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Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito

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23/02/2013 às 14:05
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7. Mapa Histórico: A Modernidade Tardia

A Modernidade Tardia é um conceito/realidade amplo e complexo — complexus: “algo que se tece em conjunto” (Morin, 2000) — de utopias/entropias; contradições e distopias; afirmações ou “promessas descumpridas da democracia e da modernidade” (Bobbio, 1986). Tanto é uma fase de retomada quanto de negação, de afirmação e de interrogações, mas, é do domínio do real ou, melhor dizendo, pertence ao mundo real/virtual. É o ultramoderno posto em evidência:

A modernidade econômica implica a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais [...] e sua diferenciação em esferas de valor [...] até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte (Rouanet, 2002, pp. 237-8).

Além disso, os bens culturais agora também poderão se movimentar com mais independência em razão da laicização e da secularização do espaço público. Isto é o que vemos com os indícios trazidos pelo tema insurgente da modernidade já no século XVII. Também por isso prefere as expressões Ultramodernidade e Modernidade Radical (Giddens, 1991) à ideia de pós-modernidade (Sevcenko, 1987) ou mesmo modernidade tardia. A Modernidade Tardia, em uma ampla hermenêutica, ainda corresponde à mudança da luta por conservação em luta pelo reconhecimento (Honneth, 2003). Assim, é um mix entre negação e vir-a-ser; é a negação ou a véspera da utopia; é a entre-safra entre o esperar, calcular (estratégia) e a ação (da tática à prática); é uma espera, mas como um que fazer: “Não te esperarei na pura espera / Porque o meu tempo de espera é um / Tempo de que fazer” (Freire, 2000 - frontispício). É um ir e vir pela história, a exemplo da entropia, que atua como eixo da Teoria do Caos (e da pós-modernidade: indeterminação, instabilidade, dúvida metódica), mas que tem suas bases na termodinâmica de Newton:

Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem (Prigogine, 2002, pp. 79-80 – grifos nossos).

Marx conhecia e teria aliançado à dialética que transforma quantidade em qualidade. Entropia e luta de classes podem estar associadas em analogia, mas como metáforas do ciclo vicioso/virtuoso entre passado-presente e presente-futuro. Portanto, não se trata nem da teleologia, nem do fim da história; sequer de uma filosofia da história ou mesmo da modernidade, uma vez que, todo o século XX e o breve século XXI indicam e fazem sobressair o realismo cotidiano das variadas formas de luta e de conflituosidades que cercam o poder no âmbito do Estado Moderno (tanto lá, no pós-Renascimento, quanto cá, diante dos dilemas da Modernidade Tardia). Se observarmos através de um largo lapso histórico, podemos dizer que a Modernidade Tardia remonta à Rota da Seda, visto que sem esta não teríamos o Renascimento, o Iluminismo, o Estado-Nação e o Mercantilismo como forças do capitalismo e da sociedade moderna. Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder) — especialmente com a criação (legislação) de formas e meios de agir de exceção, no Iluminismo que já se via convertido em Jacobinismo — possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombra desde então (Agamben, 2004). Todavia, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006). Desse modo, ainda podemos analisar o trabalho em seu argumento central e, muito genericamente, quanto à metodologia empregada.


8. Outras Formas de Validação e de Reconhecimento

Inicialmente, em vias, em prol da luta pelo reconhecimento do Outro, é possível afirmar-se a necessidade de um “compromisso ético regulador da democracia, de um dever-ser, também re-configurado pela ação individual e social (mas, sempre política), vê-se modificado na plenitude da própria ação ética do agora-ser-sendo. Assim, da tensão entre autoridade e liberdade, pode surgir uma ética em si (mas, sobretudo, para verter-se na ética-para-si) como meio de condução democrática da ação educativa (do direito à educação como luta, se for o caso) e da vida social. A ética, enfim, seria o resultado da ação pedagógica democrática, a síntese da assunção da autoridade civil e não de sua imposição. O reconhecimento, a seguridade e a internalização da autoridade e da autonomia individual. Como exemplo concreto desta assertiva, vejamos uma ação trabalhista que conjuga da 1ª à 5ª gerações de direitos fundamentais. No caso, trata-se de Direito de Imagem de professor/pesquisador e da exploração do chamado trabalho imaterial (Negri, 2001) ou vivo, não-remunerado e que constitui estelionato intelectual (na alçada criminal). Vejamos em Marx:

Trabalho não-objetivado, um não-valor – se o considerarmos positivamente, ou negativamente em relação a si mesma, eis o que é a existência não-objetivada, isto é, não objetiva, - em outras palavras, subjetiva – do próprio trabalho. É o trabalho não como objeto, mas como atividade (Tätigkeit); não como auto-valor, mas como a fonte viva do valor (lenbendige Quelle dês Werts). (... O trabalho vivo é) a riqueza universal – comparada com o capital, dentro do qual existe objetividade, - como possibilidade universal, possibilidade que se realiza na atividade enquanto tal (Dussel, 1995, p. 39).

