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A lesão, a teoria da imprevisão e a resolução por onerosidade excessiva como instrumentos para a efetivação do princípio da solidariedade no Direito Contratual

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08/01/2013 às 14:07
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A legislação civil criou mecanismos capazes de fazer valer os valores constitucionais e os novos princípios. O Código Civil de 2002 foi construído sob as luzes da Constituição e prevê a função social do contrato, a boa fé nas relações contratuais e, ainda, possui uma linguagem aberta que permite a sua adaptação a cada caso concreto.

1.Introdução

Já não é novidade no cenário jurídico nacional a revitalização pela qual passa o Direito Civil após a edição do Código Civil Brasileiro de 2002. Trata-se da chamada constitucionalização dos institutos do direito privado – da propriedade, do contrato, da empresa, por exemplo – segundo a qual os conceitos ligados à essencialidade da autonomia privada sofreram alterações que os adaptam aos preceitos da Constituição de 1988.

Durante muitos anos vigeu no Brasil um Código Civil elaborado aos moldes do Código Civil Napoleônico, criado na França durante um período político liberalista[1]. Assim, desde o ano de 1916 até 2002, o Direito Civil brasileiro foi caracterizado por um amplo espaço de exercício da vontade individual para a efetivação do patrimonialismo que caracterizava a disciplina até então. Explica-se.

O ideal político liberalista apregoa uma intervenção estatal mínima nas relações econômicas particulares, de modo que o Estado deve garantir apenas, ao indivíduo, a liberdade necessária para que ele possa administrar seus interesses. Ressalte-se que este ideal não deixa de satisfazer, ainda que indiretamente, um interesse social, já que a própria sociedade, inserida nesse contexto político, deseja que a vontade individual seja a reitora dos negócios engendrados em seu meio[2]. E assim, a liberdade torna-se o vetor que permite a consolidação jurídica dos preceitos da igualdade formal do indivíduo e da autonomia privada. 

Entretanto, as transformações sociais pelas quais passou o mundo todo após a II Guerra Mundial são responsáveis pela insuficiência dos conceitos liberalistas e assim, a instauração do Estado social em muitos países gerou a revitalização desses conceitos, justificada pela necessidade de implementação da igualdade material e relativização da autonomia privada[3].

No Brasil, em que pesem as controvérsias de cunho meramente conceitual[4], o Estado social foi juridicamente implantado com a promulgação da Constituição em 1988, que restaurou as esperanças do povo com a redemocratização do país e trouxe consigo a primazia da dignidade da pessoa humana, um dos principais fundamentos da República. A previsão dos direitos fundamentais individuais e sociais também são características marcantes da nova era.

Além da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e dos direitos sociais, ressalta-se, para cumprir o objetivo pretendido por este artigo, o princípio da solidariedade, que aparece como nuance de vários preceitos constitucionais essenciais, especialmente, como objetivo fundamental da República, no inciso I do artigo 3º da Constituição[5].

Se é objetivo fundamental previsto na Lei Suprema a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o Código Civil, como legislação infraconstitucional que é, deve ser filtrado por estes objetivos. Isso significa que os institutos do direito privado devem ser exercidos de modo a garantir, para todo o meio social, a liberdade, a justiça e a solidariedade[6].

Em uma análise descurada, poderíamos concluir que a liberdade e a solidariedade são valores contrapostos, afinal, a liberdade, em tese, é exercida em nome de interesses puramente individuais e a solidariedade é um valor que considera o interesse do grupo. É, todavia, a imbricação desses valores que permite o alcance da justiça em um Estado Democrático de Direito.

