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A quebra do sigilo bancário:

algumas inconstitucionalidades

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01/11/2001 às 01:00
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"Muitas das pessoas que hoje atribuem pouca importância à separação dos Poderes, não percebem que iniciam o caminho para a ditadura".

(FRIEDRICH MÜLLER, apud Mário Guimarães. O juiz e a função jurisdicional, Forense, 1958, pp. 49-50)


I. INTRODUÇÃO

Mais uma vez é trazido ao foco a questão do sigilo bancário. Todavia, apesar de nos últimos anos o assunto tem suscitado intensos debates, ainda é pequena a contribuição doutrinária sobre a matéria.

No momento atual a discussão sobre o tema se intensificou com a publicação no Diário Oficial da União, do dia 10 de janeiro de 2001, da Lei Complementar nº 105 e do Decreto nº 3.724.

Com base nesta nova legislação, as autoridades fazendárias, passaram a entender que seu poder de fiscalizar as contas bancárias dos contribuintes não era obstada pela Constituição Federal, como se observa dos seguintes dispositivos que regem a matéria:

LEI COMPLEMENTAR Nº 105/2001

"Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

§3º Não constitui violação do dever de sigilo:

VI - a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º desta Lei Complementar.

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente".

DECRETO Nº 3.724/2001

"Art. 1º Este Decreto dispõe, nos termos do art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001 sobre a requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal e seus agentes, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas, em conformidade com o art. 1º, §§ 1º e 2º, da mencionada Lei, bem assim esclarecer procedimentos para preservar o sigilo das informações obtidas.

Art. 2º A Secretaria da Receita Federal, por intermédio de servidor ocupante do cargo de Auditor Fiscal da Receita Federal, somente poderá examinar informações relativas à terceiros, constantes de documentos, livros e registros de instituições financeiras e de entidades a elas equiparadas, inclusive os referentes a contas de depósitos e de aplicações financeiras, quando houver procedimento de fiscalização em curso e tais exames forem considerados indispensáveis.

§2º O procedimento de fiscalização somente terá inicio por força de ordem específica denominada Mandado de Procedimento Fiscal (MPF), instituído em ato da Secretaria da Receita Federal, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º deste artigo.

Art. 4º Poderão requisitar as informações referidas no caput do art. 2º as autoridades competentes para expedir o MPF.

§1º A requisição referida neste artigo será formalizada mediante documento denominado Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) e será dirigida, conforme o caso, ao:

III - presidente da instituição financeira, ou entidade a ela equiparada, ou a seu preposto;

IV - gerente de agência.

§ 2º A RMF será precedida de intimação ao sujeito passivo para apresentação de informações sobre movimentação financeira, necessária à execução do MPF."

Portanto, consoante se observa dos enunciados normativos acima dispostos, a legislação infraconstitucional e o seu regulamento passaram a outorgar ao Poder Executivo a legitimidade de resolver o confronto entre o interesse público e o direito fundamental individual (cláusula pétrea), determinando e promovendo a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva sua, sem a prévia autorização do Poder Judiciário.


II. O SIGILO BANCÁRIO

Dentre algumas definições de sigilo bancário elaboradas pelos estudiosos da matéria, a ensinada por JUAN CARLOS MALAGARRIGA, é a que detém maior prestígio, na medida que conceitua o instituto da seguinte forma:

"O sigilo bancário é obrigação de não revelar a terceiros, sem causa justificada, os dados referentes a seus clientes que cheguem a seu conhecimento como conseqüência das relações jurídicas que os vinculam". 1

Na perspectiva constitucional brasileira vislumbra-se algumas correntes doutrinárias que divergem sobre qual o dispositivo especifico da Constituição daria respaldo ao sigilo bancário.

Tem prevalecido no STF corrente que diz ser o sigilo bancário respaldado no art. 5º, X, CF/88, na medida que deve ser considerado como sendo uma das "projeções específicas do direito à intimidade", na grata expressão do Ministro Celso de Melo (STF, MSMC - 23639/DF).

Por outro lado, existe outra corrente representada pela Desembargadora Federal do TRF da 3ª Região - DIVA MALERBI - que entende está o sigilo bancário "inscrito na cláusula da inviolabilidade aos dados, inovação da Constituição Federal de 1988, pois que o âmbito de proteção do direito não se restringe à proibição à violação, mas compreende também o dever de terceiros que estejam colocados na contingência de ter de divulgá-los". 2

Em laborioso artigo sobre a matéria, o ilustre IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, explicita que vislumbra o sigilo bancário insculpido no inciso X e XII do art. 5º, da CF/88. 3

Particularmente, comungo da mesma posição defendida pelo Prof. IVES GANDRA, uma vez que também estou convencido que a expressão "sigilo de dados" hospeda no seu íntimo a espécie "sigilo bancário" (art. 5º, XII, da CF), além de tal matéria encontra-se respaldada também no direito à intimidade (art. 5º, X, da CF), como se vê:

"Art. 5º.

