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A quebra do sigilo bancário:

algumas inconstitucionalidades

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01/11/2001 às 01:00
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V. A LC 105/2001 E O DECRETO 3.724/2001 E O PRINCÍPIO DA

RESERVA DE JURISDIÇÃO

Ademais disso, cumpre ressaltar ainda que também não se coaduna com o princípio da reserva de jurisdição a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial.

É importante esclarecer que o princípio da reserva constitucional de jurisdição foi disseminado pelo ilustre constitucionalista lusitano J. J. GOMES CANOTILHO, para quem por efeito de uma verdadeira discriminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Política, a prática de determinados atos que impliquem em restrições a direitos resguardados pela Constituição somente podem ser ordenados por magistrados. 11

No particular, o Ministro do STJ - ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO - ao comentar sobre o princípio da reserva constitucional de jurisdição já esclareceu que:

"A função específica, atribuída pela Constituição ao Poder Judiciário, é a de compor os litígios em nome do Estado. É a denominada função jurisdicional, que na sua essência, se funda no inciso XXXV do art. 5º daquela Lei Maior, nestes termos: ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Ao lado dessa função típica, os órgãos do Poder Judiciário exercem outras, previstas na própria Constituição". 12

No particular, além do RE nº 215.301-0 é importante ressaltar que mesmo nos casos das CPI’s onde existe autorização delegatória expressa e específica da Constituição no seu art. 58, §3º, para que o Poder Legislativo no âmbito dessas comissões tenham os mesmos "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais", ainda assim, mesmo quando existe essa expressa delegação constitucional (o que não é o caso em exame) o Poder Judiciário através da sua Corte Constitucional já tem admitido que tais poderes excepcionais não podem ser exercidos legitimamente quando se opõe aos direitos individuais da liberdade, privacidade e propriedade (CF, art. 5º), por força do princípio da reserva constitucional de jurisdição.

No SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, o Ministro Celso de Mello, reportando-se ao princípio da reserva constitucional de jurisdição já decidiu que:

"O postulado da reserva constitucional de jurisdição - consoante assinala a doutrina (J. J. GOMES CANOTILHO, ‘Direito Constitucional e Teoria da Constituição’, p. 580 e 586, 1998, Almedina, Coimbra) - importa em submeter, à esfera única dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’.

Isso significa - considerada a cláusula da primazia judiciária que encontra fundamento no próprio texto da Constituição - que esta exige, para a legítima efetivação de determinados atos, notadamente daqueles que implicam restrição a direitos, que sejam eles ordenados apenas por magistrados.

(STF, MS 23.452/RJ, Min. Celso de Mello, j. 01.06.99, DJ 08.06.99, p. 11)

(Neste mesmo sentido: MSMC 23614/DF, Min. Carlos Velloso, j. 12.01.00, DJ 01.02.00, p. 118; MS 23454-DF, Min. Marco Aurélio, j. 29.05.99, DJ 07.06.99, p. 04; MS 23.466-DF, Min. Sepúlveda Pertence, j. 17.06.99, DJ 22.06.99, p. 31)

Comungam deste mesmo posicionamento IVES GANDRA DA SILVA MARTINS 13, MIN. DOMINGOS FRANCIULLI NETTO 14 e AMÉRICO MASSET LACOMBE 15.

Logo, como a determinação que possibilita ter acesso aos dados bancários do contribuinte é um exercício de típica função do judiciário, como venho defendendo até agora, então, entendo que tal função apenas pode ser exercida por um magistrado.

Assim, no caso em exame, como o art. 1º, §3º, VI e art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 c/c art. 1º; art. 2º, §2º; art. 4º, III e IV, §2º do Decreto nº 3.724/2001 autorizam a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial, traz ao foco situação onde o Poder Executivo pretende ter legitimidade para exercer uma função típica do Poder Judiciário, sem autorização expressa e específica da Constituição para fazê-lo, o que contraria o princípio da reserva constitucional de jurisdição (art. 2º; art. 60, §4º, III; art. 95, Parágrafo único, I; art. 5º, XXXV, XXXVII e LIII c/c a inteligência do art. 58, §3º da CF/88).


