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Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos

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25/02/2013 às 14:36
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6. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos

6.1 Introdução

Como é cediço, ao lado do sistema global de proteção dos Direitos Humanos, existem os sistemas regionais de proteção (v.g o europeu e o africano). Ao presente trabalho, interesse de forma especial o sistema interamericano, formado por quatro principais instrumentos: a Carta da Organização dos Estados Americanos (1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica; e o Protocolo Adcional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), também nominado de Protocolo de San Salvador (MAZZUOLI, 2010, p. 825).

Tendo em vista o desiderato desta pesquisa, na primeira parte deste capítulo serão feitas apenas algumas considerações genéricas, todavia pontuais, acerca do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, e, na segunda parte, serão feitas observações mais detalhadas sobre a estrutura dos órgãos especiais de proteção e de promoção dos direitos humanos no âmbito do continente americano: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Com efeito, a análise do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos dever se feita a partir do contexto geográfico em que está inserido este sistema. Isso porque o sistema interamericano de proteção configura-se em referencial importantíssimo numa região que até pouco tempo atrás era marcada por regimes ditatoriais que, como se sabe, não tinham muito apreço pelos direitos humanos. Desse contexto, advém a preocupação da presente pesquisa: apresentar uma discussão (que não é nova na doutrina, evidentemente) que possa contribuir para o aperfeiçoamento do sistema interamericano, de modo a oferecer às vítimas meios mais celéres e eficazes à proteção dos direitos humanos, minimizando os entraves existentes na maioria dos países do continente americano que lutam para consolidar os valores do respeito à democracia e à dignidade da pessoa humana.

Nesta linha argumentativa, têm-se como relevantes as observações feitas por Piovesan:

A análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos demanda seja considerado o seu contexto histórico, bem como as peculiaridades regionais. Trata-se de uma região marcada pr elevado de exclusão e desigualdade social, ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico (PIOVESAN, 2011, p. 123).

Efetivamente, foi neste contexto que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos foi se estruturando, desempenhando, com o passar dos anos, um papel de suma importância na promoção dos direitos humanos. É bem verdade que a onda democrática vivenciada nos países latino-americanos nos últimos tempos tiveram o efeito de fazer com os Estados reavaliassem as suas posturas em relação ao tema direitos humanos, a partir da percepção de que a democracia somente se sustenta se os direitos humanos forem levados a sério.

Nesta ordem de ideias, mister fazer referência ao principal instrumento de proteção do sistema interamericano. Trata-se da Convenção Americana de Direitos Humanos (doravante chamada de Convenção Americana), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, assinada neste país em 1969, tendo, contudo, entrado em vigor em 1978.

A importância da Convenção para a consolidação da democracia nos países latino-americanos é indiscutível, pois, à medida que os Estados passam a aderi-la, assumem o compromisso internacional de respeitar e fazer valer os seus termos.

Como ressalta Mazzuoli (2010, p. 826), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos fortaleceu o sistema regional interamericano de proteção, inaugurado com a Carta da OEA e explicitado pela Declaração Americana, sobretudo por dar mais efetividade à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Ainda, relativamente à Convenção, impende consignar que ela basicamente assegure os chamados direitos de primeira geração ou dimensão, àqueles relativos à garantia da liberdade, à vida, o direito à liberdade, o direito à igualdade, não fazendo referência específica aos direitos econômicos, sociais e culturais, que somente foram objeto de conveção por ocasião da conclusão do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ANNONI, 2009, p.88-89).

Na Convenção Americana há a previsão de dois instrumentos de promoção e efetivação dos direitos humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acima mencionada, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tais instrumentos serão analisados de forma mais pormenorizada nos tópicos seguintes, notadamente porque a compreensão de como estes organismos funcionam será importante para uma melhor fundamentação das questões a serem abordadas no sétimo capítulo.