Juridicamente, ainda é chamado de teletrabalho ou de sobreaviso no teletrabalho, mas para uma interpretação sobre novos direitos autorais:

Una vez refinadas las licencias, Ito y Creative Commons proponen ahora convertirlas en parte de La infraestructura de la Red. De hecho, bajo la dirección de Ito, la idea es que Creative Commons se convierta en una especie de organización de estándares del copyright, creando los formatos tecnológicos por los que los creadores, el público, los buscadores, los gestores de derechos, los programadores de navegadores y todos los demás agentes de Internet se comuniquen entre sí qué derechos están disponibles sobre las obras, e incluso qué derechos están reservados.

Mensagem enviada por e-mail, de Erick Iriarte Ahron, mas também disponível em: https://www.consumer.es/web/es/tecnologia/internet/2008/10/02/180170.php.

Os meios de prova, neste exemplo, também se baseiam no mundo real/virtual (no passado, no presente e no futuro-presente: novos direitos). Há afirmativa de documento obtido em cartório atestando a veracidade das informações virtuais e quanto à exploração indevida da imagem do professor. O documento ratifica o compromisso do Estado, em determinados momentos e circunstâncias, na luta pelo reconhecimento e seguridade de direitos — como se fosse uma virtualização (Lévy, 1996) constante da Luta pelo Direito (Ihering, 2002). A Fé Pública pertence ao âmbito da 3ª geração de direitos (Wolkmer, 2003), à formação do Estado de Direito, no século XIX (Canotilho, 1999) e à célebre disposição política ou salvaguarda jurídica da intitulada regra da bilateralidade da norma jurídica, também vista pelo provérbio latino do “suportas a lei que criastes” (Malberg, 2001). O referido processo e seus meios de prova foram gestados por aproximadamente um ano, incluindo ainda e-mails, documentos oficiais da instituição reclamada, declarações de boa-fé de terceiros, testemunhas e outros.

A Fé Pública, no exemplo tomado, reflete-se no documento denominado de Ata Notarial (em anexo). Isto também se chama, doutrinariamente, sair da abstrata/ainda-que-legítima expectativa do direito (Dallari, 1999) e propugnar pela construção de outro saber jurídico. Outro recurso adotado foi elaborar um parecer técnico-jurídico, detalhando-se o alcance da referida imagem profissional ou pública do autor prejudicado, naquele momento. Então, na Modernidade Tardia temos a passagem/conversão da luta por conservação (a sobrevivência advinda do trabalho intelectual ou, genericamente, “o trabalho como o primeiro ato histórico” — Marx, 2002) à luta pelo reconhecimento de novos e outros direitos, sujeitos, demandas individuais e sociais, no aqui chamado mundo real/virtual. No próprio exemplo indicado, temos direitos de 1ª geração: a imagem associada à identidade, intimidade, integridade e (re) produção essencial da personalidade. O “trabalho real” e/ou imaterial (vivo), reclamado como hora-extra, refere-se à 2ª geração de direitos: à época áurea das lutas sociais e populares pelo reconhecimento de direitos: da Revolução Russa, de 1917, à Constituição de Weimar, de 1919, ou ainda a Revolução Mexicana, a partir de 1910. Nesta fase da luta pelo reconhecimento do direito a ter direitos (Bobbio, 1992), a 3ª geração deve ser atualizada, pois nem o Estado, nem o movimento sindical mostram-se preparados para os novos desafios: o Judiciário sofrerá variadas provocações. No caso, são espécies de direitos individuais e sociais que rebatem/repicam no Estado e provocam a insurgência de direitos políticos mais legítimos. São exemplos disso, desde as décadas de 1970-80, no movimento sindical e como fonte social e jurídica do pluralismo, a coletivização dos conflitos, a politização das lides (Faria, 1989), e, mais genérica e recentemente, a judicialização da política. Quanto à quarta geração, notabiliza-se, ainda pelo exemplo da RT, a luta pelo reconhecimento e seguridade dos direitos sociais (Verdú, 2007), mas, mais amplamente, os direitos coletivos, difusos e os interesses individuais homogêneos. Já a quinta geração, inerente ao cotidiano do mundo real/virtual, entrelaça as várias gerações quanto ao direito personalíssimo — na luta pelo direito do trabalho e no reconhecimento do ser, de sua imagem e persona. Os gregos antigos já sabiam disso, desde que utilizaram a famosa Persona: o nome da máscara usada pelos atores do teatro grego clássico. Sua função era dupla: aproximar o ator à aparência exigida pelo papel e amplificar sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores. A palavra deriva do verbo personare, ou “soar através de”. Nesta época de crise e descobertas, a Modernidade Tardia e o mundo real/virtual também metamorfoseiam e mascaram formas simbólicas de obtenção e de exploração de direitos de outrem, sem a devida compensação. Empresas utilizam-se indevidamente do nome de muitos professores titulados — já demitidos, nunca contratados ou contratados só de fachada — para (a) trair alunos e obter grandes vantagens materiais. Portanto, neste curso do debate, o direito na Modernidade Tardia é tanto processo/produto ideológico (Filho, 2002) quanto é um medium propício à requisição de legitimação social (Schumacher, 2000). Por isso, contrariando a objetividade extremada, não há um método claro-escuro:

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Eu sou um homem espanhol que ama as coisas em sua pureza natural, que gosta de recebê-las tal e como são, com claridade, recortadas pelo meio-dia, sem que se confundam umas com outras, sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que quer, antes de tudo, ver e tocar as coisas e que não se contenta imaginando-as: sou um homem sem imaginação (Ortega y Gasset, 1991, p. 9. – grifos nossos).

É óbvio que sempre há objetividade, a partir de um projeto, mas isto não implica em total controle do objeto. É em relação a este controle que nos referimos, quando falamos em objetividade extremada. Não há um método do meio-dia, quando pensamos em tratar desta fase da Modernidade Tardia. Assim, a luta pelo reconhecimento acaba intrinsecamente vinculada à luta pelo conhecimento do Outro e de si. Portanto, trata-se de uma luta por (re) conhecimento, mas, infelizmente, talvez o exemplo que melhor caracterize esta Modernidade Tardia seja mesmo a reincidência do Estado de Exceção, pelo menos, nos últimos três séculos.

Direito à Educação e Esclarecimento

A principal referência é Kant e o melhor produto teórico é o seu texto O que é Esclarecimento. Em suma, o Aufklärung instiga a que se “ouse pensar” e assim “ouse fazer”: “Sapere aude!”. “Tenha coragem de fazer uso do teu próprio entendimento”. Desse modo, o esclarecimento instiga à saída do homem de sua menoridade. E o que é menoridade? “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção (tutela) de outrem”. O homem da menoridade precisa de um condottiere, seja na vida privada, seja para assuntos de relevância pública. Depois de libertos do primitivo estado de natureza (naturaliter maiorennes), as causas internas à permanência do indivíduo na menoridade (intelectual, moral, política, cultural) são a preguiça ou comodidade e a covardia. É cômodo não ter de fazer por si mesmo – no senso comum, diz-se que “pensar dói”. Também não se tem necessidade de pensar ou fazer, se é possível apanhar tudo pronto[viii]. Alguns ainda consideram difícil esta passagem, mas o perigo não é grande, porque só se aprende a andar após algumas quedas (está aí o método da “tentativa e erro”). Então, a maioridade corresponde a abandonar primeiramente o embrutecido estado de gado doméstico. Para a menoridade ainda concorrem à adesão e a aceitação de verdades prontas, dogmas e preceitos inquestionáveis: preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de uso “racional” ou dons naturais, são os grilhões da consciência à menoridade. Esta razão domesticada é, portanto, uma das causas centrais da menoridade. Também pode incorrer em grave erro quem considera ser viável saltar o fosso da liberdade sozinho, pois a liberdade é uma construção social.

