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Apontamentos sobre o fenômeno jurídico da apatridia no Brasil e no mundo contemporâneo

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A vinculação da ideia de nacionalidade apenas ao conceito de Estado há muito não parece adequada e suficiente. Autores modernos consideram a nacionalidade como uma ligação do indivíduo a uma nação, que possui língua, história, usos e costumes comuns.

Resumo: No mundo moderno, marcado pela crescente interferência do Estado nas atividades humanas, qual o significado da apatridia? Como se explica, ainda hoje, a existência de pessoas “sem pátria”? Quais as causas e os efeitos jurídicos de tal fenômeno? Tivemos por finalidade abordar o tema da apatridia e suas nuances no mundo contemporâneo. Tratamos do conceito e classificação do fenômeno da apatridia. Vimos em quais lugares do planeta há uma maior incidência de apátridas, como vivem, e as barreiras que a modernidade, e a burocracia dela decorrente, lhes impõem. Apresentamos as principais Organizações Internacionais que se ocupam do assunto, bem como as Convenções e textos legais que cuidam da matéria. Discutimos a questão dos “brasileirinhos apátridas” relacionando-a com a importância da Emenda Constitucional 95/2007. Outro importante tópico se refere às comunidades ciganas e sua renúncia à nacionalidade formal. Por fim, debatemos sobre a desigualdade de gênero como causa de apatridia.

Palavras-chave: Apatridia; Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados;  Direitos Humanos.

Sumário: Introdução - 1. Apatridia: conceito e classificação – 2. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados e o amparo aos apátridas – 3. Localização e problemas enfrentados – 4. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, 1954 – 5. Convenção para Redução dos Casos de Apatridia, 1961 – 6. O caso dos “Brasileirinhos apátridas” – 7. Ciganos e a renúncia de uma nacionalidade – 8. A desigualdade de gênero como causa de apatridia – Conclusão - Referências.


Quando me dizem “Não” no país onde eu moro; quando me dizem “Não” no país onde eu nasci; quando me dizem “Não” no país dos meus pais; escutar continuamente “A senhora não é dos nossos”! Sinto que sou ninguém e nem sequer sei porque estou a viver. Como apátrida, estás sempre rodeada por um sentimento de desprezo.

Lara, ex-apátrida.

(ACNUR, Nacionalidade e Apatridia, Manual para parlamentares n. 11, 2005.)


Introdução

A apatridia é um fenômeno extremamente recorrente e atual. Vivemos em uma época marcada pela globalização, típica da “modernidade líquida”[1], e pela rapidez da informação e das formas de locomoção. Estamos cada vez mais perto do que antes parecia distante. A intervenção do Estado nas atividades humanas e em vários aspectos da vida privada é uma característica da modernidade. E, talvez por isso, o vínculo com um Estado se revela tão necessário e, mais, fundamental. Não ser filho de nenhuma pátria pode ser um motivo de alienação do indivíduo para com o contexto globalizante e frenético que o mundo contemporâneo impõe.

A questão dos apátridas é estranha à maioria das pessoas, e suas proporções, desconhecidas. Grande parte da responsabilidade pela pouca informação do público em geral sobre o assunto pode ser atribuída à pouca atenção que recebe dos meios de comunicação. Enquanto relevantes questões, como as que envolvem os líderes asilados, imigrantes, refugiados, entre outros, recebem determinada atenção da imprensa, a apatridia, apesar de sua igual importância, não é tema assíduo dos veículos de comunicação. Quem se importe em aprofundar-se na seara do Direito Internacional dos Direitos Humanos pode se deparar com números assustadores referentes ao tema.

Este artigo traz apontamentos sobre o fenômeno da apatridia no mundo contemporâneo. Partindo de seu conceito e classificação, discorreremos sobre onde estão os apátridas, como vivem e suas dificuldades de se encaixarem na burocracia moderna. Trataremos acerca de algumas organizações internacionais que cuidam da matéria, Convenções Internacionais e normas sobre o assunto, fazendo uso também de números e dados. Esta produção apresenta o tema da apatridia em nosso País, abordando a luta dos “brasileirinhos apátridas”. Além disso, nos propomos a uma discussão acerca das comunidades ciganas e sua renúncia à nacionalidade formal, assim como uma discussão sobre a desigualdade de gênero como causa de apatridia. Ao longo do texto poder-se-á encontrar informações e esclarecimentos que trazem à tona um pouco sobre a situação dos apátridas no mundo atual.