Anote-se, por fim, que o propósito não será o de apresentar e discutir casos específicos apreciados e julgados pela Comissão e pela Corte Interamericanas, mas, ao revés, tendo em conta o objetivo do trabalho, apenas tecer observações um tanto quanto genéricas sobre a estrutura de funcionamento destes órgãos.

6.2 Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Imprescindível ao desenvolvimento da presente pesquisa é o exame detalhado de como funciona a Comissão Intermericana de Direitos Humanos, com enfâse em sua estrutura.

De efeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem origem na Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, ocorrida em Santiago (Chile) em 1959. Entretanto, a Comissão iniciou seus trabalhos apenas no ano seguinte, em conformidade com o disposto no seu primeiro estatuto, tendo por escopo promover tanto os direitos estabalecidos na Carta da OEA, quanto àqueles relativos à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (MAZZUOLI, 2010, p. 827).

A Comissão tem competência para conhecer de todos os assuntos relacionados ao cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados ao assinar a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem assim em relação aos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, relativamente aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948 (PIOVESAN, 2011, p.129).

Nos termos do art. 34 da Conveção Americana de Direitos Humanos, a Comissão compõe-se de sete membros, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da Organização, a partir de uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros (art. 36-1 da Convenção). Em acréscimo, é preciso registrar que os membros da Comissão serão eleitos para um mandato de quatro anos e só poderão ser reeleitos uma vez (art. 37-1 da Convenção).

Entre as atribuições conferidas à Comissão, a fim de efetivar e promover os direitos humanos no espaço geográfico de sua competência, oportuna a síntese articulada por Mazzuoli. Veja:

No exercício de seu mandato, a Comissão Interamericana tem as seguintes funções e atribuições (art. 41): a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos (podendo, inclusive, realizar inspeções in loco nesses Estados; e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da OEA, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que solicitarem; f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos arts.44 a 51 da Convenção Americana; e g) apresentar um relatório anual à Assembléia-Geral da OEA (MAZZUOLI, 2010, p. 828).

Como se vê, à Comissão foram conferidas inúmeras atribuições como meio para permitir a este órgão uma atuação destacada e efetiva na proteção dos direitos humanos previstos na Convenção Americana[5], bem como em relação àqueles estatuídos pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

Dentre as funções da Comissão, importa aprofundar a análise sobre o mecanismo de denúncias individuais ou grupos de indivíduos, ou, ainda, dos outros legitimados, realizadas com o intuito de fazer valer os direitos humanos na América.

A importância do mecanismo de proteção inaugurado pela Comissão é lembrado Galli e Dulitzky, ao afirmarem que:

O uso deste mecanismo deve ser encarado como parte de um processo de lutas políticas e sociais históricas, pela efetiva melhora das condições de vida dos grupos sociais mais vulneráveis da sociedade brasileira (GALLIS e DULITZKY, 2000, p. 54).

Embora a citação faça menção à proteção de direitos humanos no âmbito da sociedade brasileira, é evidente que a função da Comissão representa para toda América, em especial para aqueles países em que a violação aos direitos humanos se deu de forma mais intensa, um espaço no qual as violações aos direitos humanos são tratadas de forma séria, contribuindo, dessa forma, para formação de uma consciência de que os direitos humanos são vitais para o progresso dos Estados.

Dito isso, cumpre examinar o procedimento de justicialização dos direitos humanos perante à Comissão com um grau maior de especificidade, procurando destacar, desde já, a capacidade do indivíduo em apresentar uma denúncia junto à Comissão, tendo em vista que o seu acesso direto à Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda é bastante limitado, que, na linha que é defendida neste trabalho, constitui-se em óbice a uma maior eficiência do sistema, circunstância que será melhor debatida no sétimo capítulo.

Pois bem, o art. 44 da Convenção prevê que qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou determinadas entidades, bem como os Estados-membros da OEA, têm legitimidade para apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violações de direitos humanos por um Estado-parte.

