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Ações afirmativas: a integração social através da conexão entre o Direito e a Moral

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16/03/2013 às 17:34
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6 – A conexão entre o direito e a moral nas ações afirmativas

Os direitos individuais são prerrogativas, trunfos, que os seres humanos possuem e que fazem valer quando as justificativas apresentadas para negarem os mesmos se mostram insuficientes, dezarrazoadas ou imorais. Entende-se o conceito imoral em um dado tempo espaço-cultural de uma determinada sociedade.

Dworkin[21] defende que os indivíduos podem ter outros direitos, ainda que não expressados pela lei ou por qualquer decisão judicial, mesmo que venham a se tratar de casos difíceis:

O capítulo 4 sugere uma teoria conceitual alternativa que mostra como os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos além daqueles criados por uma decisão ou prática expressa, isto é, que eles podem ter direitos ao reconhecimento judicial de suas prerrogativas, mesmo nos casos difíceis, quando não existem decisões judiciais ou práticas sociais inequívocas que exijam uma decisão em favor de uma ou outra parte.

A questão das ações afirmativas está revestida não raro de aspectos morais. Não há como negar isso. Na fundamentação dos argumentos favoráveis e contrários, encontramos expressões de como ocorrerá violação ao critério meritório (como entender o mérito se não há igualdades na disputa), tal como: busca da necessária compensação por um passado infame e elitista que subtraiu oportunidades a diversos segmentos sociais nos dias de hoje (não há como compreender se não revestirmos de moral, uma vez que ninguém pertence a esse passado já não tão recente).

Seria correto dizer que as ações afirmativas prejudicam os que delas são beneficiados, em virtude de seus critérios estigmatizantes que por ventura possuem nas instituições de ensino? Existirão sempre duas opiniões doutrinárias: as favoráveis e as contrárias. Não obstante, esta divergência prevalece ainda entre aqueles inseridos como aptos a participarem das ações afirmativas. Contudo, não se pode afirmar a inferioridade dos ingressantes deste sistema. Não se pode também cotejar que será bem ou mais sucedido no plano profissional. Apenas o tempo revelará. O expressivo número de preenchimento através das cotas no sistema de ensino superior está a demonstrar, em um primeiro momento, o êxito das ações afirmativas.

A ação afirmativa imprime duplo papel: a diversidade e a justiça social. A diversidade acaba por permitir a troca de valores, culturas, costumes e realidades socioeconômicas, a seu turno, a justiça social aproxima aqueles que por infortúnio estão distantes da camada econômica mais desenvolvida e permite, para servirmos de um linguajar comum, uma oportunidade ao sol.

Essa aproximação entre o direito e a moral na jurisprudência pátria decorre do próprio pluralismo encartado na Carta Magna, que de resto é possível verificar em grande parte do mundo ocidental. Lapidar a lição de Gustavo Zagrebelsky[22], ao enfatizar que:

Las sociedades pluralistas actuales – ES decir, las sociedades marcadas por la presencia de uma diversidad de grupos sociales com intereses, ideologias y proyectos diferentes, pero sin que ninguno tenga fuerza suficiente para hacerse exclusivo o dominante y, por tanto, establecer la base material de la soberania estatal em el sentido del pasado -, esto es, las sociedades dotadas em su conjunto de um cierto grado de relativismo, asignam a la Constitución no la tarea de establecer directamente um proyecto predeterminado de vida em común, sino la de realizar las condiciones de posibilidad de la misma.

Acreditamos que não é equivocado dizer que a Constituição acaba por irradiar diversos valores morais que não excluem, nem tampouco incluem nenhuma categoria: permitem a integração dos diversos segmentos sociais através da multifocalidade abrangente, sem que haja exclusão de nenhum, dentro de possibilidades morais abertas no trato da interpretação do Texto Maior, ou seja, dentro de uma proposição de uma interpretação moral.