Detalhe é que a inserção do princípio da solidariedade no ordenamento jurídico não significa a exclusão da liberdade como elemento fundamental do direito privado. A insuficiência do conceito liberalista necessitou de amoldamento constitucional por causa dos novos anseios sociais. Segundo MARTINS-COSTA,

“a palavra ‘solidariedade’ traduz categoria que exprime uma forma de conduta correspondente às exigências de convivência de toda e qualquer comunidade que se queira como tal, implicando a superação de uma visão meramente individualista do papel de cada um dos seus singulares membros e assim configurando elemento de coesão social. Essa categoria social (e igualmente ética e política) é apreendida pelo Direito na Constituição, indicando, em linhas gerais, a exigência de evitar, ou ao menos reduzir, a conflitualidade social mediante a superação de uma visão estritamente egoísta do Direito.”[7]

O Código Civil Brasileiro atual prevê instrumentos que permitem uma relação amistosa entre a solidariedade e a liberdade e, para cada um deles, cabe um estudo pormenorizado. Exemplos são a função social da propriedade, do contrato e da empresa, a boa fé objetiva, a nova interpretação contratual, a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, entre outros. Não é o objetivo desse artigo discorrer o conteúdo de cada um desses instrumentos.

O objetivo do presente artigo é analisar a incidência do princípio da solidariedade em um instituto privado caracterizado essencialmente pela liberdade: o contrato. Além de outros instrumentos que revitalizaram o negócio jurídico na seara civil, há três que se aplicam ao contrato e serão analisados adiante: a lesão como defeito do negócio jurídico, a teoria da imprevisão e a resolução por onerosidade excessiva. São instrumentos que se assemelham pela fonte que os que geram, mas que apresentam resultados diferentes que precisam ser avaliados com cautela.

A primeira parte do artigo é dedicada a um breve discurso sobre os princípios estruturais do contrato; após, serão apresentados os três instrumentos que excepcionam esses princípios, seu conceito e modo de abordagem pelo Código Civil. Almeja-se que, ao final, o leitor perceba linhas tênues que diferenciam os três instrumentos e que são relevantes para a sua aplicabilidade na prática forense, efetivando-se, assim, o princípio da solidariedade no Direito Contratual.


2.Caracterização dos princípios estruturais do Direito Contratual

O contrato é um instituto essencial do Direito Civil que atende aos interesses da sociedade relacionados à circulação de riquezas e também dos indivíduos quanto à autoregulação de seus interesses particulares.

Segundo PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, não é possível firmar uma data específica para o surgimento do contrato ao longo da história[8]. Mas foi a era moderna – séculos XVIII e XIX – o marco temporal que registrou a criação do chamado conceito clássico do contrato, estruturado sobre o tripé da autonomia privada, da igualdade formal dos contratantes e do princípio da obrigatoriedade contratual.

O contrato, neste contexto, pode ser definido como um instrumento de regulação de interesses individuais pela vontade das partes contratantes, que vinculam-se entre si e são iguais em direitos e deveres perante a lei.

Os princípios que compõem o conceito tradicional de contrato são, ainda hoje, basilares da relação jurídica que as partes estabelecem mutuamente e constituem uma regra sem a qual o laço negocial sequer pode existir. Entretanto, com o advento, no Brasil, da Constituição de 1988, esses princípios sofreram adaptações ao preceito da solidariedade. Estas acabam por caracterizar o que, muitas vezes, atualmente se delineia como princípios contemporâneos do Direito Contratual.

A seguir, analisar-se-á, à luz do conceito atual de contrato, cada um dos três princípios clássicos do Direito Contratual: a autonomia privada, a igualdade das partes e a obrigatoriedade do vínculo estabelecido entre elas.    

O contrato é, na sistemática contemporânea, um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, em que as partes disciplinam os efeitos patrimoniais de interesse privativo que desejam produzir. O negócio jurídico é disciplinado pelo Código Civil como a possibilidade de as pessoas manifestarem uma vontade destinada a um determinado objetivo lícito. As normas que caracterizam a regulamentação deste instituto possuem, em sua maioria, natureza permissiva e, assim, a manifestação da vontade é um fator imprescindível para a sua existência.

