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Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos

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25/02/2013 às 14:36
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A questão de atribuir à vítima capacidade processual perante a Corte está em plena consonância com as normas protetivas dos direitos humanos, as quais são dotadas de conteúdo imperativo (jus cogens), de obrigações erga omnes, que devem ser observados por todos Estados.

Resumo: O trabalho tem por objeto de discussão o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. O objetivo da pesquisa é analisar a questão envolvendo o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima ou seu representante legal no procedimento perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos como condição necessária ao pleno desenvolvimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. A metodologia utilizada teve por base de investigação o método dedutivo e como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica. O desafio atual é o de encontrar meios para melhor proteger os direitos humanos, uma vez que estes já se encontram fundamentados em diversos instrumentos normativos internacionais. No âmbito do sistema interamericano de proteção, a Comissão e a Corte Interamericanas têm feito um trabalho inovador, contribuindo para a proteção dos direitos humanos na região. Atualmente, a vítima tem legitimidade para oferecer suas razões e argumentos perante à Corte, desde que a jurisdição desta tenha sido instaurada. No entanto, tal condição não se afigura adequada ao nível atual de internacionalização dos direitos humanos, voltados à proteção da dignidade humana, bem como em relação à crescente demanda por justicialização dos direitos humanos. O reconhecimento do locus standi da vítima ante à Corte Interamericana constitui um avanço importante, mas não a etapa final do aperfeiçoamento do sistema interamericano. É o momento de dar um passo à frente, dotando a vítima de plena capacidade processual internacional no âmbito americano. Tal medida terá por efeito principal fortalecer o sistema interamericano de proteção, uma vez que permitirá à vítima submeter um caso diretamente à Corte, deixando para a Comissão o trabalho de auxiliar da Corte, bem assim o de guardiã da Convenção Americana.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Sistema Interamericano de Proteção – Comissão e Corte Interamericanas – Vítima – Capacidade Processual.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. PROBLEMA DA PESQUISA. 2. OBJETIVO. 3. METODOLOGIA. 4. REFERENCIAL TEÓRICO. 5. SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 5.1 INTRODUÇÃO. 5.2 PRECEDENTES HISTÓRICOS NO PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 5.3 CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS. 6. O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 6.1 INTRODUÇÃO. 6.2 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 6.3 CORTE INTERAMERICANADE DIREITOS HUMANOS. 7. A IMPOSSIBILIDADE DE A VÍTIMA SUBMETER UM CASO DIRETAMENTE À CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – NECESSIDADE DE APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 9. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

A crescente universalização dos direitos humanos, iniciada sob o viés contemporâneo a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, exige a criação de instrumentos aptos à concretização material desses direitos.

Nesta perspectiva, é essencial que haja um constante aperfeiçoamento dos sistemas de proteção dos direitos humanos, em especial do Sistema Internamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a fim de fortalecer a proteção dos direitos humanos no continente americano.

Neste contexto de afirmação e de reconhecimento dos direitos humanos no cenário internacional, bem como do aumento da justicialização de tais direitos, tem-se que é importante analisar o desenvolvimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em especial a questão pertinente à capacidade processual da vítima ou de seu representante legal em peticionar diretamente perante à Corte Interamericana, desde o início do procedimento, uma vez que o reconhecimento pleno do jus standi in judicio da vítima se configura como um pressuposto imprescindível ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.

Com este objetivo, no primeiro capítulo, busca-se apresentar uma noção geral do Sistema Internacional de Direitos Humanos, com enfoque no estudo dos principais fundamentos que dão embasamento à denominada concepção contemporânea de direitos humanos.

Para tanto, num primeiro momento, serão apontados os principais precedentes históricos que contribuíram de modo significativo para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Três movimentos internacionais serão destacados: o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Num segundo momento, a análise será centrada em apontar os fundamentos que deram origem à chamada concepção contemporânea de direitos humanos, bem como compreender qual a importância desta concepção dentro do Sistema Internacional de Direitos Humanos.

No segundo capítulo, aborda-se a estrutura jurisdicional do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Inicialmente, serão feitas algumas observações genéricas acerca do sistema interamericano, com destaque para o principal instrumento de proteção deste sistema, qual seja, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de pacto de San José da Costa Rica.

Na sequência do segundo capítulo, serão apresentados, em linhas gerais, os principais aspectos estruturais do funcionamento dos dois órgãos jurisdicionais do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos responsáveis pela apuração dos casos de violações de direitos humanos ocorridos no continente americanos. São eles: a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Por fim, no terceiro capítulo, trata-se da questão pertinente à impossibilidade de a vítima ou seu representante legal submeter um caso diretamente perante à Corte interamericana. Para tanto, procurar-se-á demonstrar que o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima é necessário ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, notadamente porque o desafio que se apresenta na atualidade não é o de reconhecer direitos, mas, o de protegê-los.