A fim de instaurar a jurisdição da Comissão, faz-se necessária a apresentação de uma petição perante à Comissão, a qual deverá preencher alguns requisitos de admissibilidade, elencados no art. 46, § 1º, da Convenção[6]. Em relação aos requisitos de admissibilidade, ressalte-se que eles são praticamente os mesmos estabelecidos pela Convenção Européia, com exceção ao requisito atinente ao esgotamento dos recursos internos, que no sistema europeu é dito como indispensável, ao passo que no sistema interamericano é considerado mais flexível (ANNONI, 2009, p. 93).

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No que se refere ao requisito do esgotamento dos recursos internos, Cançado Trindade, citado por Piovesan (2011, p. 132), assim leciona:

Como se sabe, estamos diante da regra de Direito Internacional em virtude da qual se deve dar ao Estado a oportunidade de reparar um suposto dano no âmbito de seu próprio ordenamento jurídico interno, antes de que se possa invocar sua responsabilidade internacional, trata-se de uma das questões que, com maior freqüência, é suscitada no contencioso internacional, concernente tanto à proteção diplomática de nacionais no exterior, como à proteção internacional dos direitos humanos. (...) O dever de provimento pelos Estados-partes de recursos internos eficazes, imposto pelo tratado de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de direitos humanos impõem aos Estados-partes o dever de assegurar às supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no direito interno), que, reversamente, requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a nível internacional (PIOVESAN, 2011, p. 132).

Em sendo admitida a petição, porque presentes os requisitos de admissibilidade, abre-se, efetivamente, o procedimento perante à Comissão, que deverá proceder de acordo com as disposições do art. 48 da Convenção, as quais serão pormenorizadas a seguir.

A primeira providência a ser adotada pela Comissão é solicitar informações ao Estado denunciado, de modo que o contraditório seja observado. Com as informações, prestadas em um prazo fixado pela Comissão em atenção às peculiaridades do caso concreto, a Comissão fará uma análise a fim de examinar se existem ou não os motivos descritos na petição ou comunicação. Caso a Comissão conclua pela inexistência dos fatos articulados na petição, esta será arquivada. Ressalte-se que a inadmissibilidade ou improcedência da petição poderá ser declarada por informação ou prova supervenientes.

Ao contrário, se a conclusão for noutro sentido, a Comissão procederá, com o conhecimento das partes, a um exame dos fatos expostos na petição ou comunicação. Em sendo necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação, devendo os Estados e as partes interessadas proporcionar todas as facilidades necessárias a esta investigação.

Além disso, a Comissão poderá solicitar aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, caso solicitado, as exposições verbais ou escritas dos interessados. Por fim, ainda na primeira etapa do procedimento, a Comissão pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos reconhecidos na Convenção Americana.

Um exemplo de solução amistosa alcançada a partir da atuação da Comissão é o caso do jornalista argentino Horácio Verbistsky, condenado pelo crime de desacato ao Ministro da Suprema Corte Argentina. Na hipótese, Verbistsky alegou ofensa ao art. 13 da Convenção Americana, que trata da liberdade de pensamento e opinião, bem assim ao art. 8 da Convenção, que garante o direito de um julgamento imparcial e independente pelo tribunal competente. No acordo celebrado, o governo argentino comprometeu-se a revogar os dispositivos da lei de desacato, beneficiando, dessa forma, Verbistsky, em face do princípio da leis posterior mais benéfica. Por outro lado, o peticionante renunciou ao pleito de indenização por danos morais. Ao final, o acordo foi cumprido e o caso arquivado pela Comissão (ANNONI, 2009, p. 96-97).

Importante fazer alusão à previsão contida no art. 48-2 da Convenção, no sentido de que em casos graves e urgentes, é possível a realização de uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado em cujo território se alegue haver sido cometida a violação, sendo exigida apenas uma petição ou comunicação que preencha os requisitos formais de admissibilidade.

Quanto a este aspecto procedimental, frise-se que a Comissão já procedeu (e vem procedendo) a inúmeras investigações in loco, com o objetivo de apurar violações ao direito à vida, à integridade física, entre outros direitos assegurados pela Convenção e a Declaração Americana.