Todavia, alguns podem iniciar essa cruzada, sozinhos e mesmo que seja longa e penosa. Alguns que tenham pensamento próprio, libertando-se do jugo de tutores e da comodidade, espalharão ao redor de si o espírito da avaliação racional do próprio valor e da vocação inata ao homem de pensar (e agir) por si mesmo. Instigada por um líder consciente, a massa oprimida e subjugada pode gritar e lutar por sua liberdade (mas, desde que seja um líder e não outro tutor). Por isso, o preconceito, a indiferença, o ranço da menoridade[ix] podem voltar-se contra seus agentes e ainda alimentar, em alguns sobreviventes, o direito de rebelião ou sedição. Neste movimento social e temporal, de que tratam os libertários, o povo seria levado a pensar — até porque é rara a germinação natural. Mas, a instigação a se rebelar contra o status quo viria de uma vanguarda, uma vez que, raramente, pensa-se em ser livre, sendo-se criado como escravo. Por esta dialética negativa, o próprio Senhor de Escravos não é um liberto, nem se encontra na maioridade, simplesmente porque necessita (para tudo) de seus escravos, ou seja, de alguém que faça por ele. Neste caso, ainda é interessante pensar a aliança que se pode tecer entre cultura e política: Uma revolução talvez realize a queda do despotismo pessoal, da opressão pelo lucro incessante ou da dominação descabida, porém nunca produzirá verdadeira reforma (libertária) no modo de pensar. Este seria o real limite da própria vanguarda que conduz à liberdade, uma vez que ninguém é conduzido à liberdade, como estado de ser, sem saber do que se trata, isto é, sem ter a consciência dessa mesma liberdade. Portanto, só a iniciativa leva à liberdade e esta conduz ao esclarecimento — sendo que a base da liberdade (para os antigos) estava na isegoria e na isonomia. Então, o que é liberdade? Simplesmente, fazer uso público de sua razão em todas as questões.

Por sua vez, o uso público da razão traz um interstício entre esclarecimento e conhecimento: quando o homem SÁBIO se expressa, livremente, diante do grande público do mundo letrado. Já o uso privado da razão é de pertencimento do SÁBIO que pode fazer uso de sua razão em função de certo cargo/função pública a ele atribuídas. Assim, para Kant, há certos casos inevitáveis ou necessários em que se constroem mecanismos de comportamento passivo ou de unanimidade artificial: em tais casos, não é permitido raciocinar, porque se espera a obediência. A educação dos antigos falava no temor reverencial. Pergunta-se: sob esta análise, o educador (professor) está mais para o SÁBIO (como especialista ou intelectual que faz um uso público da razão) ou se aparenta ao sacerdote (restrito ao uso privado da razão)?

Em todo caso, para ficarmos nos casos sugeridos por Kant, pensemos na democracia representativa e no princípio da legalidade. Para o administrador público, a liberdade de agir está cercada, cerceada pela legalidade, impondo-se a este uma condição de agente público da obediência. O administrador público só pode fazer (agir), estritamente, diante do que a lei (anterior a seus atos) assim prescrever e autorizar[x]. Outro caso considerado por Kant se refere à obrigatoriedade do pagamento de impostos que recai sobre todo cidadão. Obrigação da qual ninguém se desobriga, dado o caráter social da arrecadação dos impostos: originário e necessário à conservação do Contrato Social. A recusa ao pagamento de impostos pode gerar ou fortalecer o sentimento de descompromisso social ou de anomia (Durkheim, 1988) e daí derivar-se no movimento social da Desobediência Civil (Thoreau, 1966).

Do que não se depreende, obviamente, o imobilismo: Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Isto é, constitui-se em dever cívico (ou da consciência daquele que não é senhoreado) questionar e se impor contra a opressão e a injustiça: um “Ouse questionar!”. Mesmo o religioso tem o dever de se impor contra o erro, a exemplo das alegações da Reforma e de Lutero, insurgindo-se contra a venda de indulgências. Ao se deparar com tal nível de estranhamento ou de contradição, o indivíduo que ousa pensar (e agir) é compungido a renunciar à adesão ou promover uma ampla reforma dos pressupostos: Pois se acreditasse encontrar esta contradição, não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de lha renunciar. A este tempo de Kant, um século antes, do liberalismo clássico de Locke (1632-1704) já havia anunciado a urgência da tolerância, principalmente religiosa. Portanto, nem sob o impacto do Contrato Social (ou da deliberação religiosa, invocando-se dogmas e preceitos sagrados), nem sob o codinome o livre-arbítrio, há legitimidade (para ser coerente com o uso pessoal da razão) para se abrir mão da liberdade ou, o que dá no mesmo, colocar-se livremente sob o jugo da escravidão (há contradição interna aos termos). Pela lógica (ou sob o império da lei) não são válidas ou legítimas tais cláusulas leoninas ou ainda as assim chamadas Leis de Plenos Poderes (porque se não se admite a divergência, não há liberdade e nem esclarecimento ou maioridade). De tal modo, condenar o povo à ignorância (negando-lhe o acesso à informação, a educação) é um crime de lesa pátria, pois o progresso é natural ao esclarecimento.

