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A opção legislativa pela política criminal extrapenal e a natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha

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04/03/2013 às 16:05
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4. O papel sinérgico da intervenção penal na proteção da mulher

Apesar de ser muito debatida e controvertida entre feministas e penalistas (CAMPOS, 1999), a intervenção penal surge como coadjuvante valioso no cumprimento da missão protetiva da vítima, pois é a partir do ingresso e da visibilidade da violência na Delegacia de Polícia, no Ministério Público e no Juizado da Mulher, ainda que num procedimento inicialmente de investigação criminal (ocorrência policial, termo circunstanciado ou inquérito policial, conforme estabelece o art. 12, III, §§ 1º e 2º, da Lei 11.340/06), é que serão processadas e apreciadas as medidas protetivas em expediente apartado (arts. 18 e 19), dentre outros encaminhamentos de caráter extrapenal (como os trabalhos desenvolvidos pela equipe multidisciplinar ou serviço similar – arts. 9º e 29 ss., inclusive por intermédio de grupos de reeducação, recuperação e conscientização dos homens ofensores – art. 35, V).[6] Somente a partir do conhecimento público de que a violência contra a mulher é crime (é uma conduta grave e intolerável que pode redundar, em tese, em pena privativa de liberdade) é que se torna possível a própria vítima ou eventuais testemunhas denunciarem a violência perpetrada no âmbito privado (doméstico ou familiar), quando só assim será dada a visibilidade necessária para que o sistema de justiça especializado possa intervir com as inúmeras medidas não-penais previstas na Lei Maria da Penha, sobretudo as medidas protetivas, de responsabilidade dos atores jurídicos do sistema (Judiciário, Ministério Público e Assistência Judiciária). A simples judicialização dos casos de violência doméstica já tem impacto no comportamento do ofensor e na garantia concreta dos direitos da vítima, ainda que não tenha havido processo ou condenação criminal (OLIVEIRA et al., 2009, p. 30).

A possibilidade de incidência da esfera penal em matéria de violência contra a mulher mostra-se então essencial, ao menos na primeira fase de interferência dos órgãos estatais, para se propiciar a oportunidade de preservar direitos fundamentais das vítimas-mulheres carentes de proteção de modo urgente e condizente com a sua condição fragilizada e aflitiva pela violência sofrida. Com um leque muito maior de possibilidades de ser amparada a partir do pedido imediato de medidas protetivas, diminui-se a possibilidade de a vítima ter de aguardar uma providência de caráter penal tardia pelos órgãos do sistema de justiça, cujos atores jurídicos, não raras vezes reproduzindo as relações de gênero vigorantes na sociedade (regulada por um modelo androcêntrico sexista ou, noutros termos, machista), invertem os valores positivados na Lei Maria da Penha e assentam interpretação discriminatória dos elementos de prova e dos tipos penais em desfavor da mulher (por exemplo, a pretexto de “preservação da família e da vida privada”), em escancarado não-reconhecimento e anulação pelo Estado (que assim se omite) da violência sofrida pela mulher. Apesar de reconhecer as limitações e a inadequação da resposta unicamente penal no problema da violência doméstica, afirma Sabadell (2005, p. 11):

(...) O inaceitável é, como ocorre hoje, dar continuidade à discriminação das mulheres em relação à violência doméstica por tratar-se de delito cometido por homens e, ademais, no âmbito das relações privadas, que, de acordo com a ideologia do patriarcado, devem permanecer fora da intervenção estatal. Se considerarmos que o direito penal não permite tutelar os interesses da mulher maltratada, devemos adotar o abolicionismo de forma coerente, concluindo que o direito penal também não deve ser empregado para proteger os homens de agressões físicas e crimes patrimoniais. Partindo da impossibilidade (política) de imposição da política abolicionista, podemos considerar o direito penal como ferramenta que deve ser utilizada como ultima ratio, mas de forma coerente, capaz de tutelar a integridade física e psíquica de todos no espaço privado.

No mesmo sentido defende Campos (2008, p. 264) ao reputar a proposta da Lei Maria da Penha como “lei integral” regida pela máxima intervenção social e mínima intervenção punitiva. Ora, em termos de prevenção geral positiva, só mesmo a criminalização de condutas para se afirmar a todos que as mais variadas formas de violência contra a mulher são inaceitáveis e não podem ser consideradas normais e naturais como ainda pensam os homens ofensores, os quais supõem que estão numa espécie de “exercício regular de direito” no que se convencionou fixar como seu papel de homem dentro de uma sociedade hierarquizada em termos de papéis femininos e masculinos, com dominação e sobrevalorização destes sobre aqueles. Por se tratar de violência cultural (que demanda mudança de mentalidade e nos padrões de comportamento nas relações de gênero), as instâncias de controle social informal (família, escola, igreja, trabalho, vizinhança, amigos etc.) são incapazes de influenciar o comportamento de tais homens, o que já não ocorre em relação a delitos ordinários, tais como os crimes contra a vida e o patrimônio alheios. A prevenção geral positiva proporcionada pela Lei Maria da Penha, pois, legitima constitucionalmente a intervenção penal em matéria de violência de gênero e age em simbiose com os numerosos mecanismos extrapenais trazidos pela Lei.

