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O valor do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro

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Resumo:


  • O ato inconstitucional pode gerar efeitos jurídicos válidos no direito brasileiro.

  • A decisão de inconstitucionalidade pode ter natureza constitutiva-negativa, permitindo que a lei inconstitucional produza efeitos até o momento da declaração.

  • Leis como a 9.868/99 e 9.882/99 permitem ao STF restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, podendo decidir que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento definido.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

III -  Hipóteses infraconstitucionais de atribuição de efeitos ao ato inconstitucional.

1 A “coisa julgada inconstitucional”.

Importa verificar se a declaração de inconstitucionalidade no controle abstrato importa em anulação das decisões judiciais proferidas ao amparo de lei declarada inconstitucional. Em caso negativo, é forçoso reconhecer que o ato inconstitucional gera efeitos válidos no direito positivo brasileiro.

Após defender que a inconstitucionalidade implica na nulidade do ato, Gilmar Ferreira Mendes ressalva:

“Não se deve supor, todavia, que a declaração de inconstitucionalidade afete todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. Embora o nosso ordenamento não contenha regra expressa sobre o assunto e se aceite, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade, concede-se proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato individual (Einzelaktebene) através das chamadas fórmulas de preclusão.”

“Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade”[24].

Com esteio nesse entendimento, o autor defende que a sentença criminal transitada em julgado pode ser rescindida a qualquer tempo, já que inexiste prazo decadencial para a propositura de revisão criminal no direito positivo brasileiro.

Por outro lado, o processo civil brasileiro fixa o prazo decadencial de dois anos para a propositura da ação rescisória. Desta forma, o autor ensina que após tal prazo está fechada a via reformadora, ainda que o Supremo Tribunal Federal reconheça a inconstitucionalidade da lei sob a qual se fundou o comando judicial transitado em julgado[25].

Prosseguindo, o autor menciona que somente pela via da rescisória pode-se obstar o curso de ação de execução fundada em título judicial constituído sob o amparo da lei declarada inconstitucional, jamais por embargos à execução. Isto porque não há autorização legal expressa para que se oponha a referida defesa do executado na hipótese de decisão proferida com base em lei declarada inconstitucional[26].

Assim, por força da coisa julgada absoluta, é possível afirmar que o direito positivo brasileiro confere efeitos jurídicos ao ato inconstitucional – pelo menos no que se refere à decisão judicial não-criminal proferida com base em lei inconstitucional.

2 A suspensão da eficácia da norma e a inconstitucionalidade por omissão.

O tema da inconstitucionalidade por omissão tem como pano de fundo as normas constitucionais programáticas, ou seja, aquelas que expressam um objetivo a ser perseguido pelo Estado constitucional. Desta forma, entende-se que o legislador infraconstitucional deve agir de forma a colmatar o ordenamento jurídico, concretizando os desígnios inscritos na Carta Política.

Dessa forma, tem-se a inconstitucionalidade por omissão em duas hipóteses: a primeira, quando o órgão legislativo permanece totalmente inerte – omissão total; a segunda, quando ele não satisfaz integralmente o objetivo constitucionalmente desejado – omissão parcial[27].

Além disso, é perfeitamente possível que se leve à apreciação do Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade do ato tido nesse contexto por “defeituoso” ou “incompleto”.

Aqui importa lembrar a ressalva feita por Gilmar Ferreira Mendes:

“Aceita a idéia geral de que a declaração de inconstitucionalidade da omissão parcial exige a suspensão de aplicação dos dispositivos impugnados, não se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicação excepcional da lei inconstitucional traduz exigência do próprio ordenamento constitucional”[28].

Para evidenciar que a hipótese aqui ventilada não é cerebrina, transcreva-se o exemplo colacionado pelo sobrecitado autor:

“Se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, em processo de controle abstrato da omissão ou mesmo em processo de controle abstrato de normas (...), de que a lei que fixa o salário mínimo não corresponde às exigências estabelecidas pelo constituinte, configurando-se, assim, típica inconstitucionalidade em virtude de omissão parcial, a suspensão de aplicação da lei inconstitucional – assim como sua eventual cassação – acabaria por agravar o estado de inconstitucionalidade. É que, nesse caso, não haveria lei aplicável à espécie”[29].

Desta forma, ainda que se reconheça a suspensão da aplicação da lei como conseqüência fundamental da declaração de inconstitucionalidade, a sua aplicação parece ser exigida pela própria Constituição.