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução penal processual".

Portanto, como o sigilo bancário encontra abrigo no artigo 5º, X e XII da CF/88, e por isso mesmo é cláusula pétrea protegida pelo manto do art. 60, §4º, IV, da CF/88, não sendo sequer suscetível de ser abolido por Emenda Constitucional.


III. A LC 105/2001 E O DECRETO 3.724/2001 E OS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO ORGÂNICA DOS PODERES E DA INDELEGALIBILIDADE DE ATRIBUIÇÕES

A bem da verdade, fala-se em funções do Estado como exteriorização de seu poder, uma vez que antes de tudo o Ente estatal vem a ser uma organização jurídica personificada, com âmbito de validez próprio. Deste modo, o Estado pode aquilo que a sua Constituição determina ou permite, ao passo que a Constituição é ditada pelo Poder Político (soberano), exercido num determinado instante.

Desta forma, o Poder Político é um só, indivisível, dele necessitando o Estado para organizar-se, para manter a ordem e em subsistir. O Estado sem poder se converte em um vazio de substância, em um não Estado, razão pela qual esse poder é essencialmente uno. Neste contexto, as funções do Estado são separadas e não o seu Poder. Particularmente podem ser criados órgãos distintos para o desenvolvimento dessas funções, sem que a unicidade do Poder reste comprometida. 4

Devemos à Montesquieu a sistematização final da repartição de poder, através da idéia que previa a criação de órgãos distintos e independentes uns dos outros para o exercício de específicas e determinadas atividades.

O Barão de Montesquieu ao observar a interferência do Estado na sociedade verificou a existência de três funções básicas: 1ª) produtora do ato geral; 2ª) produtora do ato especial; e 3ª) solucionadora de controvérsias. No particular, apesar das duas últimas aplicarem o disposto no ato geral, porém, seus objetivos eram diversos, pois enquanto uma visava executar, administrar e dar o disposto no ato geral para desenvolver a atividade estatal, a outra tinha por objetivo solucionar controvérsias entre os súditos e o Estado ou entre os próprios súditos.

Todavia, no absolutismo, o Príncipe concentrava o exercício do poder de forma absoluta, exercitando-o por si ou por meio de auxiliares as distintas funções, sem a existência de órgãos independentes uns dos outros, pois a vontade do Príncipe era a fonte do ato geral, do especial e daquele solucionador de controvérsia. Em resumo, legislação, execução e jurisdição dependiam de seu querer.

Por isto, MICHEL TEMER, ao meditar sobre o tema ensina que:

"O valor da doutrina de Montesquieu está na proposta de um sistema em que cada órgão desempenhasse função distinta e, ao mesmo tempo, que a atividade de cada qual caracterizasse forma de contenção da atividade de outro órgão do poder. É o sistema de independência entre os órgãos do poder e da inter-relacionamento de suas atividades. É a fórmula dos ‘freios e contrapesos’ a que alude a doutrina americana". 5

Neste mesmo sentido, VALMIR PONTES FILHO esclarece que:

"O Poder não deve ser exercido incontroladamente, sob pena de vermos instaurada uma ditadura. Sem a separação funcional - à qual está incita a idéia de independência dos órgãos, a sua colaboração recíproca e o sistema de checkes and balances - os direitos individuais não poderiam estar garantidos, diante da onipotência do Ente estatal". 6

Abraçando estes mesmos princípios, o jurista argentino AGOSTIN GORDILHO adverte:

"Também é importante advertir acerca da fundamental importância política que tem a interpretação que se dá à teoria da divisão dos poderes; ela foi concebida como garantia da liberdade, para que o poder através de mútuo controle e interação dos três grandes órgãos do Estado: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. Falar, portanto, em divisão de poderes - no sentido de outorga das funções estatais, em regime de exclusividade, a órgãos distintos e independentes - é defender a liberdade, é impedir o absolutismo." 7

Esta concepção está totalmente impregnada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que observamos no seu art. 2º e art. 60, de forma categórica, tal concepção:

"Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário."

"Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

III - a separação dos Poderes".

Portanto, fica evidenciado que apesar da separação dos poderes cada órgão do Poder exerce, preponderantemente, uma função, e, secundariamente, as duas outras. Da preponderância advém a tipicidade da função; da secundariedade, a atipicidade. Neste passo, as funções típicas do Legislativo, Executivo e Judiciário são, em razão da preponderância, legislar, executar e julgar.

Com efeito, quanto ao Executivo se tem reconhecido atipicamente, até possibilidade de legislar em situações especialíssimas através de Leis Delegadas mediante expressa delegação do Congresso Nacional (CF, art. 68, caput, e §2º), ou através de Medidas Provisórias de forma transitória e nos casos de relevância e urgência (CF, art. 62).