Curiosamente, o malsinado caráter simbólico do direito penal na temática da violência contra a mulher acaba por assumir função singularmente relevante no sentido de provocar a mudança de hábitos sociais arraigados e naturalizados, bem como de apontar a todos o modelo de sociedade igualitária que se pretende, além de evidenciar de forma patente que não se pode mais tolerar a violência por parte daqueles que deveriam ser os primeiros a amar e respeitar, quais sejam, os homens namorados, companheiros, maridos e familiares das vítimas, de maneira que não se pode dar a tais casos o tratamento comum dado à criminalidade de rua e aos atos de violência similares que envolvem pessoas estranhas entre si. Nesse sentido, afirma Debora Diniz (2010):

O modelo patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens. (...) Outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência da impunidade à violência de gênero. A impunidade facilita o surgimento das redes de proteção aos agressores e enfraquece nossa sensibilidade à dor das vítimas. A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar os padrões culturais de opressão, mas indica que modelo de sociedade queremos para garantir a vida das mulheres.

A função simbólica do direito penal, no caso, tem força de persuasão sobre os homens que naturalizam, desde o nascimento, a posição dominadora do masculino sobre o feminino, cujo clímax é o uso de violência para se manter a todo custo tal status quo. Para algumas feministas, aliás, o efeito simbólico do não-uso da lei penal seria muito mais nocivo do que o da própria intervenção penal, pois banalizaria e normalizaria a violência contra a mulher (ANITUA, 2008, p. 756-757). E, como já pontuado aqui, dado o uso simbólico, sabe-se que a previsão da lei penal não terá de implicar, necessariamente, num efetivo e duro castigo ao ofensor, mas servirá para se abrir a discussão pública dos valores que devem nortear o tratamento, as oportunidades e os direitos das mulheres nas relações com os homens. A simbologia da ameaça de pena (invariavelmente associada à ideia da prisão pela população), portanto, exerce o papel de reafirmação e reautorização do ordenamento para indicar não apenas a possibilidade de retribuição (imposição de castigo), mas a possibilidade de mudança cultural e, por conseguinte, de atitudes e comportamentos.[7] Sublinhe-se que, aqui, a simbologia do direito penal não se circunscreve a dar a falsa e efêmera sensação de segurança e de tranquilidade, de diminuição do medo, típica do aumento exacerbado de penas e da criminalização de novas condutas no que se refere aos delitos ordinários contra a vida e o patrimônio (em clara opção do legislador por uma política criminal exclusivamente penal), pois, em casos tais, as pessoas já sabem, desde crianças, que roubar ou matar é ilícito, bem ao contrário da violência de gênero. Outrossim, se, em crimes contra o patrimônio e contra a vida, a prevenção geral negativa (ou por intimidação ou coação psicológica) é empiricamente indemonstrável (já que não se sabe se eventual diminuição dos índices de criminalidade tem relação com o aumento de penas, por exemplo) e, logo, pode até ser reputada como mito, na hipótese de violência de gênero ela também não terá influência, pois as penas dos delitos mais comuns em matéria de violência contra a mulher são diminutas e são cumpridas em meio aberto, isto é, não implicam privação de liberdade.

A prevenção geral positiva ou de integração proposta por Jakobs (ao menos originariamente a partir da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann[8]), que preconiza a reafirmação do ordenamento jurídico diante da violação de uma norma penal (diante da expectativa normativa frustrada dos cidadãos), tem mais que um efeito meramente simbólico, mas é indicativo de qual caminho aquela sociedade deseja trilhar, o que reautoriza a vigência e validade da norma penal perante todos, num processo de reestabilização contrafática.[9] E, realmente, quando se notam as falhas da prevenção geral negativa (ou por intimidação), da prevenção especial positiva (ressocialização, correção) e da prevenção especial negativa (inocuização, segregação) em casos de crimes cometidos por impulso, por diferenças de gênero (como no caso da violência contra a mulher), por criminosos profissionais, ou nos chamados crimes econômicos e situacionais, mas ao mesmo tempo se percebe que há violações graves e intoleráveis a bens jurídicos, há de se ter uma resposta estatal frente a tais violações, e aí a prevenção geral positiva parece justificar legitimamente a pena.[10] Nesse contexto, as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, como mecanismos de caráter extrapenal para evitar a reiteração da violência contra a mulher (cumprindo as funções do direito penal de prevenção especial), precedem e coexistem com a intervenção penal de modo sinérgico, porém devem operar de forma independente, não podendo se condicionar o uso e a efetividade das medidas protetivas ao uso e eficácia do processo penal, o qual deve apenas instrumentalizar o direito penal.