Nesta perspectiva, poderá ser constatado pelos leitores que, a despeito de a sistemática vigente ter contribuído para a proteção dos direitos humanos nas Américas, o acesso direto da vítima à Corte Interamericana permitirá uma maior democratização do sistema, além de fortalecer o crescente processo de justicialização dos direitos humanos.


1. PROBLEMA DA PESQUISA

O não reconhecimento da capacidade processual ampla da vítima (ou seu representante legal) para demandar o Estado violador de uma norma de proteção aos Direitos Humanos perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui-se em um óbice ao aperfeiçoamento do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos?


2. OBJETIVO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a questão envolvendo o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima ou seu representante legal no procedimento perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos como condição necessária ao pleno desenvolvimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.


3. metodologia

A metodologia de pesquisa do presente trabalho terá por base de investigação o método dedutivo e terá como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica.


4. referencial teórico

A doutrina especializada reconhece que o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos tem desempenhado um papel importante no que se refere à proteção dos direitos humanos no continente americano.

No entanto, esta mesma doutrina entende que, a despeito de o sistema ter avançado na sua atuação, mormente em face do novo Regulamento da Corte Interamericana de 2000 – atualizado em 2009 – o qual possibilitou às vítimas apresentar suas razões perante à Corte quando já instaurada a jurisdição desta, é preciso medidas efetivas com a finalidade aprimorá-lo ainda mais, de molde a ampliar cada vez mais a proteção dos direitos humanos.

Nesta perspectiva, Piovesan (2011, p. 157) aponta algumas propostas com objetivo de permitir o aprimoramento do sistema intermericano. Entre as propostas apresentadas pela autora, está a que imprime maior democratização ao sistema interamericano, por meio do acesso direto da vítima à Corte Interamericana, hoje restrito apenas à Comissão e aos Estados.

Cançado Trindade compartilha do mesmo entendimento:

Do locus standi in judicio dos indivíduos ante a Corte Interamericana teremos que evoluir rumo ao reconhecimento,mais adiante, do direito dos indivíduos de demandarem aos Estados-partes diretamente ante a futura Corte Interamericana, levando diretamente a esta casos concretos (jus standi), como órgão jurisdicional único de proteção por vir (CANÇADO TRINDADE, 2000, p. 148).

De fato, a crescente demanda pela justicialização dos direitos humanos no continente americano exige medidas conducentes ao aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção. Entre elas, está em dotar o indivíduo de capacidade processual plena perante à Corte, reconhecendo-o como verdadeiro sujeito de direitos no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Como observa Cançado Trindade (2000, p. 147), “Não é razoável conceber direitos no plano internacional sem assegurar a capacidade correspondente de vindicá-los”.


5. Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos

5.1 Introdução

Este capítulo visa, tão somente, apontar os principais fundamentos que dão embasamento a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, de modo a melhor justificar as conclusões articuladas no sétimo capítulo, no sentido de que a justicialização dos direitos humanos merece um aperfeiçoamento no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, compatível com a importância dada a tais direitos pela Sociedade Internacional na atualidade.

Entretanto, ressalta-se que o presente capítulo não tem por objetivo fazer uma análise aprofundada acerca das razões e fatos que contribuíram para o fortalecimento e reconhecimento dos direitos humanos no âmbito internacional.

5.2 Precedentes Históricos no Processo de Internacionalização dos Direitos Humanos

Sem desconhecer a importância de outros fatos históricos[1] que contribuíram para processo de evolução e de afirmação dos direitos humanos, notadamente por se constituírem eventos que ajudaram a moldar o conteúdo do princípio da dignidade humana – valor que dá significação e fundamentação a todo e qualquer direito humano – podem-se destacar os seguintes movimentos internacionais como marcos ao processo de internacionalização de direitos humanos: a) o Direito Humanitário; b) a Liga das Nações; c) a Organização Internacional do Trabalho (MAZZUOLI, 2010, p. 757).

De acordo com Swinarski (1988), citada por Mazzuoli (2010), o Direito Humanitário pode ser definido como:

Conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens, ou que possam ser afetados pelo conflito (MAZZUOLI, 2010, p. 755-756).

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Logo, considerando lógica de que o Direito Internacional visa precipuamente proteger todas as pessoas pelo simples fato destas ostentarem a condição de ser humano, o Direito Humanitário representou e ainda representa um núcleo mínimo que os Estados devem respeitar, ainda que em situação extrema, de conflito armado, sob pena de negar efetividade prática ao denominado Direito de Genebra.