Assim, a própria Carta Fundamental, embora não o faça expressamente, permite que se imprimam efeitos jurídicos ao ato inconstitucional.

3 Lei revogada anteriormente à nova Constituição.

Toda a discussão travada até aqui se assenta sobre a premissa de que a pode ser judicialmente apreciada a colisão entre o ato e a Constituição vigente à época do controle.

De fato, lei que foi revogada antes da Constituição atual não pode ser objeto de ação que suscite o controle concentrado de inconstitucionalidade, à míngua de permissivo legal.

Entretanto, pode-se imaginar que uma lei promulgada anteriormente à Constituição em vigor tenha sido revogada (melhor dizendo, não recepcionada) pela Constituição anterior. No entanto, se tal lei não foi expressamente retirada do mundo jurídico (por resolução senatorial, por revogação legislativa expressa ou por ação direta de inconstitucionalidade) é também possível que ela tenha gerado uma série de relações de trato sucessivo.

Nesta hipótese, a lei que era inconstitucional frente à Carta anterior não poderá ser objeto de controle em abstrato (já que ele só se autoriza no caso de violação da Constituição atual), permanecendo em vigor.

Dircêo Torrecillas Ramos assim coloca a questão:

“Se neste caso não se pode aplicar a Constituição anterior, se a lei revogada não é objeto de ação direta e ainda sendo uma lei revogada anteriormente à promulgação da Constituição em vigor, isto significa que (...) algo nulo, que nunca existiu produz efeitos e continuará produzindo (...), porque inconstitucional gerou e gera efeitos”[30].

Nesta hipótese, ao proibir que referida norma seja objeto de controle concentrado de constitucionalidade, a Constituição de 1988 permite que ato materialmente inconstitucional gere efeitos jurídicos.


IV – Análise do tema sob os auspícios das Leis 9868/99 e 9882/99.

1 A possibilidade de fixação do termo inicial da inconstitucionalidade.

Até o presente momento, tratou-se de hipóteses normativas que previam tacitamente que o ato inconstitucional gerasse efeitos jurídicos válidos, seja escapando ao controle concentrado, seja como exigência lógica deste controle.

O presente capítulo trata de situação diversa.

O estudo dos efeitos do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não pode passar ao largo de uma análise das Leis 9.868/99 e 9.882/99, que deram novo fôlego à discussão.

Os referidos diplomas normativos pretenderam disciplinar os procedimentos de declaração de inconstitucionalidade e de constitucionalidade pela via direta, bem como regular o procedimento da ação de descumprimento de preceito fundamental. Estabeleceram que, no exercício do controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal poderá “restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (artigo 27 da Lei 9.868/99 e artigo 11 da Lei 9.882/99).

É importante notar que a Constituição portuguesa encarta em seu artigo 282, n.º 4 preceito semelhante ao dos sobrecitados artigos 27 e 11. Sobre tal circunstância, Elival da Silva Ramos afirma:

“A nosso ver, considerando-se que as características do sistema de controle de constitucionalidade luso apontam, em relação ao vício de inconstitucionalidade, para a aplicação de uma sanção de nulidade, de pleno direito, o disposto no art. 282, n.º 4, da Constituição há de ser interpretado no sentido de ter o Constituinte conferido ao Tribunal Constitucional o poder de convalidar parcialmente o ato legislativo sancionado com nulidade, de modo que permita a produção dos efeitos a que se predispunha, tomando-se como limite máximo dessa convalidação a data da publicação da decisão declaratória de sua inconstitucionalidade”[31].

Inicialmente, perceba-se que o legislador infraconstitucional seguiu a maioria dos doutrinadores pátrios e utilizou o enfoque eminentemente processual para tratar dos efeitos do ato inconstitucional.

Sobre os dispositivos, comenta Alexandre de Moraes:

“(...) permitiu-se ao STF a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, seja em relação à sua amplitude, seja em relação aos seus efeitos temporais...”.

“Em relação à amplitude dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a regra geral consiste em que a decisão tenha efeitos erga omnes, decretando-se, conforme já analisado, a nulidade total de todos os atos emanados do poder Público com base na lei ou ato normativo inconstitucional. (...) Excepcionalmente, poderá o Supremo Tribunal Federal (...) limitar esses efeitos, seja para afasta a nulidade de alguns atos praticados pelo Poder Público com base em norma declarada inconstitucional, seja para afastar a incidência dessa decisão em relação a algumas situações, seja, ainda, para eliminar, total ou parcialmente, os efeitos repristinatórios da decisão”.