Entretanto, neste particular, é importante frisar que a atipicidade da função no caso das Leis Delegadas é tão proeminente que o Executivo deverá solicitar autorização ao Congresso Nacional para que este lhe delegue competência para editar instrumento normativo com força de lei sobre matérias específicas (CF, art. 68), sendo expressamente vedada a delegação de competência para editar Lei Delegada sobre os direitos individuais (CF, art. 68, §1º, II).

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Já no que se refere as Medidas Provisórias, cumpre ressaltar também a atipicidade da função, tanto que a própria Constituição prevê esta transitória hipótese do poder de legislar (30 dias de eficácia) nos casos de relevância e urgência. Malgrado, não autoriza que esta modalidade legislativa de hierarquia de lei ordinária possa disciplinar ou restringir os direitos individuais porque cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV). Cabe ressaltar ainda que as Medidas Provisórias para serem convertidas em lei deverão ser submetidas ao exame do Congresso Nacional, preservando assim a tipicidade do poder de legislar o qual é inerente ao Poder Legislativo.

Portanto, percebe-se que a Assembléia Constituinte de 1988 transferiu para a Constituição sua grande preocupação com a ingerência do Poder Executivo no campo dos direitos e garantias individuais, uma vez que esta delicada questão envolve a própria consistência e estrutura do Estado Democrático de Direito.

Deste modo, a Constituição procurou afastar das atribuições do Poder Executivo qualquer forma de restrição aos direitos e garantias individuais através dos instrumentos que possui para exercitar a atipicidade da função legisferante.

De igual forma, deve ser reconhecida a atipicidade da função jurisdicional atribuída ao Poder Executivo quando cria órgãos ou organiza instâncias recursais para apreciar defesas e recursos administrativos. Todavia, estes órgãos vinculados ao Poder Executivo no desempenho da atividade atípica de solucionar litígio estão impedidos de fazê-lo quando este exercício venha impor restrição ao direito individual, justamente porque esta matéria é cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV).

Ademais, é imperioso esclarecer que a função jurisdicional dentro do rol de atribuições é uma função típica do Poder Judiciário, e por isso não poderia sequer ser delegada ao Poder Executivo sem a autorização expressa e específica da Constituição.

Tais conclusões se extraem do ordenamento jurídico constitucional em razão de um princípio que no dizer de MIZABEL ABREU MACHADO DERZI "dita o sentido e inteligibilidade do sistema"8 : o da indelegabilidade de atribuições típicas de um para o outro órgão do Poder. Todavia, cabe ressaltar que este princípio comporta unicamente as exceções previstas na própria Constituição de forma expressa e específica.

Destarte, no momento que a Constituição assinalou a independência entre os Poderes, naturalmente pressupôs a separação (CF, art. 2º c/c art. 60, §4º, III), portanto não seria de boa lógica ver a vontade soberana da Assembléia Constituinte ser ultrapassada pela vontade secundária dos órgãos de delegar suas funções típicas uns para os outros, pois se a delegação pudesse ser feita ao talante de cada Poder não haveria necessidade da autorização delegatória constitucional.

Particularmente, a Constituição prevê exaustivamente as hipóteses de delegação, e quando não desejou que tais delegações ocorressem, obviamente não as determinou, consoante regra de hermenêutica consubstanciada no brocardo latino: ubi lex voluit dixit, ubi noluit tocuit, isto é, quando a lei quis determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio.9

Foi Abraçando estes mesmos princípios que a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sob o prisma eminentemente constitucional, ao analisar o art. 129, VIII, da CF/88 decidiu que somente autorização delegatória expressa da Constituição poderia legitimar o Ministério Público a promover a quebra do sigilo bancário diretamente sem a autorização judicial, como se vê:

"CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA. C. F., ART. 129, VIII.

I - A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a C.F. consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.

II - R.E. não conhecido." (grifamos)

(STF, 2ª T., RE nº 215.301-0, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.04.99, DJ 28.05.99)

Neste julgamento do RE 215.301-0 são extraídas as seguintes premissas do voto condutor do Ministro Carlos Velloso:

"VOTO

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator):

Ora, no citado inc. VIII, do art. 129, da C.F., não está escrito que poderia o órgão do Ministério Público requerer, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de alguém. E se consideramos que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade que a Constituição consagra, art. 5º, inc. X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria a ação do Ministério Público para requerer, diretamente, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa."

