Temos assistido, desde 2007, a sucessivos eventos de relevância global, impulsionados por significativos acontecimentos no plano internacional que geram, inevitavelmente, um impacto não indiferente no ordenamento jurídico, em variados níveis e graus.
Desta forma, devido a mudanças no contexto de uma crise financeira mundial sem precedentes, com epicentro nas nações mais industrializadas do globo e que repercutiu de forma acentuada sobre o andamento do comércio e da economia real, o ordenamento jurídico internacional tem vindo a ser questionado quanto a sua capacidade de evitar e, quando necessário, reagir aos fatos que deram origem a proliferação descontrolada dos chamados “títulos tóxicos” e “derivativos” no mundo da alta finança associado a uma falta de controle na circulação de capital especulativo.
Os juristas estão, assim, iniciando a estudar, sobretudo, o impacto dos efeitos da crise financeira no “velho continente” que minou a capacidade de diversos Estados europeus de rolar as próprias dívidas e que fez cair o dogma, vigente até então, que considerava os títulos soberanos dos países desenvolvidos como sólidos, não obstante a progressiva deterioração das contas públicas e do sistema bancário capaz de criar, respectivamente, profundos desequilíbrios orçamentários e uma indesejável bolha imobiliária. No início foi difícil, para os governos dos Estados europeus envolvidos na perda de credibilidade do mercado, aceitar a realidade dos fatos. O rebaixamento da classificação dos títulos soberanos de países tidos como os mais desenvolvidos do mundo, com a conseqüente perda do triplo “A”, foi visto, na Europa, como uma tentativa das agências de “rating” de aumentar as pressões especulativas com análises levianas e distorcidas.
As nações desenvolvidas foram confrontadas, assim, de forma abrupta e sem aviso prévio, com a necessidade de realizar profundas e imediatas reformas estruturais e a implementação de indesejadas e desagradáveis medidas de austeridade econômica que implicam na redução de gastos públicos e no aumento da arrecadação tributária.
As referidas medidas, impostas pela ortodoxia econômica que constam da conhecida “cartilha pedagógica” do FMI e que foram historicamente impostas, nas últimas décadas, aos países em desenvolvimento como “amargo remédio”, são, todavia, agora questionadas por renomados economistas que, coincidentemente, são majoritariamente formados e provenientes das nações industrializadas.
É interessante notar a ausência de referências, no atual cenário econômico, a termos com uma conotação pejorativa, como aqueles criados por ocasião da crise do México (“efeito tequilla”) e da Argentina (“tango bonds”). Neste caso os economistas parecem ser mais complacentes e mesmo benevolentes, cunhando termos como “haircut” e “bail out”, afinal estes países sempre representaram um modelo virtuoso de desenvolvimento, a ser seguido.
Creio que as diversas medidas, alegadamente provisórias, adotadas de forma impulsiva e com o atropelo de regras de direito comunitário e internacional, justificadas diante da alegada “emergência” para salvar o euro que implicava em imediata reação dos Estados que compartilham a mesma moeda, tenham causado perplexidade em muitos juristas.
As hesitações e incertezas iniciais entre os Estados-membros evidenciadas na ausência de consenso e em declarações genéricas sem quaisquer efeitos práticos que assistimos nas primeiras cúpulas deram, finalmente, lugar a criação de medidas heterodoxas cujo único escopo era aquele de acalmar o “mercado financeiro” (este indefinido sujeito do direito internacional) e readquirir a confiança dos investidores, em parte perdida no exato momento em que se deram conta que muitos dos países industrializados da Europa estavam, há anos, vivendo acima de suas posses.