VI. CONCLUSÃO

Do exposto, podemos concluir, em síntese, o seguinte:

a) Com a publicação da Lei Complementar nº 105/2001 e do Decreto 3.724/2001 as autoridades fazendárias passaram a entender que possuem legitimidade para ter acesso às contas bancárias dos contribuintes sem a prévia autorização do Poder Judiciário;

b) O sigilo bancário está hospedado em nossa Constituição Federal, no art. 5º, X e XII;

c) A separação orgânica do exercício do poder é formula de contenção dos abusos, e eficaz meio de defesa dos direitos e garantias individuais, estando explicitada nos arts. 2º e 60, §4º, III, da CF/88;

d) Cada órgão do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário exerce, preponderantemente, uma função, e, secundariamente, as duas outras. Da preponderância advém a tipicidade da função; da secundariedade, a atipicidade.

e) Da interpretação sistemática do texto constitucional emerge regra que obstaculariza ao Poder Executivo o exercício atípico da função legislativa e jurisdicional que importe em restrição aos direitos e garantias individuais;

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f) Da interpretação sistemática do texto constitucional emerge o princípio da indelegabilidade de atribuições que impede a transferência ou usurpação das funções típicas de um órgão para o outro. Todavia, este princípio comporta unicamente as exceções previstas na própria Constituição de forma expressa e específica;

g) Não se coaduna com os princípios da separação orgânica dos poderes e indelegabilidade de atribuições (art. 2º; art. 60, §4º, III, c/c a inteligência do art. 68 da CF/88) situação onde se realize a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial, sem a devida autorização delegatória expressa e específica da Constituição;

h) É o mesmo funcionário subordinado ao Poder Executivo que possui legitimidade para instaurar uma forma de acusação (art. 6º, da LC 105/2001 c/c art. 2º, §2º, do Dec. nº 3.724/2001) e determinar a restrição ao sigilo bancário (art. 6º, da LC 105/2001 c/c art. 4º, do Dec. nº 3.724/2001);

i) Não se coaduna com o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções (art. 2º; art. 95, Parágrafo único, I c/c art. 5º, XXXVII e LIII, da CF/88) situação onde o mesmo funcionário do Poder Executivo possue legitimidade para instaurar a acusação e efetivar restrição ao sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII), independente de autorização judicial;

j) O princípio da reserva constitucional de jurisdição explicita que a prática de determinados atos que impliquem em restrições a direitos resguardados pela Constituição somente podem ser ordenados por magistrados;

k) Não se coaduna com o princípio da reserva constitucional de jurisdição (art. 2º; art. 60, §4º, III; art. 95, Parágrafo único, I; art. 5º, XXXV, XXXVII e LIII c/c a inteligência do art. 58, §3º da CF/88) situação onde se realize a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial.


VII.NOTAS

1. El Secreto Bancario, Abeledo, 1970, p. 15.

2. Direitos Fundamentais do Contribuinte. "Direitos Fundamentais do Contribuinte", RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, pp. 163/164.

3. Sigilo Bancário. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 01, pp. 20/21.

4. J. Blanco Ande. Teoria del Poder, Pirâmide, Madrid, p. 191.

5. Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, p. 118.

6. Curso Fundamental de Direito Constitucional, Dialética, p. 150.

7. Tratado de Derecho Administrativo, Fund. de Derecho Administrativo, p. 15.

8. Nota de Atualização. Aliomar Baleeiro. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Forense, 7ª ed., p. 16.

9. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª ed., 1981, p. 243

10. Michel Temer. Ob. Cit., p. 124.

11. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, pp. 580/586.

12. O Judiciário e a Constituição. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. "O Poder Judiciário: Algumas Reflexões", Saraiva, p. 40.

13. Direitos Fundamentais do Contribuinte. "Direitos Fundamentais do Contribuinte", RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, p. 73.

14. Direitos Fundamentais do Contribuinte. "Quebra do Sigilo Bancário pelo Ministério Público", RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, p. 147.

15. Direitos Fundamentais do Contribuinte.... , pp. 217/218.


VIII. BIBLIOGRAFIA

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ROQUE, Maria José Oliveira Lima. Sigilo Bancário & Direito à Intimidade. Juruá, 2001.

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Sobre o autor
Júlio Nogueira

advogado tributarista em Salvador, membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e da International Fiscal Association (IFA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Júlio. A quebra do sigilo bancário:: algumas inconstitucionalidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2379. Acesso em: 26 abr. 2024.

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