Quanto à possibilidade de fixar o termo a partir do qual a decisão de inconstitucionalidade gera seus efeitos, o sobrecitado autor esclarece:

“Essa hipótese de restrição temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade tem limites lógicos. Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos, qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão, data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos” [32] (todos os grifos são do autor).

De imediato, faça-se um pequeno reparo ao contido no último parágrafo excerto supratranscrito. Os próprios dispositivos das sobrecitadas Leis determinam que o Supremo Tribunal Federal poderá decidir que a declaração de inconstitucionalidade só tenha efeitos a partir do seu trânsito em julgado. Este momento processual só ocorre após a publicação da decisão e o transcorrer dos prazos para a interposição de recursos. Assim, afigura-se possível que a decisão tenha efeitos a partir do trânsito em julgado, momento processualmente posterior à publicação da decisão em Diário Oficial.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho evidencia que o cerne da problemática sobre a retroatividade dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade é, em verdade, a discussão acerca dos efeitos do ato inconstitucional no direito brasileiro. Comentando os mesmos artigos 27 da Lei 9868/99 e 11 da Lei 9882/99, o autor explicita:

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“... o ato inconstitucional não é mais, como ensinavam doutrina e jurisprudência, nulo e írrito.”

“É contra a índole do direito admitir que um ato nulo somente possa deixar de produzir efeitos ‘a partir do... trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado’”.

“Conclusão óbvia, a violação da Constituição pode ser ‘direito’ positivo, mesmo depois de reconhecida, no processo competente, pelo Supremo Tribunal Federal, ‘guarda da Constituição’”.

“E, mais. A decisão pode ‘restringir’ os seus efeitos... isto significa, por exemplo, que ela poderá considerar válidos atos inconstitucionais, ou dispensar o Estado de devolver o que percebeu em razão de tributo inconstitucionalmente estabelecido e cobrado... Donde resultará a inutilidade do controle”[33].

Assim, apesar de ter empregado técnica distinta, a Lei 9882 estabeleceu (ou esclareceu) que o ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não é nulo de pleno direito. Nesse sentido, à luz das Leis 9.868 e 9.882 a decisão de inconstitucionalidade tem natureza constitutiva-negativa, e não declaratória[34].

2 A constitucionalidade dos artigos 27 da Lei 9868/99 e 11 da Lei 9882/99.

Segundo se demonstrou anteriormente, é forçoso reconhecer a natureza constitutiva-negativa da decisão de inconstitucionalidade como decorrência da própria lógica a partir da qual se orienta o ordenamento jurídico, explicitada pelas Leis 9.868 e 9.882.

A questão que surge, a partir de então, é saber se é constitucional a atribuição de competência ao Supremo Tribunal Federal para determinar a partir de quando os efeitos do ato inconstitucional se nulificam. Nesse momento, calha uma importante distinção.

Uma coisa é dizer que a natureza da decisão de inconstitucionalidade é desconstitutiva: pelas razões traçadas neste estudo, inegavelmente o é.

Outra coisa é dizer que no direito positivo brasileiro seus efeitos são sempre e necessariamente retroativos: por força das circunstâncias até aqui analisadas, nem sempre, já que há as mencionadas hipóteses da coisa julgada inconstitucional, da aplicabilidade da lei considerada inconstitucional por omissão parcial e da impossibilidade de interposição de ação direta contra norma que contrarie a Constituição anteriormente em vigor. O direito positivo brasileiro não opta pelos efeitos necessariamente retroativos da decisão que decreta a inconstitucionalidade (por alguns equivocadamente traduzido como sua natureza declaratória).

A aferição da constitucionalidade dos artigos 11 e 27 tem contornos bem mais definidos: importa em dizer que a Constituição permite – expressa ou tacitamente – que o legislador ordinário confira competência a um órgão específico para decidir a partir de quando os efeitos do ato inconstitucional se nulificam.

Elival da Silva Ramos defende a inconstitucionalidade do artigo da Lei 9.882 que confere ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de atribuição de efeito não retroativo à declaração de inconstitucionalidade:

“(...) as características de nosso sistema de controle, extraídas das disposições pertinentes da Constituição de 1988, conduzem à conclusão, pode-se dizer pacífica, doutrinária e jurisprudencialmente, de que a lei inconstitucional, entre nós, é sancionada com nulidade.”