Devemos reconhecer que a crise norte-americana do “subprime” apenas antecipou um evento que devia, seguindo simplesmente o bom senso, ser naturalmente aguardado, e trouxe à luz a insustentabilidade de tais modelos de desenvolvimento baseados no descontrolado crescimento da dívida pública e na contínua rolagem da dívida a juros baixos. A fragilidade da economia européia, exposta a partir da repercussão dos efeitos da crise nascida a partir da irresponsável criatividade de inovações financeiras de alto risco camufladas por “hedge funds”, fez evidenciar as dificuldades de se unir, monetariamente, países cultural e economicamente muito distintos entre si. Além disso, ficou evidente que o baixo rendimento dos juros dos títulos de diversos países desenvolvidos era mantido artificialmente graças a uma imagem irracional criada, e por certo tempo mantida, no mercado, de aparente solidez de países que, de fato, passavam por graves dificuldades de equilíbrio das contas públicas. Ficou desta forma clara a insustentabilidade e incoerência de um baixo rendimento de títulos soberanos em países com dívidas de 176%/PIB (Grécia), de 126,5%/PIB (Itália) ou com déficits de 8%/PIB (Espanha e Irlanda).
A União Européia tem, por sua vez, mostrado ao mundo o quanto a pregoada “solidariedade” entre os “Estados-membros” exista mais de direito que de fato. A distância entre a posição do grupo de Estados liderados pela Chanceler alemã, Angela Merkel, em defesa do rigor “teutônico” das contas públicas, sem mostrar sinais de piedade aos custos sociais de difíceis medidas para combater situações que as instâncias comunitárias nunca foram capazes de contrastar e aquela assumida pelos países relativamente menos desenvolvidos que compões os “PIIGS” (que necessitam desesperadamente de recursos para a promoção do crescimento econômico) mostra-se cada vai maior e dificilmente conciliável.
Está claro que o ordenamento jurídico comunitário não possuía e ainda não possui instrumentos eficazes de controle financeiro (público) e bancário dos Estados-membros, e a criação ad hoc de acordos intergovernamentais torna a governança econômica do bloco ainda mais complexa. Por outro lado, a grave recessão econômica geradora do empobrecimento de países que já se situavam na periferia do bloco econômico poderá originar o questionamento sobre a utilidade dos históricos fundos destinados a reduzir a distância entre os países relativamente mais ricos e aqueles menos desenvolvidos, considerados imprescindíveis para investimentos públicos em regiões carentes de infra-estruturas e incentivos ao empreendedorismo.
Com efeito, este cenário era, até certo ponto, esperado, e vários Estados-membros, efetivamente, manifestaram o desejo, por ocasião das rodadas de negociações com vistas à aprovação do orçamento da UE para o período 2014-2020, de reduzir os fundos agrícola e de coesão social. O corte previsto de cerca de 80 bilhões de euros pode assim ser entendido como um evidente sinal de mudanças na própria política européia de ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres da UE.
É, todavia, interessante notar que ao mesmo tempo em que se cogita a possibilidade de se reduzir o “budget” da UE (cujo valor total ascende a cerca de 1 trilhão de euros) o BCE registra um aumento sem precedentes do seu capital, que supera atualmente os 3 trilhões de euros, acima, inclusive, do que possui o FED (cerca de 2,8 trilhões de dólares em ativos). Este fato ilustra a desproporção atualmente existente entre o peso das finanças e aquele destinado à economia real.
E a nenhum economista parece incomodar o fato de que os bancos europeus tenham recebido, entre novembro de 2011 e fevereiro de 2012, mais de 1 trilhão de euros de financiamentos em “Ltros” (“long term refinancing operation”), mas que, deste valor, segundo dados do próprio BCE, apenas 1/3 tenha sido revertido em canais de créditos a empresas e famílias.
Com a recente divulgação de alguns dados dos balanços dos maiores bancos europeus ficou claro que a maior parte da liquidez oferecida pelo BCE à taxa de 1% com vencimento trienal não saiu do circuito financeiro, tendo sido usada, sobretudo, para aquisição de títulos soberanos (que rendem juros de cerca de 4-5%), considerados um negócio menos arriscado que oferecer crédito a famílias e PME’s.