Partindo deste mesmo ponto de vista, o Juiz Jirair Aram Megueriam, do TRF da 1ª Região, ao analisar o Agravo de Instrumento nº 2001.01.00.031437-0/BA (DJU 20.08.01) interposto por um contribuinte nosso cliente, terminou atribuindo efeito suspensivo ao recurso por considerar inconstitucional alguns dispositivos que autorizavam a Administração a quebra de sigilo bancário sem a prévia autorização do Poder Judiciário, em razão de infringir o princípio da separação dos poderes.

No caso em exame, quando o art. 1º, §3º, VI e art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 c/c art. 1º; art. 2º, §2º; art. 4º, III e IV, §2º do Decreto nº 3.724/2001 autorizam a Administração a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) sem a prévia autorização do Poder Judiciário, traz a baila situação onde o Poder Executivo pretende ter legitimidade para exercer uma função típica do Poder Judiciário, o que contraria o princípio da independência e separação orgânica dos Poderes e o princípio da indelegabilidade de atribuições, inclusive por faltar a autorização delegatória expressa e específica da Constituição neste sentido.


IV. A LC 105/2001 E O DECRETO 3.724/2001 E O PRINCÍPIO DA IMPOSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO SIMULTÂNEO DE FUNÇÕES

Ademais, cumpre ressaltar ainda que também não se coaduna com o princípio da impossibilidade de exercício simultâneo de funções a quebra do sigilo bancário da forma como estabelecida na norma infraconstitucional e na regulamentação.

No ordenamento constitucional também se extrai o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções, segundo o qual "quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro" (...) "ficando evidente que o exercício simultâneo de funções não é tolerado pela Constituição (salvo as hipóteses expressamente mencionadas)", pois o objetivo constitucional é cristalino: "quer-se preservar a independência de cada órgão do Poder".10

Ora, se o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções se manifesta na convicção do nosso sistema constitucional (CF, art. 56, I), com mais força ainda, e por que não dizer ostensivamente, com relação ao Poder Judiciário e a função jurisdicional, quando se observa o contexto do art. 2º; art. 95, Parágrafo único, I c/c art. 5º, XXXVII e LIII, da CF/88.

"CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 95. Os juizes gozam das seguintes garantias:

Parágrafo único. Aos juizes é vedado:

I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;

Art. 5º

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

LIV - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;"

Desta forma, quando as normas infraconstitucionais e regulamentares passaram a outorgar ao Poder Executivo a legitimidade de resolver o confronto entre o interesse público e o direito fundamental individual (cláusula pétrea) para determinar e promover a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva sua, independentemente de autorização judicial para fazê-lo, na verdade estava autorizando ao mesmo funcionário subordinado ao Poder Executivo a legitimidade para instaurar a acusação (art. 2º, §2º, do Dec. nº 3.724/2001) e efetivar a quebra do sigilo bancário garantido constitucionalmente (art. 4º, do Dec. nº 3.724/2001).

Abraçando este mesmo princípio, e desdobrando-o no caso concreto de forma lapidar, o Ministro Carlos Velloso ao relatar o já citado RE 215.301-0, foi acompanhado pelo voto dos Ministros Marco Aurélio, Maurício Corrêa e Nelson Jobim, realizando as seguintes ponderações no seu voto condutor:

"VOTO

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator):

Todavia, já deixei expresso no voto que proferi no MS 21.729-DF, por se tratar de um direito que tem status constitucional, a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade. Somente a autoridade judiciária, que tem o dever de ser imparcial, por isso mesmo procederá com cautela, com prudência e com moderação, e que, provocada (...) poderá autorizar a quebra do sigilo.

Então, como poderia a parte, que tem interesse na ação, efetivar, ela própria, a quebra de um direito inerente a privacidade, que é garantido pela Constituição? (...) Há órgãos e órgãos... que agem individualmente, e alguns, até, comprometidos com o poder político. O que não poderia ocorrer, indago, com o direito de muitos, por esses Brasis, se o direito das pessoas ao sigilo bancário pudesse ser quebrado sem maior cautela, sem a interferência da autoridade judiciária"

(STF, 2ª T., RE nº 215.301-0, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.04.99, DJ 28.05.99)

Logo, se o funcionário que instaura a acusação (art. 6º, da LC 105/2001 c/c art. 2º, §2º, do Dec. nº 3.724/2001) exerce função típica do Poder Executivo, então, esse mesmo funcionário subordinado ao Poder Executivo não pode ao mesmo tempo exercer função típica do Poder Judiciário (art. 6º, da LC 105/2001 c/c art. 4º, do Dec. nº 3.724/2001) que importe em restringir um direito inerente à privacidade garantido pela Constituição, sob pena de violação ao princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções.

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Sobre o autor
Júlio Nogueira

advogado tributarista em Salvador, membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e da International Fiscal Association (IFA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Júlio. A quebra do sigilo bancário:: algumas inconstitucionalidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2379. Acesso em: 2 nov. 2024.

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