A pluralidade de agentes que caracteriza o contrato exige que o elemento ‘vontade’, quando manifestado pelas partes com a intenção de contratar, seja de comum acordo, destinado à produção de um mesmo resultado, ainda que os interesses sejam opostos (comprar e vender, por exemplo). Essa convergência de vontades é denominada de consentimento e, de acordo com ORLANDO GOMES,

“No exame dos elementos constitutivos do contrato, o consentimento apresenta-se como requisito típico, conquanto exigido, igualmente, na formação dos outros negócios jurídicos bilaterais. No contrato, porém, singulariza-se pela circunstância de que as vontades que o formam correspondem a interesses contrapostos.”[9]

A autonomia privada é a delimitação jurídica da liberdade que os indivíduos têm para manifestar sua vontade.[10] Ela se materializa na própria liberdade de vincular-se a outrem através do contrato, na escolha pelo indivíduo de com quem quer contratar e também quanto ao conteúdo do contrato. Diante da solidarização social do século XX, nenhuma destas liberdades pode, entanto, ser exercida de forma absoluta porque muitas vezes podem caracterizar-se como abuso.

É assim que a autonomia privada deve ser exercida não apenas para a satisfação individual dos contratantes, mas de modo a satisfazer o bem estar comum, não sendo dirigida para causar qualquer prejuízo à comunidade em que ela produzirá seus efeitos – é o princípio contemporâneo da função social do contrato[11] – nem ao indivíduo com quem se contrata – é o princípio contemporâneo da boa fé objetiva[12] e, para ambas circunstâncias, o princípio da horizontalidade dos direitos fundamentais[13].

Acerca da limitação da autonomia privada, PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO lecionam que:

“...vive-se um momento histórico marcado por disputas geopolíticas e imprevisão econômica, no qual o individualismo selvagem cedeu lugar para o solidarismo social, característico de uma sociedade globalizada, que exige o reconhecimento de normas limitativas do avanço da autonomia privada, em respeito ao princípio maior da dignidade da pessoa humana.”[14]

O princípio da igualdade formal, por sua vez, é típico das construções jurídicas erigidas nos séculos XVII e XIX e foi, sem dúvida, uma conquista excepcional no tempo em que havia desigualdades oriundas do regime absolutista. De cunho essencialmente liberal, representa a isonomia das pessoas perante a lei e, para o Direito Privado, significa a igual possibilidade de as partes exercerem a autonomia contratual.

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Entretanto, malgrado os benefícios de ordem formalmente jurídica que ainda vigem diante do ordenamento atual, verificou-se que nem sempre essa igualdade formal é suficiente para garantir uma isonomia material quando as partes estiverem em uma relação em que uma delas é hipossuficiente em relação à outra.[15] A hipossuficiência pode ser decorrente do avanço tecnológico e científico, da massificação das contratações, dos contratos de adesão, do conhecimento técnico por apenas uma das partes acerca do conteúdo do contrato, do aprimoramento do marketing, entre outras.

Atualmente, a igualdade vai além dos limites formais da Constituição. Não se concebe a construção de uma sociedade solidária sem considerar as diferenças do plano material que acometem as pessoas. Em nome da efetiva isonomia das relações contratuais, o princípio contemporâneo do dirigismo contratual permite que, através de alguns instrumentos de ordem material e processual, haja intervenção do Estado nas relações particulares, de modo a prover o restabelecimento do equilíbrio substancial entre os contratantes. O Estado pode cumprir esta tarefa através das medidas previstas no Código de Defesa do Consumidor, da aplicação da teoria da imprevisão ou da invalidação contratual por vício da vontade, por exemplo.

   Por fim, destaca-se o princípio da obrigatoriedade contratual. Ninguém é obrigado a contratar, mas vinculando-se voluntariamente a outrem, o indivíduo tem a obrigação de cumprir a prestação estabelecida. Este é o lema do princípio em análise, que tem por finalidade assegurar as relações privadas.

Não fosse a obrigatoriedade uma característica fundamental das relações contratuais, as pessoas estariam à mercê da insegurança dos devaneios da vontade humana, por vezes instintiva e impensada. Por isso é que, desde a construção clássica do Direito Contratual, este princípio fornece força jurídica cogente ao consenso manifestado contratualmente.