Mas o povo como coletivo, pode impor a si próprio leis de restrições, a começar da “liberdade de pensamento[xi]”? Pensemos no chamado Estado de Emergência[xii]: Seria certamente possível, como se esperasse por lei melhor, mas por determinado e curto prazo, e para (re) introduzir certa ordem. Ao que ainda se poderia acrescentar sob rígida vigilância e estrita ou crítica e urgente circunstância (ou em condições determinadas, espaço delimitado e um curto prazo pré-estabelecido). Historicamente, mesmo sob condições gravíssimas, seria difícil de se legitimar a opressão desmedida e sem fim. Este era o caso da nomeação de um Imperador[xiii] romano, a fim de se normalizar graves instabilidades institucionais, suspendo-se a vigência das garantias da República (mas não se subtraindo ao Senado, que continuava como seu juiz). Durante a República, o título de imperator sinaliza apenas um “comandante das forças militares” e não Imperador. É óbvio, mas Imperador não combina com a ideia de República. Já a figura do Cônsul implicava que este comandante teria o mais importante cargo executivo da República. Por outro lado, renunciar ao esclarecimento não seria um direito individual, sagrado e consagrado pelo liberalismo e pelo Iluminismo?

Um homem sem dúvida pode, individualmente, e mesmo assim por tempo limitado, no que lhe diz respeito, adiar o seu esclarecimento. Contudo, renunciar ao esclarecimento, para si ou para seus descendentes, é ferir os direitos mais sagrados da Humanidade. Portanto, se não é lícito ao povo tomar tal decisão, menos ainda será lícito a um governante decidir sobre esse fim. Renunciar ao esclarecimento é ir contra o “caminho normal, natural” da vida em sociedade, da Humanidade como um todo. É como se dissesse: a ninguém é dado o direito de se escusar da tarefa de ser humano. Seguindo Max Weber (1979), ainda se diria: “o desencantamento do mundo é inevitável, inexorável”.

O BOM governo, ao contrário, deve evitar que um súdito impeça a outros de trabalharem, de acordo com sua capacidade (e mais ainda se de forma violenta), para a determinação e a promoção de si mesmos. Também aquele se expõe à censura, sem reagir, ou o censurador padecem do mesmo mal: Ceaser non est supra grammaticos (“erra muito quem censura”). De tal modo, a obrigatoriedade do ensino — como parte do direito à educação — teria reflexos diretos na tarefa da construção social do conhecimento e da consciência e da responsabilidade social. Assim, se é verdade que “erra muito quem censura”, então, deve-se concluir pela afirmação tanto do “direito de livre pensamento” quanto pela “livre expressão”, e se esta última condição for tomada, igualmente, como parte do direito à educação, logo, concluiremos pela necessidade da constância da “liberdade de cátedra”. Neste contexto, o laicisismo (o Estado Laico como empuxo ao Estado Moderno) mostrou-se muito eficaz à luta pela liberdade e pelo reconhecimento de direitos, incluindo-se aí a educação. Isto se deu, em parte pela via armada da guerra civil, a exemplo da Inglaterra do século XVII, em parte como movimento social e cultural pela tolerância e pela liberdade. Serve de exemplo o fato de que num regime de liberdade, a tranqüilidade pública e a unidade social apaziguam fontes de inquietação.

Nesse estado de liberdade pública, os indivíduos se desprendem progressivamente do estado de selvageria inicial e, talvez, sobrevivente à vida social contingente. Portanto, se fizermos uso de um raciocínio equivalente, podemos concluir que a não-liberdade ou o autoritarismo não podem nos conduzir à liberdade: não há como forçar à liberdade. Há sedução pela liberdade (como ação política ou religiosa, no caso dos movimentos pela tolerância religiosa) ou por seu ideal e isto, por si, já esclarece e elimina o que não é liberdade. Esse estado de liberdade pública, entretanto, encontrará uma ressalva quanto ao alargamento da liberdade ou, em sentido inverso, quanto a suas restrições: a Razão de Estado. Somente aquele, embora sendo esclarecido[xiv], não tendo medo de sombras e com um exército numeroso à disposição, bem treinado, pode dizer aquilo que não é lícito[xv] a um Estado livre supor: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa, contanto que obedecei! Parece clara a minuta da Razão de Estado que se constituiria sob o Estado Moderno.

Em síntese, para o Iluminismo, a dignidade está em pensar livremente, para que o indivíduo deixe de ser máquina, a fim de se ver livre do jugo da cangalha do tutor ou do moinho da fortuna — e que geralmente falha em termos políticos. Por fim, vale indagar, hoje, será que experimentamos um mundo em tempos de esclarecimento? Ousemos um pouco e logo saberemos — como queria aquele Kant de há muito tempo:

“Ouse saber!”

“Ouse querer!”

“Ouse questionar!”

“Ouse fazer!”

“Ouse lutar!” “Ouse vencer!”

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3524, 23 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23782. Acesso em: 18 abr. 2024.

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