“Como se admitir, entretanto, que disposição infraconstitucional confira ao Supremo Tribunal Federal um poder de saneamento parcial da invalidade legislativa, em face do descumprimento de preceito fundamental, invalidade, com suas características de nulidade de pleno direito, que brota do sistema de controle disciplinado em nível superior?”

“Em suma, olvidou-se o Legislador Ordinário que a matéria exigia disciplina em nível constitucional e, com isso, acabou perpetrando rematada inconstitucionalidade, ao permitir algo que a Constituição não permite” [35].

No mesmo sentido, Gilmar Ferreira Mendes sinaliza:

“Embora o Supremo Tribunal Federal não tenha logrado formular esta conclusão com a necessária nitidez, é certo que também ele parece partir da premissa de que o princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional”[36].

Analisando o artigo 11 da Lei 9882/99, Ives Gandra da Silva Martins é categórico:

“Não me parece possa ser o texto mencionado tido por constitucional, uma vez que adota princípio do Direito alemão de não possível hospedagem pelo Direito brasileiro.”

(...)

“Se uma norma tiver sido afastada do cenário jurídico nacional pelo vício maior da inconstitucionalidade, não há como considerar seus efeitos válidos, como se constitucional fosse no passado ou – o que é pior – mantê-los com validade ainda por certo período de tempo, como ocorre no Direito germânico, de conformação diversa do Direito brasileiro”[37].

Analisem-se as conclusões a partir de sua premissa.  Os excertos acima tomam como certo um fundamento até aqui rechaçado: conforme o exposto, o direito positivo brasileiro (ou o sistema de controle de constitucionalidade) não define que os efeitos da decisão de inconstitucionalidade são sempre e irremediavelmente retroativos. Assim, esta tese não soluciona a questão da inconstitucionalidade dos artigos 11 e 27.

Linhas adiante, Gilmar Ferreira Mendes menciona que foi objeto de discussão no Congresso Constituinte de 1986-1988 um dispositivo que autorizava o Supremo Tribunal Federal a determinar se a lei que teve sua inconstitucionalidade declarada no controle abstrato de normas haveria de perder eficácia ex tunc, ou se a decisão deixaria de ter eficácia a partir da data de sua publicação[38]. Afirma que tal projeto inspirava-se no sobredito artigo 282, parágrafo 2.º da Constituição Portuguesa e foi rejeitado pelo Congresso Constituinte.

Embora esta circunstância evidencie que o constituinte originário não pretendia atribuir ao Supremo Tribunal Federal semelhante poder, ela não leva inexoravelmente à inconstitucionalidade dos questionados artigos 11 e 27. Isto porque a inconstitucionalidade é a contrariedade em face do direito posto e não da intenção do legislador constituinte.

Outro óbice erguido contra os multicitados artigos 11 e 27 é que a Constituição de 1988 não permitiu expressamente a fixação do termo inicial da inconstitucionalidade. Desta sorte, lei infraconstitucional não poderia fazê-lo.

Um reparo inicial a fazer é que o artigo 102, parágrafo 1.º da Constituição expressamente prevê edição de lei ordinária para a regulamentação da ação de descumprimento de preceito fundamental. Desta sorte, parece que o argumento em referência não se presta a macular a Lei 9.882, que se refere unicamente ao procedimento de julgamento daquela ação.

Ingo Wolfgang Sarlet tem esta solução por simplista, afirmando que não há autorização constitucional para que qualquer das Leis manipule os efeitos das referidas ações:

“À medida que no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental igualmente se encontra prevista a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade e constitucionalidade, inclusive em conexão com decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade e/ou ação declaratória de constitucionalidade, não haveria como aceitar tal assimetria de tratamento. Com efeito, (...) a argüição de descumprimento integra o cada vez mais complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro e, tendo em conta os diversos pontos de contato com as demais ações de controle abstrato, não pode ser pura e simplesmente analisada de forma isolada”[39].

O entendimento supratranscrito parece não prevalecer, embora haja paralelismo entre a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental. Isto porque a discriminação de tratamento foi feita pela própria Constituição, o que não se pode ter por irrelevante ou mesmo contrário ao sistema jurídico – que é por ela própria inaugurado.