Nesse sentido, Piovesan (2011, p. 169-170) aponta que o Direito Humanitário “É o Direito que se aplica na hipótese de guerra, no intuito de fixar limites à atuação do Estado e assegurar a observância dos direitos fundamentais”.

Sobre o Direito Humanitário, cumpre registrar, ainda, a sua estreita relação com a Cruz Vermelha, instituto que tem por objetivo prestar assistência a todas as pessoas que são vítimas (militares fora de combate, prisioneiros, feridos, inclusive a população civil afetada pelo conflito) das guerras e a todos aqueles que se encontram em situação de extrema necessidade.

O segundo precedente importante na construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos foi a criação da Liga das Nações, em 1920, a qual tinha como principal finalidade a promoção da cooperação, paz e segurança internacional, a fim de evitar agressões externas contra a integridade territorial de seus membros, propiciando, outrossim, a independência política destes (PIOVESAN, 2011, p. 170).

Como é sabido, o esforço em criar um organismo internacional que impusesse limites aos Estados e tivesse a força de evitar uma nova guerra mundial não foi bem sucedido. Embora o foco desta monografia não seja aprofundar os motivos pelos quais a bem intencionada Liga das Nações[2] não atingiu os seus objetivos, saliente-se que ela se constitui em um esforço internacional voltada à proteção dos Direitos Humanos, ao buscar, em alguma medida, relativizar a noção clássica de soberania absoluta dos Estados em prol da paz e segurança mundial.

Por fim, impende tecer algumas palavras relativas à Organização Internacional do Trabalho (OIT), terceiro precedente histórico acima noticiado, o qual, devido a sua atualidade, configura-se como o mais importante, tendo em vista que a atuação deste Organismo no cenário internacional objetiva estabelecer direitos e garantias aos trabalhadores, contribuindo sobremaneira para formação de um núcleo de direitos humanos sociais, cuja finalidade é conferir dignidade ao trabalhador no exercício de sua atividade profissional.

Na visão de Henkin (1993), citado por Piovesan (2011):

A Organização Internacional do Trabalho foi um dos antecedentes que mais contribuiu à formação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Organização Internacional do Trabalho foi criada após a Primeira Guerra Mundial para promover parâmetros básicos de trabalho e bem-estar social. Nos setenta anos que se passaram, a Organização Internacional do Trabalho promulgou mais de uma centena de Convenções Internacionais, que receberam ampla adesão e razoável obsevância (PIOVESAN, 2011, p.171).

A fim de corroborar a importância impar da Organização Internacional do Trabalho no processo de consolidação dos Direitos Humanos no plano internacional, destaca-se o fato que, nesta seara, a implementação de tais direitos – ditos de segunda geração ou dimensão – se deu antes dos direitos civis e políticos – ditos de primeira geração ou dimensão – uma vez que estes vieram a ser positivados por meio do Pacto Intercional de Direitos Civis e Políticos de 1966, enquanto aqueles, com se sabe, começaram a ser efetivados com a instituição da Organização Internacional do Trabalho, em 1919.

Assim, a partir de algumas considerações acerca dos três institutos, destacados como os principais precedentes históricos ao processo de internacionalização dos direitos humanos, é possível concluir que todos contribuíram de alguma forma para superação de obstáculos ao reconhecimento dos Direitos Humanos como matéria imprescindível à agenda dos Estados, permitindo-se, assim, a fixação da premissa de que a soberania estatal deveria ser vista como uma garantia ao respeito aos Direitos Humanos, e não um escudo para a prática de ações que se constituam em violações sistemáticas a tais direitos.

Nesse particular, oportunas são as palavras de Piovesan:

Vale dizer, o advento da Organização Internacional do Trabalho, da Liga das Nações e do Direito Humanitário registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocos entre os Estados visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam aos interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011, p. 173-174).

Nesta mesma linha de raciocínio, mister transcrever as observações de Mazzuoli acerca dos efeitos positivos dos precedentes mencionados:

É neste cenário que começam a aparecer os primeiros contornos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afastando-se a ideia de soberania absoluta dos Estados, em seu domínio reservado, e erigindo os indivíduos à posição, de há muito merecida, de “sujeitos de Direito Internacional”, dando-lhe mecanismos processuais eficazes para a salvaguarda de seus direitos internacionalmente protegidos. A partir desse momento histórico emerge finalmente a concepção de que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito do Direito Internacional Público (MAZZUOLI, 2010, p. 759).