Apesar de, mesmo nos EUA, haver muito poucos estudos empíricos que analisam com propriedade a efetividade das medidas protetivas (pois é preciso saber também sobre a influência e o peso de outros fatores, tais como os serviços de assistência jurídica e social), de forma geral tais estudos indicam a efetividade das medidas do ponto de vista subjetivo (impacto na vida das vítimas), pois a grande maioria das vítimas sente melhora no bem-estar psicológico e na qualidade de vida, com elevação na autoestima, na sensação de segurança e de maior controle sobre suas vidas ou sobre os destinos do relacionamento afetivo em curso (maior empoderamento). Para as vítimas, ainda, as medidas protetivas ajudam a reafirmar a mensagem de que a violência praticada é algo errado, dentre muitas outras impressões positivas (KO, 2002, p. 368-372). Com relação à efetividade das medidas protetivas do ponto de vista objetivo (capacidade de refrear a violência = prevenção especial), embora todos os estudos tenham indicado a redução da reincidência, eles ainda são muito controversos, pois alguns registram altos índices de reincidência, outros baixos índices, tudo a depender, dentre outras, de variáveis como perfil e tamanho do grupo de pessoas analisado, tempo de vigência e acompanhamento das medidas, prisão anterior do agressor em razão da violência, histórico de violência e nível socioeconômico das partes envolvidas, desemprego, antecedentes criminais, uso abusivo de álcool e drogas, tempo de relacionamento, existência de filhos menores (KO, 2002, p. 373-376).

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5. As medidas protetivas e a opção pela política criminal extrapenal

A política criminal não se circunscreve às orientações e princípios tais como o abolicionismo, o minimalismo (direito penal mínimo) ou o punitivismo (direito penal máximo) (BIANCHINI, 2010). A política criminal também é (ou pelo menos há de ser) parte do conjunto maior de políticas públicas do Estado voltadas para a prevenção e o controle da criminalidade, já que a sua “erradicação” ou “desparecimento” (independentemente dos matizes das leituras e explicações criminológicas) é algo improvável em qualquer organização social humana, sem prejuízo do papel ordinário da política criminal penal de eleger os bens jurídicos a serem tutelados por normas penais ou, noutros termos, eleger as condutas a serem criminalizadas. Nessa acepção, somos contrários à onda do populismo penal de se limitar a política criminal a uma política meramente penal, isto é, criminalizadora de mais condutas e incrementadora das penas de condutas já criminalizadas, cujo efeito é puramente simbólico e seletivo ante a sua comprovada e notória ineficácia na redução da criminalidade, de que serve de malogrado exemplo a Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos.

Portanto, a política criminal há de ser também uma política de caráter extrapenal, voltada para a implementação de ações preventivas da ocorrência do delito, a exemplo das previsões constantes da Lei 11.340/06 (em especial os arts. 8º, 9º, 35 e as medidas protetivas objeto do presente artigo). Na esteira dos mais variados e cada vez mais interdisciplinares estudos, pesquisas e pensamentos criminológicos, a complexidade e a multifatoriedade da criminalidade obrigam a que as políticas públicas nas áreas de segurança pública, educação, saúde, infância e juventude, urbanismo etc. se deem de forma cada vez mais integrada. Em suma, quer-se apenas sublinhar que a política criminal é algo abrangente e que não visa apenas a influenciar o debate dogmático vinculado à aplicação do direito penal de lege lata ou de lege ferenda (ROXIN, 2002, p. 82; DIAS, 1999, p. 26-49). O problema consabido é que os governos não têm interesse no investimento sério na política criminal extrapenal, visto que tais iniciativas são de longo prazo e por vezes de custo financeiro mais elevado, ao contrário da simples e rápida elaboração legislativa penal, de custo zero e de lucro máximo em termos de dividendos eleitorais junto à população.