A velha dicotomia direito e moral não tem mais razão para subsistir, ao menos no plano concebido da superada dogmática jurídica, na qual o direito válido era o posto e não o suposto. É que aos poucos as normas já não se faziam suficientes por si só para responderem aos anseios sociais. As demandas sociais e jurídicas que não encontravam solução no ordenamento positivado fizeram com que os tribunais utilizassem os princípios, os valores e o aspecto moral contido na Carta Magna.

Nesse diapasão, as diversas partes integrantes ou plurais, acabam por modelar o seu conceito de justiça, de forma que as suas aspirações estejam encartadas e no centro da discussão do direito. Isso acaba por permitir uma variedade de interpretações sem que se possa dizer que uma é melhor do que a outra, pois o que se está em busca é a plena efetividade constitucional.

Acentua Gustavo Zagrebelsky[23], que:

En estas condiciones, la pluralidad de métodos y su equivalência no es um defecto, sino uma posibilidad de êxito cuando se interpreta la ley buscando la regla adecuada. La interpretación legislativa abierta no es um error que la actual ciência Del derecho deba corregir, sino um aspecto irrenunciable a la vista de su objetivo.

Las posibilidades de la interpretación dependem además de la actitud del proprio legislador. La discrecionalidad de que goza el intérprete para reconduzir a la ley las exigências de regulación que presenta el caso no sólo depende de lós métodos de interpretación y de su número, sino tambien de la estructura de la propia ley. A veces, incluso, El derecho, por así decirlo, no presenta resistência a ser interpretado de acuerdo com estas exigências <<casuísticas>>. Esto sucede sobre todo com las normas <<elásticas>> o <<abiertas>>, es decir, las que utilizan las llamadas <<clausulas generales>>...


7 – Conclusão

Dworkin, em sua obra a Virtude Soberana[24], reporta-se a um estudo levado a cabo nos 30 anos de ações afirmativas nos Estados Unidos para ingresso nas instituições de ensino denominado “A forma do rio”, demonstrando que os mesmos foram exitosos, em especial nas universidades mais exigentes, e que também não houve nenhum grande constrangimento ou arrependimento dos que cursaram a faculdade, sendo igual as diversas possibilidades de participação de negros e brancos nos mais variados campos profissionais ou políticos.

No Brasil, não obstante não possuirmos nenhum estudo científico comparativo sobre as ações afirmativas e suas consequências sociais, não é errado afirmar o êxito destas medidas, pois permitem o acesso ao ensino de qualidade para aqueles que ficam a margem da sociedade brasileira.

Contudo, frisa-se que as ações afirmativas não devem ser eternas. Dessa forma teríamos uma espécie de discriminação odiosa, que não atingiria o efeito preconizado por elas, que é buscar a igualdade material enquanto as mesmas persistirem, ou seja, a temporalidade é a sua marca mais forte.

O confinamento social ao qual alude Dworkin[25], acaba sendo superado pela implementação das políticas de ações afirmativas, e ao traçar a linhas mestras de sua obra á pouco citada, afirma:

O argumento deste livro – a resposta que oferece ao desafio da consideração igualitária – é dominado por esses dois princípios agindo em conjunto. O primeiro princípio requer que o governo adote leis e políticas que garantam que o destino dos seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tal meta, não dependa de quem eles sejam – seu histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. O segundo princípio exige que o governo se empenhe, novamente se o conseguir, por tornar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram.

Os abismos sócio-econômicos existentes no Brasil ainda são gritantes. Porém, muito já foi feito, em especial com a construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade das ações afirmativas nas instituições de ensino superior federal no País e estabeleceu balizas para que as mesmas não transbordem no abuso e no desrespeito ao cidadão.

A própria interpretação das ações afirmativas, não obstante estar revestida do caráter hermenêutico, não só admitem como reclamam uma interpretação aberta, em que há pontos de contatos na sua argumentação entre o direito e a moral como forma de validar o instituto de favorecer os menos favorecidos.