Interessante notar como autoridades comunitárias como a Comissão Européia ou o Parlamento Europeu não tenham tido voz na matéria nem mesmo para propor ao BCE que “recomendasse” os bancos beneficiários daquelas fontes de financiamento a destinar a maior parte do valor a sustentar o investimento no setor produtivo capaz de gerar postos de trabalho e algum crescimento à combalida economia européia.
Desta forma, enquanto jovens, trabalhadores, aposentados e desempregados europeus se unem em protestos contra a perda de direitos adquiridos, que indica grave situação de retrocesso do sistema de garantias, arduamente construído durante o longo processo de construção do direito trabalhista e previdenciário, os bancos continuam a manter uma gestão irresponsável na certeza da impunidade em caso de falência.
A falta de extensão, a outros países, do precedente criado na Islândia, onde se registrou o emblemático caso de condenação a pena de prisão efetiva do banqueiro Sigurdur Einarsson (ex-presidente executivo do Kaupthing), um dos responsáveis pela crise financeira que assolou aquela ilha vulcânica, em 2008, associado ao vergonhoso caso da Bankia, que teve que desembolsar indenizações milionárias aos gestores que contribuíram ao processo de falência com posterior nacionalização do banco (como aquele no montante de 13,9 milhões de euros, pago ao ex-administrador financeiro, Aurelio Izquierdo) gera uma clara situação de completa ausência de escrúpulos quanto à condução de gestões quase temerárias, que se difundiram de forma alarmante, nos últimos anos, em muitos bancos.
Na base do referido problema está a celebração de contratos com cláusulas de proteção aos gestores que garantem prêmios pelo simples desempenho financeiro dos bancos (sem analisar a natureza e o excessivo grau de alavancagem e risco) associado a penalidades (com elevadas contrapartidas financeiras) em caso de resolução antecipada do contrato.
No caso do referido Bankia, além de pagar milhões de euros anuais aos seus diretores-executivos que se ocuparam de alimentar, por anos, a bolha imobiliária financeira (chegando a acumular 35 bilhões de euros em créditos “tóxicos”), o banco se caracterizou por ser dos menos flexíveis em termos de renegociação das dívidas dos mútuos com seus clientes, acumulando, após processos de penhora, infrutíferos imóveis e a difusa antipatia dos espanhóis quanto àquela instituição de crédito.
É assustador o grau de entrelaçamento entre a esfera pública e privada, criando uma enorme zona cinzenta de lucros privados e prejuízos públicos. Este fato é muito claro em países, como a Itália, onde o Banco Central possui personalidade jurídica própria, mas uma indefinida natureza jurídica, entre o direito público e privado. Ademais, também deveria suscitar perplexidade aos juristas a criação do efsf (european financial stability facility), uma pessoa jurídica de direito privado luxemburguês onde os acionistas ou sócios são os próprios Estados (pessoa jurídica de direito público internacional) e o capital é, por conseguinte, inteiramente público, fruto da arrecadação tributária. Com isto cria-se uma enorme zona de livre atuação de Estados e bancos, mas sem uma clara definição quanto ao vínculo ao “interesse público” que está subjacente à atuação de qualquer órgão de natureza pública.
E o que dizer, por exemplo, da Itália, onde os bancos contribuíram, com as aquisições de Btp, a rolagem da dívida pública, tornando-se os principais credores do Estado, e, por este motivo, vistos como aliado estratégico para evitar o “default”? Esta situação onde a “res publica” passa a ser transferida a esfera privada gera, inevitavelmente, indesejáveis condicionantes ao livre exercício do poder soberano no interesse comum da nação, para não deixar de referir a presença, em diversos países (como a Itália) de ex-banqueiros em diversos ministérios e órgãos da esfera do Poder Executivo. A ausência de regras de combate ao conflito de interesse em diversos países desenvolvidos (como a Itália), que permite que ex-banqueiros ou detentores de ações de bancos participem em órgãos com competência em matérias de natureza econômico-financeira, leva a uma extrema complacência das autoridades públicas com relação aos bancos.
