“ – Em suma, o que é que pede?
- Peço que me digam que crime cometi; peço que me formem o processo; peço, enfim, que me fuzilem se sou criminoso, ou que me soltem se me acharem inocente. (…) Compadeça-se de mim, senhor, e peça em meu favor, não indulgência, porém rigor, não mercê, porém julgamento! Juizes, senhor. Só peço juízes; não se podem negar juízes a um acusado.
- Bem – disse o inspetor – ; hei de ver.
- Senhor – prosseguiu Dantès – , sei que me não pode mandar soltar por um arbítrio; mas pode transmitir à autoridade o meu pedido, provocar um inquérito, pode, enfim, fazer com que me julguem. Um julgamento é o meu único pedido: para saber que crime cometi, a que pena sou condenado; porque a incerteza é o pior de todos os suplícios.”1
O diálogo transcrito acima foi travado entre o inspetor da ilha-prisão do Castelo de IF (França) e Edmund Dantès, personagens do romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, publicado em 1844. Trata-se de um clássico da literatura mundial, que conta a história do jovem e destemido imediato de navio Edmund Dantès, encarcerado injustamente por 13 anos em razão do conluio daqueles que lhe invejavam a sorte, sem direito a um processo ou sequer conhecer o motivo de sua prisão. Trata-se, portanto, de uma alusão a duas garantias que hoje merecem destaque nos textos das Constituições dos Estados que se afirmam Democráticos: a presunção de inocência e o devido processo legal.
Presume-se inocente o cidadão em face das acusações que lhe são imputadas, até que seja comprovada sua culpa. Assim dispõe o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal. É, portanto, inerente ao devido processo legal e todos os seus corolários, como o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, na medida em que se traduz na ideia de que a culpa, como requisito para a aplicação da pena, deve ser formada no bojo de um processo judicial, presidido por autoridade competente conforme previsto na Constituição, em que seja assegurado ao acusado participar da produção de provas e utilizar dos meios de defesa tidos como lícitos. Assim, só após a prolação de sentença penal condenatória insuscetível de ser reformada de acordo com as regras processuais vigentes pode-se falar em cumprimento de pena; esse é o entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal2. Nos dizeres de Damásio de Jesus, “somente depois de a condenação tornar-se irrecorrível é que podem ser impostas medidas próprias da fase da execução.”3
O romance literário mencionado revela uma situação de opressão do cidadão pelo Estado, o que provavelmente constituía-se em prática corriqueira na França do período em que precedeu a publicação da obra. Mas tal espécie de atendado ao ser humano nunca foi exclusividade daquela época.
Em artigo intitulado “China e os campos de reeducação pelo trabalho”4, Carina Barbosa Gouvea relata a situação da China, onde fora implantado, ainda na década de 50 do século passado, um sistema de punição, originariamente idealizado para deter contrarrevolucionários ou outros críticos do governo comunista, em que sem qualquer acusação, processo judicial ou mesmo outra espécie de processo legal, os indivíduos podem ser detidos e submetidos a trabalhos forçados nos denominados campos de reeducação pelo trabalho. Atualmente os campos de trabalho forçado estariam sendo utilizados para deter prostitutas, viciados em drogas e outros criminosos de menor potencial ofensivo, roubo ou agressões leves, adeptos religiosos, muçulmanos e cristãos pertencentes a seitas e igrejas domésticas não reconhecidas pelo governo por, às vezes, até quatro anos, sem colocá-los em julgamento pelo sistema penal do país. A autora explica que a “polícia está investida com poder extrajudicial, cabendo aos Comitês de Gestão analisar e aprovar o envio dos indivíduos aos campos. Os indivíduos podem recorrer da decisão ao órgão administrativo que reanalisam a questão, a portas fechadas”.
No Brasil, os alarmantes índices de criminalidade e a tão falada sensação de impunidade, em boa parte fomentados por benefícios legais como a progressão do regime de cumprimento da pena e a liberdade condicional, que num curto espaço de tempo devolvem às ruas marginais que parecem possuir como único projeto de vida a prática reiterada de crimes, acarretam o descrédito dos órgãos estatais responsáveis pela segurança pública, que culmina numa exigência social de punições exemplares.
Por outro lado, os meios de comunicação de massa promovem um julgamento antecipado dos acusados pela prática de atos ilícitos, através da formação de uma opinião pública facilmente domesticada. A título de exemplo, recentemente um programa de TV exibiu reportagem em que denunciou agressões físicas sofridas por uma senhora de idade, perpetradas por duas empregadas da família. Na mesma oportunidade, divulgou-se uma série de casos análogos, em que agressores haviam sido condenados pela Justiça, ora enquadrados em crime de maus tratos (condenados a uma pena de aproximados dois anos), ora tipificados no crime tortura (com condenação à pena de 19 anos de prisão). Ainda, durante a reportagem foi dito que a “sensibilidade do julgador é que definiria o desfecho do caso”. Sem olvidar a brutalidade e repugnância da conduta das denunciadas, que merece uma efetiva reprimenda estatal, mas alguém duvida que fora incutido na mente das pessoas que as acusadas são de fato culpadas e merecem cumprir uma elevada pena, quiçá a pena máxima permitida pelo ordenamento jurídico?
Deve ser registrado, ainda, que nas últimas décadas uma maior autonomia das instituições republicanas concebida pelo modelo constitucional inaugurado em 1988, propiciou que ações deflagradas por órgãos encarregados de combater a criminalidade, como a polícia federal, revelassem ao povo brasileiro os bastidores do poder.