Exemplificativamente, cite-se a atuação, neste particular, da Comissão na Colômbia. Neste país, a Comissão vem monitorando a questão dos direitos humanos desde o início da década de 80, quando ocorreu a primeira visita in loco, de 21 a 28.04.1980. Na ocasião, a Comissão teve importante participação na solução do problema envolvendo a invasão da Embaixada da República Dominicana por um grupo guerrilheiro chamado M-19. Tal fato gerou o primeir relatório da Comissão sobre a Colômbia, e a criação de um grupo especial de monitoramento do país desde então (ANNONI, 2009, 100-101).

Alcançada uma solução amistosa para o caso submetido à apreciação da Comissão, esta elaborará um informe que será transmitido ao peticionário e aos Estado-partes da Convenção Americana, sendo comunicado posteriormente à Secretaria da Organização dos Estados Americanos (OEA) para publicação. O informe conterá uma breve exposição dos fatos e a solução alcançada (PIOVESAN, 2011, p. 319).

Todavia, não solucionado o caso de forma amistosa, a Comissão redigirá um relatório, no qual exporá os fatos e suas conclusões. Acerca do conteúdo do relatório, Buergenthal, citado por Piovesan (2011, p. 320), tece a seguinte observação:

É importante notar que o relatório elaborado pela Comissão, na terceira fase do procedimento, é mandatório e deve conter as conclusões da Comissão indicando se o Estado referido violou ou não a Convenção Americana.

Decorridos três meses da remessa do relatório aos Estados interessados, aliada a circunstância de o caso apresentado à Comissão não ter sido solucionado ou, ainda, não submetido à Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, a Comissão publicará um segundo informe. Por sua vez, neste segundo informe, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos membros, sua própria opinião e conclusões sobre a questão submetida a sua apreciação. Anote-se que na fase do segundo informe, somente ocorrerá se o assunto não tiver sido solucionado pela Comissão ou submetido à decisão da Corte, na hipótese de o Estado não ser parte da Convenção Americana, ou, em sendo, não ter ainda reconhecido a competência contenciosa da Corte (MAZZUOLI, 2010, p. 831).

Nesta oportunidade, a Comissão fará recomendações que julgar pertinentes ao caso em exame, fixando, outrossim, um prazo dentro do qual o Estado deve tomar medidas que lhe competir para remediar a situação.

Transcorrido o prazo estabelecido pela Comissão, esta decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas necessárias e se publica ou não seu relatório.

De acordo com Annoni (2009, 98), em relação às violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil, há em curso várias investigações levadas a efeito pela Comissão, como destaque para os casos do Carandiru (n.11.291), de Corumbiara (n. 11.556), dos Adolescentes internos do Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro (n. 11.702) e dos Desaparecidos do Araguaia (n.11.552).

Como se pôde verificar, a Comissão desempenha um papel de suma importância na proteção dos direitos humanos previstos na Convenção Americana, bem como quanto àqueles nominados na Declaração Americana de 1948. Registra-se, mais uma vez, a ampla capacidade processual conferida ao indivíduo neste órgão, o que, de fato, possibilita que muitas violações aos direitos humanos que não chegariam ao conhecimento da Comissão sejam apreciadas. No entanto, como será discutido adiante, ao fortalecimento do Sistema Interamericano de Proteção, de modo que cada vez mais os direitos humanos sejam respeitados pelos Estados e pelas pessoas, é essencial que ao indivíduo seja conferida capacidade processual perante à Corte, desde o início do procedimento.

6.3 Corte Interamericana de Direitos Humanos

Como referido alhures, além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Sistema Interamericano de Proteção possui outro órgão com competência para promover e efetivar os direitos humanos no âmbito territorial americano. Trata-se da Corte Interamerica de Direitos Humanos, cuja natureza é de tribunal internacional supranacional, capaz de condenar os Estados-partes na Convenção Americana por violação de direitos humanos (MAZZUOLI, 2010)

 Importante frisar que a Corte Interamericana tem origem na Convenção Americana de 1969, não sendo, pois, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), como ocorre com a Comissão Interamericana, que a um só tempo é órgão tanto da OEA como da Convenção.