Também denominado pela expressão latina pacta sunt servanda, esse princípio foi explicado por ORLANDO GOMES com as seguintes palavras:

“O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com a observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos.”[16]

É por causa das injustiças que podem derivar da absoluta manifestação de vontade e da estrita igualdade formal que o princípio da obrigatoriedade deve ser redimensionado no contexto atual. A força vinculante e intangível da relação contratual só deve preponderar se for justa, reforçando, mais uma vez, os ditames do art. 3º, I da Constituição. Caso haja manifesta desproporção entre as prestações assumidas, ainda que voluntariamente, pelas partes, o Estado pode (e deve) intervir na relação para modificar as cláusulas contratuais ou até mesmo invalidá-las.

Diante da breve exposição sobre os princípios fundamentais do Direito Contratual, é possível concluir que as partes podem, muitas vezes, conceber contratos incompatíveis com o princípio constitucional da solidariedade, seja pelo abuso da autonomia privada, seja pela desigualdade substancial dos contratantes, seja pela injustiça gerada pela obrigatoriedade do vínculo contratual.

Para remediar possíveis prejuízos, danos e injustiças decorrentes do mau uso das faculdades privadas, além das diversas doutrinas que se desenvolvem em torno de um Direito Civil contemporâneo, constitucionalizado, o Código Civil prevê alguns instrumentos que possibilitam a retomada da igualdade material entre as partes, gerando, assim, a efetivação da solidariedade nas relações particulares.  


3. Instrumentos para sanar a desproporção das prestações contratuais

Quando a desigualdade real entre as partes contratantes não é levada em conta, a manifestação irrestrita da vontade e o princípio da força obrigatória do contrato são mitigados em nome da justiça social e, mais especificamente, da justiça contratual. A noção de justiça contratual representa a adaptação do preceito constitucional do artigo 3º, I ao Direito Privado e, assim, liberdade e solidariedade imbricam-se para a consecução da justiça[17].

A equidade real entre as partes passa a ser, então, uma condição sine qua non da realização dos efeitos pretendidos pelas partes no contrato. Caso a relação contratual não seja de prestações equivalentes, gerando muitas vezes o enriquecimento ilegítimo de um contratante à custa do outro, a legislação permite a inferência do Estado – dirigismo contratual – para restabelecer a igualdade material, ainda que, para isso relativize a autonomia da vontade e a obrigatoriedade do contrato.

Nesse sentido, de acordo com LUIZ EDSON FACHIN,

“A paridade contratual vai informar não apenas a constituição do vínculo contratual, mas a hermenêutica de sua aplicação, pelo fato de que o momento da eficácia é aquele em que a desproporção fica mais saliente. Pelo mecanismo da eficácia, pode-se retroceder para o universo da própria validade do negócio jurídico. Desproporções geradas pelos efeitos do contrato demonstram que a paridade surge como um valor a ser seguido, o que permite uma ingerência na equação econômico-financeira daquela relação jurídico obrigacional.”[18]

É possível concluir que, com a constitucionalização do Direito Civil, o valor que baliza os princípios estruturais do Direito Contratual é a solidariedade, tudo em nome da construção de uma sociedade não apenas livre, nem apenas solidária, mas acima de tudo, justa. A intervenção estatal para resguardar a proporcionalidade das prestações pode ser detectada através de três institutos previstos no Código Civil: a lesão, a teoria da imprevisão e a resolução por onerosidade excessiva.

Os três institutos de revisão contratual são aplicados a partir de uma questão semelhante: a desproporção das prestações obrigacionais e a necessidade de efetivação do princípio da solidariedade. Mesmo assim, apresentam diferenças que adiante serão apresentadas.    

a) A lesão como defeito do negócio jurídico

A lesão é um defeito do negócio jurídico prevista no artigo 157 do Código Civil[19]. Para bem compreendê-la, faz-se necessária uma exposição, ainda que breve, da estrutura do negócio jurídico.

O negócio jurídico é uma espécie de ato jurídico humano lícito que, na teoria do fato jurídico[20], tem o condão de criar relações jurídicas desejadas pelo homem. De acordo com o esquema proposto por Pontes de Miranda[21], são três aspectos que caracterizam o negócio jurídico: a existência, a validade e a eficácia.

