Todos os anos, no dia 3 de dezembro, a ONU comemora a grande vitória que foi a entrada em vigor da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e seu Protocolo, em 1988, que constituem um marco jurídico na tutela dos direitos de quase 650 milhões de pessoas ou 10% da população mundial, na sua maioria cidadãos de países pobres que foram vítimas de doenças e violência.
Essa Convenção passou a integrar o Direito Brasileiro com a sua aprovação pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no. 186 de 09 de julho de 2008, no exercício da sua exclusiva competência prevista no art. 49, I da Constituição da República.
Foram consagrados os princípios gerais de respeito pela dignidade, da liberdade de escolha e independência das pessoas, a não discriminação, a participação plena e efetiva na sociedade, igualdade de oportunidades, a acessibilidade, o respeito à identidade e ao desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência.
A Legislação Brasileira, sempre na vanguarda graças ao espírito brasilianista arrebatador reconhecido pelo grande cientista Darcy Ribeiro, é de ser invejada pelos demais países da linha do trópico de Câncer. Contamos com ricos instrumentos legais que buscam a viabilização daqueles direitos resguardados pela Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência, prevendo nossa Constituição da República a aposentadoria especial (art. 40, §4º, I, introduzido pela EC47/2005) e outros direitos relativos à inclusão social e acessibilidade, com regulamentação legal de dar orgulho.
A despeito de todas as críticas próprias da Democracia e do exercício livre do direito de informação, são os Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais aqueles que mais se dedicam na realização dos direitos das pessoas portadoras de deficiência.
Vemos programas para o transporte urbano pelas prefeituras, reserva de vagas acessíveis em locais públicos e privados, atuação incessante do Ministério Público para afirmar a legislação especial e cobrar a realização de um estado mais humano e inclusivo para as pessoas portadoras de deficiência.
E o Judiciário?
O objetivo das Nações Unidas de promover uma maior compreensão dos assuntos concernentes à deficiência e para mobilizar a defesa da dignidade, dos direitos e o bem-estar das pessoas, não pode ser dissociado de uma ação inovadora e despreconceituada do Judiciário, ao qual se reconhece o poder de restaurar e preservar os direitos e os valores da cidadania, da dignidade da pessoa, os valores do trabalho e o pluralismo de ideias e crenças, para a construção de uma sociedade solidária, justa, com promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
Centenas de ações civis públicas e obrigações de fazer relativas aos direitos das pessoas portadoras de deficiência são julgadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do Brasil. Todas essas demandas que tendem à garantia dos valores conquistados pelas democracias, cobram do Judiciário uma postura de sintonia.
Mas toda essa enorme quantidade de julgamentos ainda não foi suficiente para sensibilizar a “cabeça dura” de alguns setores da Magistratura, ainda prisioneiros de suas douradas abóbadas blindadas às inovações e necessidades de construção de um mundo mais justo, melhor e com menos desigualdades. A sociedade cobra dos seus juízes a possibilidade de diálogo e que eles exerçam suas funções com o pé no chão, tendo conhecimento da experiência diária das dificuldades do seu jurisdicionado, do servidor, do advogado, para a que Justiça seja de verdade e não uma ficção com atores entogados na sua vaidade.
Já testemunhei perplexo um julgamento em que o Judiciário decidiu pela negativa de concessão de isenção fiscal à pessoa deficiente, sob o argumento de que ela não tinha carteira de habilitação, recusando ao deficiente o direito de adquirir um automóvel a ser conduzido pelos seus pais, dando eloquente sinal de que muita coisa ainda tem que ser feita para conectar o juiz com a moderna legislação e dar-lhe uma pitadinha de sensibilidade humana.
Recentemente, em um pedido administrativo de reconhecimento da aposentadoria especial do servidor público portador de deficiência, na ausência de norma regulamentadora e sob o influxo de massiva jurisprudência injuncional do Supremo Tribunal Federal, o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, eminente Desembargador Ivan Sartori, fez a proposição de uma excelente resolução sobre o assunto, evidenciando sua vontade aguerrida de continuar a fazer uma eficiente administração da Corte com transparência e muito trabalho, pondo em prática sua afirmação de que “as mudanças têm que acontecer para que estejamos integrados com as necessidades das pessoas e do mundo” (“Tribuna da Magistratura, março/2012, ano XXI, no. 208).
Contudo, nesse mês de novembro, sua iniciativa, sob a peneira do Conselho Superior da Magistratura, já recebeu sinal de estranheza por aquele Órgão, surpreendendo o parecer de um dos membros do Conselho, Presidente da E. Seção de Direito Privado, que enxerga o deficiente como inválido, confundindo institutos nitidamente diversos da aposentadoria por invalidez daquela prevista como especial para a pessoa portadora de deficiência, aviltando o conceito de que deficiência é limitação a ser superada pelo cumprimento da lei e por decisões justas e sensatas daqueles que são responsáveis em distribuir Justiça. Decerto, como sempre digo, o juiz tem que estar em constante contato com a realidade, para não enunciar absurdos que ferem o bom-senso da pessoa mais modesta. A idéia preconceituosa de que o deficiente sempre deve ser um total inválido e miserável, chorando por todos os cantos, é extremamente ofensiva e choca o sentimento de muitos servidores públicos portadores de paraplegia, que exercem com aptidão e muita eficiência suas funções, com direito de serem enquadrados para efeito de aposentadoria especial da PcD (pessoa com deficiência), mas que tem o direito moral fundamental de não ser considerado inválido!
Nada mais preocupante quando o próprio Judiciário se esconde na toca do preconceito! Vale lembrar um trecho do artigo do eminente juiz federal Roberto Wanderley Nogueira ao comentar sobre o preconceito às PcD, “as barreiras atitudinais podem-se alinhavar muitas formas, não importa se expressas ou veladas, estas últimas conforme mais comumente acontece nas sociedades abertas. Essa evidência universal, atualmente, corrobora uma outra observação, em nosso caso participativa e também evidente, baseada no comodismo ou na intolerância, de que por interferência das diversas formas de discriminação (máxime os preconceitos) a sociedade acaba aceitando, por omissão, a exclusão das pessoas com deficiência dos benefícios dessa mesma sociedade. E abrem mão do direito de demandar, em face de barreiras burocráticas que se interpõe idiopaticamente à sua frente. Para muitos, é menos vexatório deixar de exercer os próprios direitos do que serem submetidos a mais discriminação, agora por parte do próprio Estado ou daqueles atores que mais detêm a responsabilidade de os garantir pela razão do próprio ofício.” (in “Consultor Jurídico”, Conjur, 30.11.2012, http://www.conjur.com.br/2012-nov-30/roberto-nogueira-acesso-justica-pessoas-deficiencia).
Sem o apoio da sociedade, seja pela atuação de cada cidadão consciente e dos órgãos de tutela dos direitos protegidos pela Convenção Internacional dos Direitos, ficará difícil a construção de um país mais verde-amarelo. Mas sem um Judiciário que não se comunica com a cidadania e refratário ao direito especial moderno, corre risco todo o esforço das Nações Unidas e da sociedade brasileira para influenciar a promoção de políticas, planos, programas e ações de inclusão, de redução das desigualdades e de assegurar direitos compensatórios e de ajustes das pessoas portadores de deficiência.