Nos termos do estatuto regulador da Corte Interamericana, esta possui competência consultiva e contenciosa. A competência consultiva está detalhada no art. 64 da Convenção, ao passo que a competência contenciosa tem previsão nos arts. 61, 62 e 63 da referida Convenção.

Antes, porém, de examinar com um pouco mais de acuidade a competência consultiva e contenciosa da Corte, mister fazer uma breve exposição de sua estrutura, bem como do procedimento pertinente ao trâmite de uma demanda que aprecie violações aos direitos humanos.

A organização da Corte esta prevista a partir do art. 52-1 da Convenção, observando, inicialmente, que a Corte é composta por sete juízes, nacionais dos Estados-membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral e com reconhecida competência em matéria de direitos humanos. Saliente-se que não poderá haver dois juízes da mesma nacionalidade.

A eleição dos juízes dar-se-á em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados-partes na Convenção, por ocasião da realização da assembléia-geral. A lista de candidatos será elaborada pelos Estados-partes, sendo que se algum destes indicar o número de três, obrigatoriamente um deles deverá ser nacional de um Estado diverso do proponente.

Os juízes serão eleitos para um exercício de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez. O juiz que for eleito para substituir outro, cujo mandato não haja expirado, completará o período deste.

Caso um dos juízes chamados para conhecer do caso for de nacionalidade dos Estados-partes, o outro Estado-parte envolvido poderá designar um juiz ad hoc para integrar a Corte. Por outro lado, se, dentre os juízes chamados a apreciar o caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados-partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc. O quorum para as deliberações da Corte é composto por cinco juízes.

A corte designará um secretário, o qual residirá em sua sede, tendo a responsabilidade de assistir às reuniões realizadas pela Corte em territórios de outros Estados-partes.

A Secretaria da Corte será por esta estabelecida e funcionará sob o comando do Secretário-Geral da Organização em tudo o que não for incompatível com a independência da Corte.

Feitas essas considerações gerais atinentes à organização da Corte, cumpre voltar ao exame de sua competência. Como apontado anteriormente, a Corte possui uma competência consultiva e outra contenciosa. Esta é restrita à Convenção Americana de Direitos Humanos e ao Protocolo Adicional de San Salvador, enquanto a consultiva abarca todo o sistema interamericano, de modo que à Corte é franqueada à interpretação de qualquer tratado sobre direitos humanos em vigor nos Estados americanos  (ANNONI, 2009).

Relativamente aos inúmeros pareceres já emitidos pela Corte no exercício da competência consultiva, merece destaque o parecer (Opinião Consultiva n. 3, de 8 de setembro de 1983) sobre a impossibilidade da adoção da pena de morte no Estado da Guatemala (PIOVESAN, 2011, p. 139).

Especificamente quanto à competência contenciosa da Corte, registre-se ser a jurisdição desta limitada aos Estados-partes que expressamente aceitarem sua jurisdição. Relativamente à competência consultiva, a adesão dos Estados-partes se deu de forma automática, no momento em que estes ratificaram a Convenção (MAZZUOLI, 2010).

Vale dizer que a Corte não pode emitir opiniões de ofício no que se refere a sua competência consultiva. A propósito, sobre o conteúdo dos pareceres emanados da Corte no exercício de sua competência consultiva, Pinto (2002) citado por Bolfer (2010, p. 627), assim leciona:

(...) a Corte tem emitido opiniões consultivas que têm permitido a compreensão de aspectos substanciais da Convenção, dentre eles: o alcance de sua competência consultiva, o sistema de reservas, as restrições à adoção da pena de morte, os limites ao direito de associação, o sentido do termo “leis” quando se trata de impor restrições ao exercício de determinado direitos, a exibilidade do direito de retificação ou resposta, o habeas corpus e as garantias judiciais nos estados de exceção, a interpretação da Declaração Americana, as exceções ao esgotamento prévio dos recursos internos e a compatibilidade de leis internas em face da Convenção.