 


1.  Apatridia: conceito e classificação

Denomina-se apátrida, segundo a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, o indivíduo que não é considerado por qualquer Estado, segundo sua legislação, como seu nacional. Trata-se daquele que não possui nacionalidade formal ou cidadania, ou seja, aquele que juridicamente é ausente de pátria. O vínculo do indivíduo para com um Estado inexiste e, por esse motivo, é impossibilitado de proteção e tutela diplomática, situação que afeta negativamente os mais diversos aspectos de sua vida.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), sobre o qual trataremos a seguir, classifica a apatridia em duas categorias: a de facto e a de jure. A primeira é a que compreende indivíduos que possuem nacionalidade formal, mas que se mostra ineficaz, a exemplo daqueles que não gozam de direitos normalmente desfrutados por todos os nacionais. Já os apátridas de jure são aqueles que não possuem nenhuma nacionalidade formal, ou seja, não são considerados nacionais de acordo com as leis de nenhum país. A disparidade encontrada entre os dois diferentes modelos de apatridia pode ser um tanto complexa. Inúmeros indivíduos dispersos pelo mundo encontram-se nesse ambiente de incerteza legal.


2. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e o amparo aos apátridas

O ACNUR foi criado em 1950 pela Assembleia Geral das Nações Unidas com o objetivo de prestar assistência não só aos refugiados provenientes de diversos conflitos e perseguições no período entre-guerras, a exemplo do genocídio armênio e da Revolução Russa de 1917, mas principalmente àqueles oriundos da Segunda Guerra Mundial. Contudo, o trabalho do Alto Comissariado, com sede em Genebra, Suíça, não se limita em proteger os refugiados, mas objetiva também, acolher e dar assistência e proteção aos deslocados internos e apátridas, em especial àqueles pertencentes a segmentos vulneráveis, como crianças, mulheres, indígenas, e negros.

O ACNUR propõe-se a encorajar os Estados a firmarem um compromisso com os direitos dos refugiados e apátridas, aprovando o reconhecimento destes direitos nas legislações nacionais e promovendo o reassentamento, a repatriação voluntária e proteção de mulheres e crianças, incluindo medidas contra violência sexual e de gênero. Também busca orientar os Estados a aderirem às Convenções da ONU sobre apatridia, esclarecendo a importância da ratificação e implementação das mesmas na legislação nacional. No Brasil, assim como em outros países, o Alto Comissariado visa ainda sensibilizar as autoridades nacionais acerca da importância da adoção de um mecanismo administrativo interno para a determinação da condição de apátrida.

 


3. Localização e problemas enfrentados

  Segundo dados do ACNUR existem hoje cerca de 12 milhões de apátridas em dezenas de países do mundo, sendo que metade desse número se refere a crianças[2]. Os quantitativos e informações são incertos, dada a dificuldade de apuração nos diferentes países. Estes são muitas vezes relutantes ou incapazes de fornecer informações, e poucos dispõem de mecanismos capazes de produzir um registro dos apátridas existentes em seus territórios. Uma pesquisa sobre apatridia realizada pelo ACNUR em 2003[3] confirma que nenhuma região do mundo está isenta dos problemas que geram a apatridia. Ainda que aproximados, os números são impressionantes. 

A apatridia teve seu reconhecimento como um problema mundial na primeira metade do século passado. Pode ocorrer por diversos motivos: disputas entre Estados sobre a condição jurídica de pessoas, marginalização prolongada de populações durante processos de independência ou traçados de novas fronteiras nacionais, enfim, profundas mudanças nas relações internacionais.

 Ao redor do mundo várias políticas de caráter discriminatório ameaçam a integridade dessas pessoas. Principalmente no Oriente Médio, legislações que resultam em segregação por razão de gênero acabam por expor indivíduos ao perigo da apatridia. No Iraque, durante o regime de Saddam Hussein, por exemplo, foi privado a muitos o direito de nacionalidade.[4]

Já na África Subsaariana há casos registrados no Quênia, na Costa do Marfim, e em muitos outros países. Na Europa a situação é extremamente grave. Depois do fim da antiga União Soviética, com o surgimento de novos países, milhares de pessoas ficaram em situação de apatridia.[5] O problema tomou maiores proporções com as migrações massivas que colocaram inúmeras pessoas na condição de refugiados ou deslocados. Ainda hoje há movimentos que buscam restaurar a nacionalidade desses indivíduos através da expedição de documentos, mas o problema ainda não está sanado.