Como se pode observar, os institutos citados tiveram um impacto importante na consolidação da ideia de que o indivíduo merecia uma atenção diferenciada no Direito Internacional Público, porquanto a proteção aos direitos humanos exige o compromentimento da sociedade internacional com um todo, de modo que qualquer fundamento de ordem interna dos Estados não deve se constituir em óbice ao pleno reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos na esfera internacional.

A premissa de que o indivíduo passa a ser considerando como sujeito apto a fazer valer os seus direitos no âmbito internacional é essencial à concretização dos direitos humanos, explorada no decorrer do trabalho, em especial no sétimo capítulo, oportunidade em que será defendida a capacidade processual ampla da vítima perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

5.3 Concepção Contemporânea de Direitos Humanos

Os precedentes mencionados no capítulo anterior tiveram o mérito de questionar, cada uma ao seu modo, a soberania absoluta dos Estados, introduzindo a pauta dos direitos humanos como um limite à atuação arbitrária destes Estados, permitindo, desta maneira, a formação de uma consciência internacional de que as pessoas devem ter a sua dignidade minimamente preservada, independentemente de sua condição e do local em que se encontrem.

Assim, a forma como os Estados tratam as questões envolvendo a proteção dos direitos humanos passa a ser matéria que interessa a sociedade internacional, motivo pelo qual não devem ser aceitos argumentos de ordem interna como pretexto para descumprir normas de natureza internacional imperativas, elaboradas no intuito de protege a dignidade humana.

O processo de evolução dos direitos humanos, ainda embrionário por assim dizer, foi abruptamente interrompido pela eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Este período foi marcado pelas mais graves violações aos direitos humanos, dizimando, ao que se sabe, mais de 60 milhões de vidas, em sua grande maioria civis, ou seja, seis vezes mais do que na Primeira Guerra Mundial, em que a maior parte das vítimas eram militares (COMPARATO, 2010, p. 225).

Os fatos que contribuíram para a realização da Segunda Guerra Mundial não têm maior relevância para o andamento do trabalho. No entanto, é preciso destacar que após o seu término efetivamente os Estados resolveram agir[3], ante a imperiosa necessidade da criação de mecanismos que pudessem preservar a própria existência humana, porque o retrato da Segunda Guerra era assustador.

Nesta ordem de ideias, Comparato assevera que:

As consciências se abriram, enfim, para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana (COMPARATO, 2010, p. 226)

Nasce, em razão dessa nova perceção, um novo tempo, uma nova ordem, nasce o Direito Internacional dos Direitos Humanos na feição em que hoje é vivenciado, ou seja, em sua concepção contemporânea. Na lição de Piovesan (2000, p.18), “Se a 2ª Guerra Mundial significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução”.

Nas palavras de Buergenthal (1988), citado por Piovesan (2011):

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse (PIOVESAN, 2011, p. 175).

Obviamente, como não poderia deixar de ser, o caminho para a consolidação dos direitos não foi fácil, ao contrário, perpassou por inúmeras situações de dificuldades, de lutas e de ações emancipatórias. Nesta esteira, entende-se como Piovesan (2010, p. 16) que “Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer”. Ou como ressalta Bobbio (1988), citado por Piovesan (2010), “os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Nesta mesma lógica, imperioso mencionar a clássica formulação de Hannah Arendt (1979), também citada por Piovesan (2010),  ao afirmar que “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”.

Em síntese, o processo de amadurecimento dos direitos humanos como pauta essencial nas relações internacionais foi fruto de luta duras, de alguns retrocessos por vezes, mas, por sua característica de historicidade, permitiu a formação de uma base sólida de valores, que dá fundamento à precitada concepção contemporânea dos direitos humanos.

O grande marco que inaugura concretamente a concepção contemporânea de direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, baseada na ideia de que os direitos humanos são universais e indivisíveis.

A propósito das características da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, imprescindível trazer à lume a definição de Piovesan:

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada (PIOVESAN, 2000, p. 18).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz para o centro das discussões internacionais a importância de se preservar a dignidade do ser humano contra o poder quase que absoluto dos Estados. Fortalece-se a premissa de que o tema direitos humanos não se circunscreve mais aos interesses das fronteiras dos Estados, mas ganha dimensão e preocupação internacional.

Esta nova postura internacional traz, segundo a doutrina, duas importantes consequências, embora se possa afirmar que elas, como já referido anteriormente, se fizeram sentir em alguma medida como efeitos dos precedentes históricos trabalhados no tópico anterior.