Quanto ao procedimento consultivo, tem-se que o pedido é recebido pelo Secretário da Corte, cuja importância é a de enviar cópias para todos os Estados-partes, à Comissão, ao Secretário-Geral da OEA e aos demais órgãos cuja competência se refira aos termos da consulta. A opinião consultiva tem efeito vinculante, sob pena de os Estados que não observarem incorrem em responsabilização internacional e, ainda, dotado de validade ergam omnes (ANNONI, 2009).

No que tange à competência contenciosa, inicialmente, observa-se que o art. 61 da Convenção Americana estabelece que somente os Estados-partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à decisão da Corte. Neste momento, a informação que importa é esta. Todavia, mais adiante, em especial no terceiro capítulo, o fato de o indivíduo não possuir capacidade processual autônoma perante à Corte será melhor discutido.

Entretanto, com o intuito de amenizar esta restrição (inadequada como se verá oportunamente), a Corte, no ano de 2001, empreendeu uma revisão substancial em seu Regulamento, de molde a assegurar a participação das vítimas perante à Corte, desde que instaurada a jurisdição desta. Assim, permitiu-se às vítimas e aos seus representantes a possibilidade de submeterem os seus argumentos, arrazoados e provas perante à Corte, o que, de fato, constituiu-se em um avanço importante na proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011).

Sobre a competência contenciosa da Corte, Cançado Trindade (1993), citado por Piovesan (2011, p. 142), afirma que:

Os Tribunais internacionais de direitos humanos existentes – as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos – não ‘substituem’ os Tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos Tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais, quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de Direitos Humanos.

No que concerne ao procedimento de um caso perante à Corte, impende ressaltar que previamente à instauração de sua jurisdição – na hipótese de o caso ser levado ao seu conhecimento pela Comissão – deve haver o esgotamento das fases estabelecidas nos arts. 48 e 50 da Convenção Americana.

Como salientado, os Estados-partes também possuem capacidade processual perante à Corte, desde que previamente tenham consentido com sua jurisdição[7]. Este consentimento pode ser incondicional, válido para todos os casos ou, então em condições de reciprocidade, por determinado tempo ou para um caso específico (BOLFER, 2010).

Voltando à situação de o caso ser encaminhado à apreciação à Corte pela Comissão – hipótese muito mais factível – cumpre anotar que o acionamento daquela será feita por meio de uma ação judicial, tal como se procede com a propositura de uma demanda nos termos do processo civil (MAZZUOLI, 2010).

A questão deve ser apresentada à Secretaria da Corte, por meio de petição, contendo uma série de requisitos, entre os quais se destacam as partes do caso, o objeto da demanda, os fatos, as provas indicadas, as testemunhas e os peritos a serem ouvidos, bem assim os fundamentos de direitos com as consequentes conclusões (PRONER, 2002).

Após esta etapa, incumbe ao Presidente da Corte proceder a um exame prévio acerca da admissibilidade da demanda, verificando o cumprimento dos requisitos fundamentais. Nesta análise, caso o Presidente constate a ausência de alguns dos requisitos, solicitará que o demandante supra as lacunas no prazo de vinte dias. Em seguida, abre-se o prazo para o que Estado demandado ofereça sua contestação, no prazo de quatro meses, contados da notificação, a qual deverá atender os mesmos requisitos da petição inicial. Ato contínuo, dá-se início à fase oral, com a fixação de audiencias (ANNONI, 2009).

