art. 86, parágrafo único, que as restituições em dinheiro somente serão realizadas depois do cumprimento do disposto no art. 151 da mesma Lei, ou seja, depois do pagamento dos créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial, vencidos nos três meses anteriores ao requerimento de falência, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador.

Entendemos que não há como defender a validade do art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005 (segundo a sua interpretação literal), mesmo que em razão de uma pretensa ponderação de interesses entre o direito/garantia fundamental de propriedade e o princípio da dignidade da pessoa humana do trabalhador. Isso porque, a implementação das restituições antes do pagamento dos credores trabalhistas, não viola qualquer direito fundamental dos empregados, muito menos o princípio da dignidade humana.

Assim, não há que se falar em violação à dignidade do trabalhador em se estabelecer que os proprietários não credores, com direito à restituição em dinheiro, receberão a expressão econômica do bem que integra o próprio patrimônio antes do pagamento dos salários em atraso dos empregados, tal como já ocorria no Decreto-lei nº. 7.661/1945.

Ressalte-se, ainda, que, conforme decidido pelo STF no julgamento da ADI nº. 3.934-2[98], não existe o direito fundamental dos empregados de receber seus créditos prioritariamente na falência de seu empregador, pois a CRFB/1988 não disciplina a matéria relativa ao privilégio legal dos empregados na execução concursal. Trata-se de questão afeta à legislação infraconstitucional. Por isso, não há inconstitucionalidade, segundo o próprio STF, em lei que disponha de modo diverso sobre o privilégio do crédito trabalhista na falência.

 Isso reforça ainda mais nosso entendimento de que o art. 86, parágrafo único, da Lei nº. 11.101/2005, quando se refere à restituição em dinheiro decorrente do direito de propriedade (art. 86, I), é inconstitucional. Esse dispositivo restringe indevidamente um direito fundamental previsto na CRFB/1988 em prol da implementação de um direito não previsto na CRFB/1988 (privilégio do crédito trabalhista na falência).

Frise-se, ainda, que a propriedade é um direito fundamental que deve ser observado pelo Estado e pelos indivíduos. Não se pode permitir interpretações extensivas de exceções. Isso legitimaria o desrespeito aos diversos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos conforme os interesses envolvidos na discussão, pois sempre haverá uma justificativa alegadamente nobre para se relativizar algum princípio constitucional em prol de outro, até se chegar ao ponto em que nenhum deles seja plenamente respeitado.

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Sobre a autora
Ana Paula da Silveira

Advogada; Professora; autora do Livro "Consórcio de empregadores urbanos: flexibilização com dignidade e inclusão social", disponível em www.initiavia.com; Pós-Graduada em Direito do Trabalho pela Faculdade Cândido Mendes (RJ); Mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade Milton Campos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Ana Paula. Restituição em dinheiro e privilégio trabalhista.: Análise da validade da norma sob o prisma do direito empresarial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3437, 28 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23115. Acesso em: 22 dez. 2024.

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