De qualquer forma, o que há de realmente relevante é verificar se a regulação dos dispositivos constitucionais por lei ordinária (expressamente prevista, no artigo 102, parágrafo 1.º ou logicamente deduzida, no caso do artigo 102, I, a) poderia ou não ter chegado a autorizar o Supremo Tribunal Federal a fixar o termo inicial da inconstitucionalidade.

A este respeito, Ingo Wolfgang Sarlet ensina:

“(...) pela natureza e importância do tema, envolvendo a ampliação dos poderes do Supremo Tribunal Federal em relação aos demais órgãos judicantes e administração pública, a regulação por lei ordinária haveria – pelo menos assim nos parece lícito argumentar – de se restringir a aspectos ligados a questões de ordem organizacional e procedimental (...), sendo esta, salvo melhor juízo, uma alternativa plausível para se interpretar a remissão à lei prevista no art. 102, § 1.º, de nossa Carta Magna”[40].

E, linhas adiante:

“(...) as dúvidas geradas pela formulação adotada pelo legislador (...) tornam extremamente penosa a tarefa de um pronunciamento sobre a legitimidade constitucional (...) das inovações no que diz com a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e seu diferimento no tempo.”

(...)

“Com efeito, postergar no tempo, para além das alternativas ex tunc e ex nunc (...) os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, isto é, a nulidade do ato, constitui fator de grande insegurança jurídica e institucional, por si só potencial ameaça ao princípio do Estado de Direito, além dos graves riscos de ofensas aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos”[41].

Como exemplo, o autor cogita da declaração de inconstitucionalidade da cobrança de um tributo. Por força dos permissivos legais ora discutidos, o Supremo Tribunal Federal poderá negar aos contribuintes o direito de repetição, ou mesmo autorizar a exação por mais alguns meses.

No mesmo sentido, Sérgio Resende de Barros defende que seria necessária uma emenda constitucional para que se autorizasse o Supremo Tribunal Federal a determinar o termo inicial dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade[42].

Identifica-se, assim, que o cerne da discussão está na contraposição de dois institutos constitucionais: a independência dos Poderes e as suas esferas de competência.

Obviamente, a independência constitucionalmente garantida não é absoluta, pois a ela corresponde a limitação de um poder pelo outro, mas implica em dizer que apenas pode ser limitada a independência pelo mesmo diploma que a garante.

Nesse sentido, é importante realçar que ao atribuir competências aos Poderes da República a Constituição dá a própria conformação do sistema brasileiro de tripartição de poderes.

Desta forma, lei ordinária que limita a competência constitucionalmente assegurada a um dos Poderes da República é inconstitucional, porque fere diretamente o princípio da independência. Pelo mesmo motivo, também  inconstitucional é a lei ordinária que atribui ao Judiciário atribuições que seriam, por sua natureza, próprias a outro Poder.

É por esta ótica que se deve analisar a constitucionalidade dos multicitados artigos 11 e 27. A decisão de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal implica em atribuir ao texto infraconstitucional uma interpretação constitucionalmente válida ou a extirpar do ordenamento jurídico uma norma absolutamente contrária à Constituição. Na verdade, o Supremo Tribunal Federal esclarece qual é o conteúdo da Constituição, e, no contexto das ações regulamentadas pela Lei 9868 e 9882, seu entendimento tem força vinculante.

Isto equivale a dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal Federal entende que ela seja. Aí se evidencia o caráter político do controle de constitucionalidade, já assinalado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho[43].

Assim, pela decisão de inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal edita uma norma cogente, geral e abstrata – função tipicamente atribuível ao Poder Legislativo.

Quanto aos limites fixados pela própria Constituição, não se pode afirmar que o princípio da independência dos Poderes esteja vilipendiado – pois, conforme afirmado anteriormente, é pela técnica da repartição de competências que a Constituição define os termos em que a os Poderes são independentes. No entanto, a legislação infraconstitucional que transige estes mesmos limites fere o princípio da independência.

Desta forma, embora o ato inconstitucional no direito positivo brasileiro não seja sempre e necessariamente nulo de pleno direito, é inconstitucional a possibilidade de fixação do termo inicial dos efeitos da inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal trazida pelos artigos 27 e 11 das Leis 9868 e 9882.

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Sobre o autor
Alexandre Magno Borges Pereira Santos

Mestre em Direito Público, Pós-graduado em Direito Processual Civil, Procurador Federal (AGU)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Alexandre Magno Borges Pereira. O valor do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3457, 18 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23255. Acesso em: 22 dez. 2024.

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