É imprescindível salientar, contudo, que antes mesmo de o Estado demandado apresentar sua contestação, as partes podem pactuar um acordo, uma solução amistosa para o caso apresentado à Corte. Nesse sentido, leciona Mazzuoli:

Nada obsta que as partes cheguem a uma solução amigável da disputa, levando ao conhecimento da Corte a solução a que chegaram, caso em que a Corte poderá homologar a conciliação, atuando agora como fiscal das normas de direitos humanos protegidas pela Convenção Americana. Mas nada impede também que a Corte não homologue a conciliação das partes, levando em conta alguns aspectos do acordo concertado entre elas (arts. 54 e 55 do Regulamento da Corte) (MAZZUOLI, 2010, p. 102).

Não havendo acordo e finalizada a fase probatória, o procedimento é encerrado por meio de uma sentença, que deverá ser fundamentada, conforme dicção do art. 66-1 da Convenção Americana. Caso a sentença não expresse no todo ou em parte a opinião unânime dos juízes, há a possibilidade de voto dissidente ou individual ser agregado à sentença, conforme o art. 66-2.

De acordo com o art. 67 da Convenção Americana, a sentença proferida pela Corte será definitiva e inapelável. Na hipótese de divergência quanto ao sentido ou ao alcance da sentença, à Corte compete a tarefa de interpretá-la, a pedido de qualquer das partes, desde que o mesmo seja apresentado no prazo de noventa dias após a notificação da sentença.

Nesta sentença, caso a Corte reconheça que efetivamente ocorreu a violação à Convenção Americana, articulada na petição, ela determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito violado. Ainda, poderá condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima (PIOVESAN, 2011).

Com relação, ainda, às sentenças proferidas pela Corte, importante enfatizar que elas possuem natureza meramente declaratória, não tendo, em razão disso, aptidão para desconstituir um ato interno, como, por exemplo, anular um ato administrativo, revogar uma lei ou determinar a cassação de uma sentença judicial. Há, porém, uma exceção, que ocorre quando a decisão da autoridade da parte contratante é oposta às obrigações derivadas da Convenção e o direito da Parte Contratante não puder remediar as consequências dessa disposição, caso em que a Corte deverá conceder ao lesado uma reparação razoável (ANNONI, 2009).

Para arrematar a discussão atinente à jurisdição conteciosa da Corte, cumpre fazer menção ao conhecido caso “Velasquez Rodriguez”. Neste julgamento a Corte condenou o Estado de Honduras, por violação aos arts. 4, 5 e 7 da Convenção, combinado com o art. 1 deste diploma, em votação unânime, a pagar uma justa indenização aos familiares de Velasquez Rodrigues (PIOVESAN, 2011).

O caso concreto dizia respeito ao desaparecimento forçado de  Velasquez Rodriguez no Estado de Honduras, em um momento de turbulência institucional neste país. Após uma séria investigação, a Corte concluiu ser o Estado de Honduras culpado pelo desaparecimento de Velazquez Rodriguez, tendo em vista não ter adotado as providências necessárias à proteção da vida deste (PIOVESAN, 2011).

 Em relação ao Estado brasileiro, vale o registro do caso Damião Ximenes Lopes. Este caso envolveu a morte, após três dias de internação em hospital psiquiátrico, de pessoa com deficiência mental. O que chama a atenção neste julgamento é o fato de que pela primeira vez a Corte enfrentou um caso de saúde mental. Ademais, neste caso apontou-se a responsabilidade internacional do Estado por omissão, ante a violação aos direitos à vida, à integridade física e à proteção judicial da vítima (PIOVESAN, 2011).

Em linhas gerais, essa é a estrutura organizacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E, ainda que analisados apenas alguns casos específicos objetos de julgamento pela Corte, uma conclusão é inarredável, qual seja, a contribuição que ela vem dando para proteção dos direitos humanos no território americano, permitindo, outrossim, a construção de uma democracia que valorize a cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana.

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Sobre o autor
Ederson Couto da Rocha

Procurador da Fazenda Nacional. Pós graduado em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ederson Couto. Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.: Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23812. Acesso em: 4 nov. 2024.

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