Ademais, a participação dos bancos privados no capital dos bancos centrais estatais, que participam, por sua vez, no capital do BCE, associado à extrema generosidade do banco central europeu na concessão de financiamento, sem qualquer vínculo quanto à sua utilização, apontam para a extrema fragilidade do sistema de supervisão bancária, mesmo daquele que está a ser vagarosamente construído pelas instituições comunitárias.
Pelos referidos motivos não surpreende as extremas dificuldades da UE de avançar no projeto de criação de mecanismos mais severos de supervisão, com a hipótese, ventilada pelo Governo de Berlim, da criação de um “super-comissário” europeu. Será mais fácil a transferência de soberania em matéria de política fiscal e orçamentária, com a “constitucionalização” das regras do “fiscal compact” que a realização de um efetivo e eficaz mecanismo de supervisão bancária.
Está clara a aversão dos bancos com relação a existência de normas (nacionais, européias ou internacionais) sobre a concessão crédito, a circulação de capitais e a imposição de limites patrimoniais mínimos, todas medidas que condicionam, potencialmente, a margem de liberdade de atuação da atividade financeira empresarial. Os bancos desejam assim agir na mais ampla liberdade para gerir seus ativos a calibrar o grau de risco da carteira de investimentos, chegando mesmo a defender (como na Itália) a ilegalidade da ingerência pública nas decisões estratégicas de política industrial dos bancos.
E, nesta lógica, as autoridades públicas só podem (e devem) intervir em caso de má gestão, onde, em caso de especulação ruinosa ao banco, se justifique uma operação de “salvamento” dos depósitos privados, com recursos públicos.
Mas será que os governos não são capazes de admitir o desequilíbrio deste modelo onde o privado se torna público somente em caso de prejuízo? Será que não haverá uma alternativa menos prejudicial aos cofres públicos estatais que estabeleça, por exemplo, limites ao nível de “toxidade” de derivativos financeiros que um banco pode suportar?
Enquanto a comunidade internacional tenta lançar, por meio do FMI, o que poderá vir a ser o embrião de um novo arcabouço normativo internacional em matéria de controle de capitais (Documento: “Visão institucional sobre fluxo de capitais”, elaborado em 14/11/2012 e divulgado em 3/12/2012), e os juristas debruçam-se na análise das conseqüências da conturbada gestão da crise econômico-financeira que atingiu em cheio a União Européia, os banqueiros parecem tirar pouca ou nenhuma lição da turbulência que causaram ao mundo, dos milhões de postos de trabalho sacrificados, pois, aparentemente, consideram tudo como “danos colaterais”, como parte do jogo a que estão habituados e que caracteriza a atividade profissional de especulação financeira. E a recente decisão de dilação (para 2014) do prazo para a implementação, por parte dos bancos europeus e norte-americanos, das regras contidas no acordo de “Basiléia 3”, nomeadamente aquelas concernentes a elevação coeficiente mínimo de patrimônio primário (“Tier 1”, que deverá passar dos atuais 4,5%, para 6%, em 2015), indica que os bancos estão relutantes em mudar os próprios hábitos, continuando a trabalhar com altos riscos, elevada alavancagem financeira e reduzido coeficiente “core tier 1”.
É neste cenário que se insere o futuro desenvolvimento do quadro normativo do direito econômico internacional. O grande desafio será a articulação dos interesses públicos com aqueles do setor bancário e financeiro. E será desejável que os Estados, responsáveis pela criação de instrumentos jurídicos ao nível internacional, possam atuar de forma a fazer prevalecer a proteção dos interesses dos trabalhadores e a garantir uma futura regulamentação da economia internacional onde o bem-estar de uma nação não dependa quase que exclusivamente do movimento de capital especulativo.