Em síntese, as ações afirmativas são justas, e de certa forma, têm conseguido levar a cabo a efetividade da justiça social promovendo a justiça distributiva. A discussão colocada com êxito por Ronald Dworkin reflete a importância que este instituto analisado possui no cenário jurídico e moral da comunidade jurídica contemporânea.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Joaquim B. Gomes, O debate  constitucional sobre as ações afirmativas.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Ação Afirmativa e Direito Constitucional. Exposição no V Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002.

BRASIL, Constituição Federal do de 1988. Brasília, 34ª Ed. Edições Câmara, 2011.

DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011.

_______Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007.

FILHO, M.G.F. Aspectos Jurídicos das ações afirmativas. Revista TST, Brasília, vol.69, nº2, jul/dez 2003.

HECK, J. N. Sistema de cotas versus exclusão social. Disponível em http://www2.ucg.br/flash/artigos/0308cotas.html. PEREIRA, T. H. J. Ação afirmativa: uma jurisprudência em evolução. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-13/observatorio-constitucional-licoes-eua-acoes-afirmativas

Regents of  the University of California versus Bakke, 438 U.S.265 (1978).

 ROCHA, Carmen Lucia A., em revista de informação legislativa, Brasília 33n, 131 jul/set 1996, pág.285. Disponível em: www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176462

SILVA, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª Ed, Malheiros editores, São Paulo, 2007.

STF. Informativo nº 663.

ZAGREBELSKY, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid, 2011.


Notas

[1] Rocha, C. L. A. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 285.

[2] Regents of  the University of California versus Bakke, 438 U.S.265 (1978).

[3] Pereira, T. H. J. Ação afirmativa: uma jurisprudência em evolução. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-13/observatorio-constitucional-licoes-eua-acoes-afirmativas

[4] Silva, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª Ed, Malheiros editores, São Paulo, SP 2007, pág.35.

[5] Branco, Paulo Gustavo Gonet, Ação Afirmativa e Direito Constitucional. Exposição no V Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002.

[6] Barbosa, Joaquim B. Gomes, O debate  constitucional sobre as ações afirmativas

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[7] Rocha, Carmen Lucia A., em revista de informação legislativa, Brasília 33n, 131 jul/set 1996, pág.285. Acesso em 17 de novembro. Site: http:// www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176462

[8] Informativo do STF nº 663. ADPF nº 186, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

[9] Informativo STF nº 663 de 03 de maio de 2012.

[10] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5465.htm. Acesso em 30.nov.2012

[11] Brasil, Constituição Federal do de 1988. Brasília, 34ª Ed. Edições Câmara, 2011.

[12] Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286.

[13]Filho, M.G.F. Aspectos Jurídicos das ações afirmativas. Revista TST, Brasília, vol.69, nº2, jul/dez 2003, pág.76.

[14] STF. Informativo nº 663. Trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowski na ADPF 186.

[15] Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011. Pág.587.

[16] Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011.  pág. 606

[17] STF. Informativo nº 663

[18]  Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286

[19] Heck, J. N. Sistema de cotas versus exclusão social. Disponível em http://www2.ucg.br/flash/artigos/0308cotas.html. Acesso em 29 de out de 2012.

[20] Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007.

[21] Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição Martins Fontes, 2007 Pág. XVI

[22] Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid, 2011, pág.13.

[23] Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid, 2011, pág.136.

[24] Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011

[25] Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011


ABSTRACT: This study deals with affirmative action as a means of social inclusion of disadvantaged categories in society, based on the judgment of ADPF 186 and the doctrine of Ronald Dworkin. We pass by a brief history about affirmative action occurring in the United States and Brazil. We will see that phenomenon while protecting the less fortunate this is not so recent. We intend to demonstrate the correctness of the policy of social inclusion and distribution of justice, which aims to reduce excessive social inequality in our society and the connection between law and morality.

KEYWORDS: affirmative action, Dworkin, law and morality.

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Sobre o autor
Vick Aglantzakis

Servidor Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGLANTZAKIS, Vick. Ações afirmativas: a integração social através da conexão entre o Direito e a Moral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3545, 16 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23851. Acesso em: 26 abr. 2024.

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