No Caribe a apatridia também é assunto de forte interesse do ACNUR. Na Ásia, especificamente em Bangladesh e Nepal, algumas experiências foram bem sucedidas, o que se comprova pelo fato de milhares de indivíduos terem adquirido sua nacionalidade. Contrastante é a informação do próprio ACNUR, segundo o qual há no Himalaia por volta de oitocentos mil apátridas[6], que são impedidos de ter acesso a serviços e direitos garantidos pelo governo, como direito à saúde, à educação, ao livre deslocamento, à propriedade, entre muitos outros. Não são cidadãos, no sentido jurídico da palavra. Os apátridas são comumente alvo de arbitrariedades. São vitimas em potencial para o crime de tráfico de pessoas, o que fere diretamente os Direitos Humanos.


4. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas – 1954[7]

Criada em Nova Iorque, apesar de ser datada de 1954, época da realização da Conferência de Plenipotenciários convocada pela “Resolução 526 A” do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas entrou em vigor apenas no ano de 1960. Atualmente, possui 68 Estados Partes, proporção considerada baixa quando levamos em consideração o quantitativo de países membros da ONU, (atualmente 193).[8]

Os três últimos países a ratificarem a dita Convenção foram Croácia, Nigéria e Filipinas, em setembro de 2011. A adesão da Croácia foi comemorada pelo ACNUR, uma vez que vivem no país cerca de 1.700 cidadãos da ex-Iugoslávia que são ou correm o risco de se tornarem apátridas.[9] As Filipinas são o primeiro Estado do sudeste asiático a aderir à Convenção de 1954. No Brasil a Convenção foi promulgada e publicada em 22 de maio de 2002, através do Decreto 4.246/2002.[10]

Após conceituar “apátrida” como sendo toda pessoa não considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional (art.1º), a Convenção exclui dessa categoria aqueles que recebem assistência de outros órgãos das Nações Unidas além do ACNUR. O documento também exclui do conceito aqueles que cometeram crimes de guerra, crimes contra a paz ou a humanidade, ou praticaram um grave crime de direito comum fora do país de residência antes da admissão no referido país, ou ainda os que praticaram atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. (art. 2º)

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Nos termos da Convenção, além de direitos os apátridas também possuem deveres, como por exemplo, a obrigação de respeitar as leis e regulamentos do país onde se encontram, assim como as medidas adotadas para a manutenção da ordem pública. Em seu artigo 12, a Convenção garante que o apátrida será submetido às normas do Estado do seu domicílio, ou, na falta destas, às de seu país de residência. Deve, então, haver uma relação de respeito mútuo entre o Estado Contratante[11] e o apátrida, de modo a se evitar qualquer tipo de preconceito ou tratamento diverso em relação ao cidadão nato.

A Convenção dá prioridade aos apátridas decorrentes da Segunda Grande Guerra e àqueles chamados de “marítimos apátridas” (art. 11º), por viverem como tripulantes de um navio com bandeira de um país contratante. O documento trata também da condição jurídica do apátrida, tutelando a possibilidade de pessoas incluídas nesse instituto incorporarem bens a seu patrimônio, associarem-se, possuírem emprego ou trabalharem por conta própria (arts. 13º, 15º, 17º e 18º, respectivamente).

Assim como os apátridas possuem deveres em relação aos Estados que os recebem, estes também possuem obrigações. O país recebedor, segundo os artigos 21, 22, 23, 24, 27 e 28 da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, deve oferecer ao apátrida, respectivamente, habitação, ensino, assistência pública, trabalho e previdência social, documentos de identidade e viagem, entre outros.

O documento garante, por fim, em seu artigo 31, que apátridas legalmente fixados em território de um país não podem ser expulsos, exceto por motivo de ordem pública ou de segurança nacional. Os Estados Contratantes devem criar um ambiente favorável à adaptação dessas pessoas, além de facilitar a integração e naturalização das mesmas reduzindo eventuais taxas e encargos burocráticos (art. 32).


5. Convenção para Redução dos Casos de Apatridia – 1961

A Convenção para Redução dos Casos de Apatridia foi elaborada em Nova York, em 30 de agosto de 1961, entrando em vigor internacionalmente em 13 de dezembro de 1975. Essa Convenção foi criada com o intuito precípuo de estabelecer mecanismos capazes de diminuir a incidência dos casos de apatridia no mundo. Após a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, a Organização das Nações Unidas, através do ACNUR, preocupou-se em aprofundar ainda mais os estudos e análises acerca do fenômeno da apatridia, podendo ser considerado como protagonista na elaboração desse documento.

Atualmente, são quarenta os Estados Partes dessa Convenção, entre eles o Brasil, que aprovou o seu texto em outubro de 2007. Tal aprovação é consequência de um caminho iniciado em 2001, quando a proposta foi enviada à Câmara dos Deputados pela Mensagem n. 370/2001 passando então a tramitar no Congresso Nacional. A aprovação, formalizada no Decreto Legislativo nº 274/07[12], foi publicada no Diário Oficial da União no dia 05 de outubro de 2007. 