Os elementos essenciais para a existência do negócio jurídico são: a presença de agente(s), com personalidade jurídica; de um objeto ou objetivo, que é o motivo determinante do negócio; a vontade, aqui considerada como a intenção íntima do agente em negociar e uma forma de manifestação ou exteriorização dessa vontade.

A partir desses elementos básicos e existindo, pois, o negócio jurídico, ele passa a ser analisado no plano da validade, que lhe dá a possibilidade jurídica para produzir efeitos. São requisitos de ordem essencialmente jurídica, ou seja, elementos que amoldam o negócio à lei, aperfeiçoando-o. O artigo 104 do Código Civil[22] exige como requisitos de validade do negócio jurídico a capacidade de exercício do(s) agente(s), a licitude, possibilidade e determinação do objeto e a previsão ou não proibição de forma prevista na lei.

Ainda que não esteja prevista expressamente, a vontade livre e de boa-fé também é uma exigência à validade do negócio jurídico. É possível assim concluir porque os artigos 167 e 171 do Código Civil[23] prevêem a invalidade do negócio pela incidência dos chamados ‘defeitos do negócio jurídico’.

Os defeitos do negócio jurídico são vícios que maculam a liberdade ou a boa-fé da vontade, são situações em que a vontade deixa de ser livre porque não brota da real intenção do agente ou porque, ainda que livre, destina-se intencionalmente a fazer do negócio jurídico um instrumento para causar prejuízo a outrem.

A eficácia do negócio jurídico é a efetivação, no plano material, dos efeitos pretendidos pelo(s) agente(s). Mas é no plano da validade que o instituto da lesão encontra-se inserido e, por isso, é neste plano que incide a maior atenção desse artigo. Ressalte-se, ainda, que sendo o contrato uma espécie de negócio jurídico, ele pode ser avaliado sob os aspectos que ora se discorre.

A lesão é um defeito que atinge a liberdade da vontade do agente. Isso ocorre por que a caracterização deste vício é a de assunção, pelo agente, de uma prestação onerosa manifestamente desproporcional em virtude de premente necessidade ou por inexperiência. Verifica-se que a necessidade e a inexperiência impedem que a vontade seja verdadeiramente livre[24].

Um detalhe importante que se extrai da interpretação do dispositivo legal (art. 157 do Código Civil), é que a lesão somente se aplica a negócios jurídicos comutativos, que é exatamente o caso dos contratos, e que basta a inexperiência ou necessidade de uma das partes para viciar o consentimento e, por consequência, a validade do negócio jurídico.

Presente a lesão no momento da formação do contrato, a invalidade do negócio é relativa e, por isso, o negócio é anulável. Isso significa que as partes podem ratificar o negócio, corrigi-lo e manter o acordo. Aliás, o próprio artigo 157, em seu parágrafo 2º, admite tal possibilidade: “Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”

Se, entretanto, não houver aceitação da parte prejudicada e, então, não houver novo consentimento livre pela ratificação do negócio viciado, o conflito de interesses levará o juiz a decretar a anulabilidade do contrato, cessando os efeitos por ele produzidos desde a sua concepção e resolvendo qualquer obrigação assumida pelas partes.

Assim, a lesão é um instituto que pode desfazer o contrato, sob o decreto de sua anulabilidade por um vício que acomete a autonomia privada. Trata-se de um raciocínio bastante técnico e pouco subjetivo, já que havendo a constatação da desproporção prestacional por conta da necessidade ou inexperiência de uma das partes, autoriza-se o cessar da produção dos efeitos manifestados.

Além da proteção que a anulabilidade por lesão cede ao princípio da autonomia privada, é possível concluir também pela proteção ao princípio da igualdade material entre as partes. A necessidade ou a inexperiência são causas que desigualam as partes contratantes, levando uma delas – a parte favorecida – a locupletar-se em desfavor da outra.   

A força obrigatória do contrato, no caso da lesão, fica mitigada em nome da proteção direta da autonomia privada e indireta da igualdade substancial das partes. O possível desfazimento do contrato é fruto de uma intervenção estatal que ocorre por meio do Poder Judiciário em decorrência da previsão legal da invalidade do negócio jurídico.

b) A Teoria da Imprevisão

A Teoria da Imprevisão é uma doutrina que adentrou na sistemática jurídica civil brasileira com a edição do Código Civil de 2002 e significa a possibilidade de rediscussão das cláusulas contratuais quando acontecimentos novos, não previstos pelas partes, sucedem à consecução do contrato, alterando a base objetiva no momento da sua execução[25].