No entanto, a afirmação plena destes fatos, com resultados concretos no Direito Internacional dos Direitos Humanos, decorre da concepção contemporânea dos direitos humanos.  Tais fatos são: a) a relativação da noção de soberania absoluta dos Estados, a fim de permitir a intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; b) a fixação da ideia de que indivíduo possui direitos no plano internacional, possuindo, em razão disso, capacidade processual internacional (PIOVESAN, 2000, p. 19).

Com este novo panorama, começa um crescente processo de codificação de normas objetivando a proteção dos direitos humanos, tendo o indivíduo como preocupação maior. À Declaração das Nações Unidas, seguiu-se a celebração de inúmeros tratados, convenções e pactos de natureza internacional ou regional, acentuando a vocação dos direitos humanos de expandir fronteiras (BRANCO, 2009, p. 288).

Como aponta com precisão Mazzuoli (2010, p. 760), cuida-se de um momento considerado como verdadeiro divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos, uma vez que antes disso a proteção dos direitos humanos era mais ou menos restrita às legislações interna dos países e, de outro lado, o Direito Humanitário integrava uma agenda internacional nas hipóteses de guerras.

Nesta perspectiva, oportuno registrar o pensamento de Piovesan sobre este novo sistema de proteção de direitos humanos, formado a partir da universalização dos direitos humanos:

Tal sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos – “mínimo ético irredutível” (PIOVESAN, 2011, .41).

De fato, denotando preocupação ímpar com o indivíduo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos colmatou-se em uma realidade impressionante, que buscou proteger o indivíduo, nacional de um Estado ou não, de violações a direitos fundamentais em qualquer lugar em que se encontre (ANNONI, 2009, p. 25).

Esta realidade foi moldada a partir da integração do sistema global de proteção dos direitos humanos com o surgimento dos sistemais regionais de proteção, em especial o sistema Europeu, Americano e Africano. Ao lado disso, é digno de nota, que inúmeros instrumentos específicos[4] de proteção dos direitos humanos surgiram no cenário mundial, conferindo proteção à dignidade de grupos de forma diferenciada. Ainda, faz-se necessário fazer menção, dentro do sistema global, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.

A necessária interação destes sistemas é medida compatível com uma proteção abrangente e efetiva dos direitos humanos, de modo que quem ganha é o próprio indivíduo, tendo em vista passar a dispor de vários instrumentos juridicamente viáveis à proteção de eventual direito violado.

Dentro deste contexto, Piovesan afirma:

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção dos direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos Diretos Humanos. (PIOVESAN, 2010, p. 19)

Em complemento a todo este aparato normativo narrado, tem-se como fundamental, ainda, fazer referência à Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, a qual reafirma a concepção da Declaração de 1948, ao ressaltar que os direitos humanos são universais, interdependentes e interrelacionados. Além disso, a Declaração de Viena afirma a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (PIOVESAN, 2010, p. 19)

De tudo o que já foi dito, em síntese, pode-se afirmar que a concepção contemporânea dos direitos humanos nasce a partir da consciência dos Estados de que as atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial não poderiam mais se repetir, sob pena de se comprometer a própria existência humana.

Em razão disso, em especial a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, vários instrumentos normativos são pactuados entre os Estatos, tanto no âmbito internacional propriamente, quando nos âmbitos regionais, formando um expectro de normas cujo objetivo principal é a proteção dos direitos humanos, sob as bases do principío da dignidade da pessoa humana.

Um dos efeitos principais desta normatividade é atribuir ao indivíduo a condição de sujeito de direito no cenário internacional, abrindo-se a ele a possibilidade de buscar a defesa de seus direitos perante às Cortes Internacionais.

Como será abordado no capítulo sétimo, a principal questão não é mais a de reconhecer direitos aos invdivíduos, porque hoje é possível dizer que há um sistema normativo consolidado de proteção de direitos humanos, respeitado e reconhecido pelos Estados como arena adequada à discussão de casos que envolvam violações aos direitos humanos, com algumas exceções é claro.

Em suma, o que a moderna concepção contemporânea dos direitos humanos exige dos Estados, e de todas as pessoas que prezam pela primazia dos direitos humanos, é a busca incessante pelo aperfeiçoamento do sistema, de modo que a pessoa que tiver algum de seus essenciais direitos fundamentais violados possa efetivamente protegê-los.

É exatamente isso que o trabalho buscará demonstrar a seguir: necessidade de aperfeiçoamento dos instrumentos de efetivação dos direitos humanos, em particular, os pertinentes ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

 

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Sobre o autor
Ederson Couto da Rocha

Procurador da Fazenda Nacional. Pós graduado em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ederson Couto. Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.: Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23812. Acesso em: 28 abr. 2024.

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