O art.1º dessa Convenção versa sobre a nacionalidade, tratando da obrigação dos Estados Contratantes em reconhecê-la de modo originário àqueles que nasceram em seu território, de forma que estes não se tornem apátridas. O Estados devem também conceder a nacionalidade derivada àqueles que, consoante às leis, a peticionarem, diminuindo assim os casos de apatridia. Nesse segundo caso, porém, a concessão de nacionalidade ao apátrida está subordinada a algumas condições, quais sejam, o requerimento deve ser apresentado dentro de um período fixado pelo Estado Contratante, que deverá começar antes dos 18 anos do interessado e terminar depois dos 21; o requerente deve ter residido habitualmente no território do país, por um período não superior a cinco anos imediatamente antes do requerimento ou 10 anos ao todo; o interessado não pode ter sido condenado por crime contra a segurança nacional ou por crime punido com mais de cinco anos de prisão e, por último, deve sempre ter sido apátrida. 

A Convenção de 1961 discorre também, em seu artigo 2º, acerca de casos de menores em situação de abandono, afirmando que estes devem receber a nacionalidade do país onde foram encontrados. Aqueles que nascerem a bordo de navios ou aeronaves deverão ser considerados como tendo nascido no território da bandeira ou da matrícula desses (art. 3º).

Ainda, a fim de diminuir os casos de apatridia, a Convenção condiciona os casos de perda de nacionalidade - seja por mudança no estado civil do indivíduo seja por reconhecimento de filiação de uma criança - à aquisição de outra nacionalidade. Desse modo, só perderá a nacionalidade aquele que puder adquirir outra. O fato de um cônjuge perder a nacionalidade não implica que o outro também a perca. O mesmo acontece com os filhos em relação aos pais.

A Convenção de 1961 prevê algumas possibilidades nas quais o Estado Contratante pode privar o indivíduo de sua nacionalidade, entre elas a ocasião em que o naturalizado volta a residir no seu país de origem, lá permanecendo por um período maior do que o permitido pelo Estado Contratante, caso não declare a intenção de conservar a nacionalidade; além dos casos em que a nacionalidade for obtida por declaração falsa ou fraude. Essas hipóteses devem estar expressas na lei interna do país (art. 8º). O documento, porém, proíbe aos países a cassação de nacionalidade que resulte em apatridia ou que ocorra por motivos raciais, éticos, religiosos ou políticos (art. 9º). Em casos de aquisição ou transferência de territórios os Estados envolvidos devem assegurar que os habitantes ali presentes não se tornem apátridas (art. 10º).

É conveniente explicitar o artigo 13 da Convenção no que se refere ao modo como deve ser interpretada:

Nenhuma disposição da presente Convenção será interpretada de modo a restringir a aplicação de disposições mais favoráveis relativas á redução da apatridia por ventura existentes na legislação nacional que esteja em vigor ou que entre em vigor em qualquer Estado Contratante, ou que constem de qualquer outra convenção, tratado ou acordo que esteja em vigor ou que entre em vigor entre dois ou mais Estados Contratantes. (Convenção para a diminuição dos casos de Apatridia, Nova York, 1961)

O artigo supracitado reforça a ideia de uma interpretação extensiva de direitos, no sentido de que a hermenêutica jurídica deve ser sempre exercitada em prol da diminuição dos casos de apatridia, favorecendo o indivíduo protegido pela Convenção. Ainda sobre a interpretação, caso haja qualquer controvérsia entre Estados, estes podem submetê-la à Corte Internacional de Justiça (CIJ).[13]

Para o ACNUR, as duas Convenções aqui mencionadas oferecem um importante marco normativo para prevenir casos de apatridia e proteger as pessoas que já se encontrem nessa condição. Nesse sentido, o órgão elenca seis motivos pelos quais entende que os Estados devam aderir a ambos os textos convencionais. O primeiro seria o próprio fato de serem normas internacionais, que dão ao tema um tratamento não encontrado em nenhum outro Tratado. O segundo é que as Convenções sobre apatridia ajudam a resolver conflitos de legislação e evitam que as pessoas sofram as consequências de eventuais lacunas nas leis de cidadania. O terceiro motivo, conforme o ACNUR, diz respeito ao fato de a prevenção da apatridia e a proteção das pessoas apátridas serem gestos que contribuem para a paz e a segurança internacional e para evitar as situações de deslocamento forçado. O quarto motivo é o da redução dos casos de apatridia ter como efeito a melhora dos níveis de desenvolvimento social e econômico dessas populações. A quinta razão baseia-se na ideia de que a resolução do problema da apatridia promove o Estado de Direito e contribui para melhorar a regulação da migração internacional. O sexto e último motivo pelo qual o ACNUR sugere a ratificação das Convenções de 1954 e 1961 sobre apatridia, é que tais documentos sublinham o compromisso dos países com os Direitos Humanos.