Esta teoria tem como embrião a cláusula rebus sic stantibus, do Direito Romano, segundo a qual as prestações obrigacionais somente são exigíveis quando as circunstâncias do tempo de sua elaboração forem iguais às do tempo de sua efetivação. Verifica-se que esta cláusula, bem como ocorre na Teoria da Imprevisão, atinge diretamente o princípio da força obrigatória do contrato[26].

Aliás, a construção dogmática que ora se analisa é uma exceção à obrigatoriedade contratual, que continua sendo a regra. Trata-se de uma alternativa, a correção de possíveis injustiças advindas de uma realidade fática inesperada pelas partes. De acordo com SILVIO DE SALVO VENOSA,

“O princípio da obrigatoriedade dos contratos não pode ser violado perante dificuldades comezinhas de cumprimento, por fatores externos perfeitamente previsíveis. O contrato visa sempre uma situação futura, um porvir. Os contratantes, ao estabelecerem o negócio, têm em mira justamente a previsão de situações futuras. A imprevisão que pode autorizar uma intervenção judicial na vontade contratual é somente a que refoge totalmente às possibilidades de previsibilidade.”[27]

No Código Civil atual, há duas passagens que podem ser indicadas como preceitos da Teoria da Imprevisão: no Direito das Obrigações, o artigo 317[28] e no Direito Contratual, artigos 478[29], 479[30] e 480[31]. Estes últimos artigos se referem à resolução contratual por onerosidade excessiva, que será abordada no item posterior.

É preciso compreender que a Teoria da Imprevisão, embora inserida no texto legal, é uma construção de cunho eminentemente teórico e, por isso, abrangente. Analisar-se-á, na última parte deste trabalho, que o terceiro instrumento de revisão contratual é uma forma de aplicação dessa Teoria, mas com ela não se confunde, embora apresente traços semelhantes que decorrem do próprio fato de estar nela contida. 

A imprevisibilidade de fatos supervenientes à elaboração do contrato capaz de gerar uma desproporção prestacional e onerosidade para uma ou ambas partes negociantes é a característica que delimita a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão. Assim é que o rigor da obrigatoriedade do contrato fica, mais uma vez mitigado em nome da restauração do equilíbrio material das partes.

Importante ressaltar a superveniência da desigualdade para a caracterização da imprevisão. Nas situações em que se aplica o instituto da lesão, conforme se mencionou, a desigualdade nasce com o contrato. Além dessa diferença essencial, a Teoria da Imprevisão se diferencia da lesão pelos resultados que deflagram; a última resulta em invalidade do negócio jurídico e sua possível anulação.

A Teoria da Imprevisão tem caráter muito mais subjetivo do que a lesão. É que compete ao juiz avaliar a (im)previsibilidade do fato e também a correção obrigacional – no caso do artigo 317 – requerida pelas partes. A correção é, assim, um dos efeitos da aplicabilidade desta doutrina.

Outro resultado possível ante o advento de fatos imprevisíveis é a resolução do contrato, ou seja, a sua extinção, que também depende da ponderação judicial, conforme o caput do artigo 478. A resolução por onerosidade excessiva é um instrumento de revisão contratual que integra a Teoria da Imprevisão – mais restrita, pois, do que esta – e será abordada a seguir.

Segundo PABLO STOZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, são três os requisitos que caracterizam a Teoria da Imprevisão e que justificam a correção ou resolução contratual por sua aplicabilidade: a superveniência de circunstância imprevisível; a alteração da base econômica do contrato e a onerosidade excessiva para uma ou ambas as partes[32].