É nesse contexto que se depara com medidas como a “Lei da Ficha Limpa” (que permite a imposição de uma sanção, antes do trânsito em julgado da ação, sendo suficiente que haja uma decisão condenatória proferida por órgão colegiado), ou mesmo a tentativa de iniciar o cumprimento da pena imposta aos réus do mensalão, antes do trânsito em julgado da respectiva ação penal, por exemplo, que indicam uma possível alteração do paradigma da presunção da inocência no âmbito do direito penal, que pode sucumbir em face dos clamores populares por uma punição célere e exemplar aos infratores das Leis.
Não causaria estranhamento encontrar no seio da sociedade posições favoráveis à aplicação de penas hoje consideradas desproporcionais e desumanas, mas muito utilizadas no passado, sobremodo no período medieval, como a expiação em praça pública, os açoites, a mutilação e outras penas infamantes o que, na contramão do ideal de uma sociedade mais segura e com índices de criminalidade reduzidos, acarretaria uma atmosfera de incerteza, insegurança e verdadeiro terror.5
O fato é que se instalou na sociedade um sentimento de que uma punição estatal efetiva é aquela que seja rápida e exemplar, mesmo que para isso seja necessário mitigar direitos e garantias tidos como fundamentais, conquistados ao longo de um lento processo histórico. Nesse passo, reclama-se do sistema recursal, mas se esquece que a estrutura do Poder Judiciário não evoluiu na mesma medida em que aumentou a população do país. Em certos casos, um recurso aguarda vários anos somente para ser colocado em pauta para julgamento. Será que o problema está em se permitir ao jurisdicionado a via recursal, ou no reduzido número de juízes sobrecarregados por uma demanda que aumenta a cada dia?
Noutro giro, muitas vezes confere-se um tratamento mais rígido aos que ainda não foram condenados do que aquele dispensado na análise do preenchimento dos requisitos para a concessão de liberdade condicional a um criminoso incorrigível.
Não se trata de defender uma espécie de impunidade para os criminosos a perdurar durante os longos anos de vida de um processo. Muito pelo contrário; persiste a esperança (talvez a utopia) de que sejam encontradas fórmulas para abreviar o lapso transcorrido entre o recebimento da denúncia e o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Pois bem. A proposta de antecipação do cumprimento das penas pelos réus do mensalão e a “Lei da Ficha Limpa não foram escolhidos como exemplo por acaso. São medidas emblemáticas, reflexo de uma sociedade que anseia por uma moralização do processo político-democrático. Não se questiona a finalidade; a ponderação que se propõe refere-se à fórmula utilizada para tentar atingir tal desiderato.
Parece não haver dúvidas de que o paradigma da presunção da inocência está sendo alterado. A questão é estabelecer em que momento processual se desfaz a presunção – e o que até então era inocente passa a ser culpado. A história revela que não existem valores absolutos e imutáveis no seio de uma sociedade. Trata-se, portanto, de uma opção política, mas que não prescinde do debate; por isso o momento é de reflexão. Qual o limite da justificação dos fins pelos meios? A sociedade realmente deseja percorrer o caminho de volta, que pode conduzir aos sistemas penais de outrora? Assim o sendo, tal se traduzirá em real benefício para a comunidade?
Não é demais lembrar que no Brasil, não faz tanto tempo assim, vigorava um regime totalitário no qual as pessoas que defendiam um ideal político que divergisse do modelo imposto pelos detentores do Poder simplesmente eram aprisionadas, torturadas e mesmo assassinadas, sem direito a um processo ou qualquer espécie de julgamento justo, de forma semelhante ao ocorrido com o personagem Edmund Dantès, o Conde de Monte Cristo.
NOTAS:
1. DUMAS, Alexandre. O Conde de Monte Cristo (1844). Trad.: versão em domínio público de Lello & Irmãos Editores, Porto – Portugal, revista por Kleber Kohn. São Paulo: Martin Claret, 2009. vol. 1. p. 117-119.
2. “O art. 637 do CPP estabelece que '(o) recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e, uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença.' A LEP condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A CB de 1988 definiu, em seu art. 5º, LVII, que 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.' Daí que os preceitos veiculados pela Lei 7.210/1984, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. A ampla defesa, não se apode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária,. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. (…) A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados – não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais (leia-se STJ e STF) serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subsequentes agravos e embargos, além do que 'ninguém mais será preso'. Eis o que poderia ser apontado como incitação à 'jurisprudência defensiva', que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF, não pode ser lograda a esse preço. (…) A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da CB). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. (HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 5-2-2009, Plenário, DJE de 26-2-2010. In, Brasil. Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011. p. 417).
3. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, vol. 1. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 11.
4. GOUVÊA, Carina Barbosa. China e os campos de reeducação pelo trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23431>. Acesso em: 11 jan. 2013.
5. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. 1. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 38.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DUMAS, Alexandre. O Conde de Monte Cristo (1844). Trad.: versão em domínio público de Lello & Irmãos Editores, Porto – Portugal, revista por Kleber Kohn. São Paulo: Martin Claret, 2009. vol. 1.
GOUVÊA, Carina Barbosa. China e os campos de reeducação pelo trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23431>. Acesso em: 11 jan. 2013.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, vol. 1. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. 1. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.