6. O caso dos “Brasileirinhos apátridas”

Tradicionalmente as constituições estabelecem a nacionalidade com os critérios juris solis e juris sanguinis. Pelo primeiro, será considerado um nacional todo aquele nascido no território do Estado, independentemente da nacionalidade dos seus pais. Já pelo segundo, será considerado um nacional todo descendente de nacionais, independentemente do local de nascimento. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, seguindo a tradição constitucional do País, manteve o sistema juris solis (artigo 12, I, a), ou seja, é considerado brasileiro, aquele nascido em território brasileiro, independente da nacionalidade dos pais. Assim, crianças, filhas de pais brasileiros, nascidas em outros territórios, não tinham sua nacionalidade reconhecida pelo Estado brasileiro. Caso o território de nascimento dessas crianças adotasse o critério juris sanguinis, a nacionalidade não era reconhecida por nenhum Estado.

Como já dissemos, no plano jurídico-político a nacionalidade é um vínculo entre o Estado e o indivíduo, que o torna parte de um povo. Porém, uma lacuna na Constituição de 1988 fez com que alguns filhos de brasileiros, nascidos no exterior, não possuíssem tal vínculo, nem com o Brasil, nem mesmo com o país em cujo território nasceram. Com o aumento do fenômeno migratório de brasileiros para outros países desde o final do século XX, a problemática dessas crianças (os chamados “brasileirinhos apátridas”) se agravou, culminando num intenso movimento de pais brasileiros na luta pelo reconhecimento da nacionalidade de seus filhos. A Organização Não-Governamental “Movimento Brasileirinhos Apátridas” foi precursora nesse processo.

Ricardo Glasenapp, explica que o movimento dos brasileirinhos apátridas foi iniciado por pais brasileiros que tiveram seus filhos nascidos no exterior e por este motivo tinham suas crianças como “brasileiros provisórios”,[14] enfrentando diversas dificuldades burocráticas. Os pequeninos possuíam um passaporte verde provisório, mas ao completarem 18 anos, caducando o passaporte, se tornariam automaticamente apátridas, a menos que viessem a fixar residência em território brasileiro. O movimento surgiu então para lutar por uma mudança no dispositivo constitucional específico, já que a revisão de 1994 ainda manteve a fonte do problema, fazendo aumentar gradativamente o número de crianças brasileiras em situação de apatridia.

Foi apenas em 2007 que a brecha constitucional causadora da apatridia foi revista através da aprovação da Emenda Constitucional nº 54/2007, que dá nova redação à alínea c do inciso I do art.12 da Constituição Federal, que passa a viger da seguinte forma:

Art. 12. São brasileiros:

I - natos:

c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.

Além disso, a referida Emenda acrescenta o art. 95 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz:

Art. 95. Os nascidos no estrangeiro entre 7 de junho de 1994 e a data da promulgação desta Emenda Constitucional, filhos de pai brasileiro ou mãe brasileira, poderão ser registrados em repartição diplomática ou consular brasileira competente ou em ofício de registro, se vierem a residir na República Federativa do Brasil.

Tais mudanças proporcionaram uma reversão ímpar no destino de mais de 200 mil pessoas que estavam fadadas à apatridia. Aqueles nascidos no estrangeiro, filhos de pais brasileiros, passaram a ter reconhecida sua nacionalidade nata, mesmo estando no estrangeiro, desde que registrados em repartição consular brasileira competente.

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Sobre os autores
Maxilene Soares Corrêa

Acadêmica de Direito pela Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí. Atua como estagiária do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, locada no Fórum da Comarca de Jataí. Atuou como conciliadora na extensão universitária da UFG. (Centro de Pacificação Social)

Raphael de Almeida Lôbo Oliveira

Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí. Atualmente trabalha no Banco Bradesco. Atuou como conciliador na extensão universitária da UFG. (Centro de Pacificação Social)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Maxilene Soares ; OLIVEIRA, Raphael Almeida Lôbo. Apontamentos sobre o fenômeno jurídico da apatridia no Brasil e no mundo contemporâneo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3445, 6 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23175. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Pesquisa desenvolvida no âmbito da disciplina de Direito Internacional dos Refugiados, no curso de Direito da Universidade Federal de Goiás, sob a orientação da Profa. MsC. Rosane Freire Lacerda.

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