A aplicabilidade dessa doutrina pressupõe a desproporção das prestações em um momento posterior à manifestação da vontade. Assim, de modo mediato, restringe a vontade das partes, atingindo, de maneira imediata o princípio da pacta sunt servanda. A possível revisão contratual através dessa teoria justifica-se no princípio da solidariedade pela restauração da igualdade material entre os contratantes.  

c) A resolução contratual por onerosidade excessiva

Conforme menção no item anterior, a resolução contratual por onerosidade excessiva é um desdobramento da Teoria da Imprevisão; é uma parte dela e, por isso, com ela não se confunde.

A primeira distinção que pode ser delineada é a de que a Teoria da Imprevisão se aplica tanto ao Direito das Obrigações quanto ao Direito Contratual, enquanto o instituto em análise se aplica somente ao último ramo do Direito Civil. Ademais, enquanto a Teoria da Imprevisão possibilita a correção do contrato, mantendo-o, porém com novas cláusulas que se adaptem à nova realidade que se impôs, a resolução tem como efeito a extinção do contrato. Acerca da extinção contratual, CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

“Algumas vezes o contrato extingue-se antes de ter alcançado seu fim, ou seja, sem que as obrigações tenham sido cumpridas. Várias causas acarretam essa extinção anormal. Algumas são contemporâneas à formação do contrato; outras, supervenientes.”[33]

A resolução por onerosidade excessiva toma da Teoria da Imprevisão os requisitos da desproporção por imprevisibilidade de fato superveniente. Mas como é uma teoria específica da imprevisão que resulta somente em extinção de contratos de natureza civil, exige outros requisitos, que devem concorrer simultaneamente àqueles.

Deste modo, a interpretação do caput do artigo 478 do Código Civil exige, primeiramente, que a execução do contrato seja de trato sucessivo ou diferido. Isto significa que a eficácia dos termos pactuados ocorra em momento posterior à sua elaboração, seja pela incidência de termo, condição ou encargo[34].

Além da execução postergada para o futuro, a norma mencionada exige que a onerosidade de uma das partes signifique, necessariamente, uma excessiva vantagem para a outra. Note-se que há uma reciprocidade nesta desproporção; enquanto a Teoria da Imprevisão usada para fins de correção do contrato (artigo 317 do Código Civil) exige apenas a onerosidade excessiva para uma das partes, para a resolução contratual a onerosidade implica também no enriquecimento de um à custa do outro.[35]

É possível afirmar que a imprevisibilidade, também mencionada no preceito em comento, deve resultar, de modo inevitável e concorrente, na desproporção prestacional para ambas as partes, de modo que a onerosidade, nesta seara, não pode ser imputada a ambos contratantes, mas apenas a um deles, já que há necessidade do enriquecimento do outro.

Um detalhe importante a ser delineado com cautela é que, neste instituto – a resolução por onerosidade excessiva – a regra do resultado a ser produzido é a da extinção contratual. Entretanto, os artigos 479 e 480, em muito se assemelham ao artigo 317, aplicável às obrigações em geral. É possível afirmar que também na seara contratual, a preservação de um contrato, ainda que corrigido, é viável diante da Teoria da Imprevisão e do próprio instituto em análise.

A legislação civil atual, que inaugurou a imprevisão no sistema jurídico civil, prevê que através dela seja possível a relativização do princípio da obrigatoriedade contratual. E mesmo no caso mais extremo, que é a resolução contratual, a possível manutenção do contrato é desejável, porque assim haverá respeito aos princípios estruturais do Direito Contratual que, lembre-se, continuam sendo o alicerce da disciplina.

Conclui-se, pois, que a resolução por onerosidade excessiva pode suavizar os efeitos da pacta sunt servanda em nome da justiça contratual e conseqüente equilíbrio material das partes, entretanto deve ser aplicada em caráter excepcional e somente quando concorrerem todos os requisitos legalmente exigidos.  

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Sobre a autora
Mariana Morsoletto Carmo

Advogada e professora adjunta na Faculdade Santa Amélia - SECAl - em Ponta Grossa/PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Mariana Morsoletto. A lesão, a teoria da imprevisão e a resolução por onerosidade excessiva como instrumentos para a efetivação do princípio da solidariedade no Direito Contratual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3478, 8 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23400. Acesso em: 24 abr. 2024.

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