A Lei Maria da Penha foi fruto, em boa medida, das pressões por criminalização de condutas praticadas contra mulheres em função das diferenças de gênero e foi esse viés que repercutiu mais na mídia e na população em geral (BEZERRA, 2007; MELLO, 2010a, p. 140).[11] Mas é certo afirmar que utilizar tal Lei como exemplo de exacerbação desmesurada do direito penal se constitui em manifesto equívoco, pois, muito ao contrário de leis brasileiras que vieram para proteger crianças, adolescentes, idosos e negros, a Lei 11.340/06 não criminalizou sequer uma nova conduta, tendo apenas aumentado a pena máxima do delito de lesão corporal preexistente (e não apenas para a vítima-mulher, sendo que a pena mínima foi até diminuída de 6 para 3 meses, conforme art. 129, § 9º, do CP), tornado mais rigoroso o processamento das ações penais (art. 41 da Lei), afastado determinadas espécies de penas (art. 17 da Lei) e aberto a possibilidade da prisão em flagrante e da prisão preventiva (arts. 20 e 41). Basta notar o número diminuto de dispositivos da Lei que tratam de matéria penal e processual penal em face dos 46 artigos que a compõem na sua totalidade. Nesse sentido, registra Mello (2010a, p. 140 e 156) que a Lei Maria da Penha foi muito além das medidas de caráter penal, tendo grandes méritos nos campos preventivo e de proteção à mulher.

Como dito, a maior parte da Lei se compõe de normas-mandados voltadas para o Poder Público, em exemplo de concretização de política criminal extrapenal, isto é, as medidas de per se não constituem pena nem crimes, mas sim mecanismos alternativos à exacerbação de penas e à criminalização de condutas (CAMPOS, 2008, p. 253-255). Ao contrário da tendência punitivista puramente simbólica e seletiva reinante no parlamento brasileiro, a Lei Maria da Penha criou mecanismos efetivos (que não são penas, dentre os quais se destacam as medidas protetivas) que não oneram de forma total a liberdade do ofensor e ao mesmo tempo tutelam com eficiência bens jurídicos de titularidade da mulher. Além disso, apesar de na maioria das vezes a vítima-mulher não desejar o processamento criminal de seu ofensor, ela deseja o deferimento de medidas protetivas, as quais lhe conferem mais poder na relação com o ofensor, visto que a desobediência de tais medidas, além de constituir crime, poderá redundar na medida extrema da prisão preventiva (CPP, art. 313, III), o que funciona como fator de dissuasão (por coação psicológica ou intimidação) à reincidência.[12]

De modo que, após mais de cinco anos de vigência da Lei Maria da Penha, afigura-se falacioso afirmar que tal Lei é “extremamente punitivista”, já que, na minoria de casos em que efetivamente há início de ação penal,[13] apenas uma parcela redunda em condenação.[14] Como a maioria dos réus são primários e sem antecedentes, recebem penas que não ultrapassam de 01 a 05 meses de detenção em regime inicial aberto (tendo como referência as penas mínimas cominadas aos delitos de ameaça e lesão corporal)[15], o que vai implicar a conversão de tais penas em diminutas prestações de serviço à comunidade (o que perfará entre 30 e 150 horas, isto é, quantum certamente que está entre os menores possíveis no ordenamento penal brasileiro), conquanto haja a vedação do art. 44, I, do CP.[16] Isso se dá porque, caso o juiz não aplique a substituição pela prestação de serviços à comunidade, o condenado começará a cumprir a pena em regime aberto, o qual, na prática, em razão de não haver casa de albergado, acaba sendo cumprida em liberdade, em regime de prisão domiciliar, com menor ônus do que a própria prestação de serviços à comunidade. Em resumo, não há pena privativa de liberdade para a quase totalidade dos sentenciados em violência doméstica, sendo que o sursis penal (CP, arts. 77 a 82) também não lhes é comumente infligido pelos juízes, pois seria nitidamente mais gravoso, em função de seu prazo alongado (de 2 a 4 anos) e das condições similares às do próprio cumprimento da pena em regime aberto (condições da prisão domiciliar), a qual poderia ser cumprida em poucos meses.

De resto, são raros os casos em que é cumprido o disposto no art. 152, parágrafo único, da Lei 7.210/84, segundo o qual o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, não só pela falta de tais programas como por causa do exíguo tempo que o sentenciado gasta para cumprir integralmente a pena. E isso quando a cumpre, pois, com penas tão baixas, a simples demora do processamento da ação penal (ou mesmo o seu protelamento mediante a interposição de seguidos recursos por parte da defesa técnica) acaba dando azo para se operar a prescrição retroativa pela pena in concreto. E também não há estudos empíricos disponíveis, no caso brasileiro, que comparem o impacto, na vida da vítima e do ofensor, das penas aplicadas após uma sentença condenatória definitiva com o impacto causado pelo instituto despenalizador da suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89), por exemplo.

Significa dizer que, apesar da aura de lei penal duríssima e intransigente transmitida pela mídia à população, a Lei Maria da Penha cumpre bem a função de prevenção geral positiva sem ser, na prática, realmente punitiva (sem implicar a pena privativa de liberdade após a condenação), pois há muitos mecanismos outros de caráter extrapenal, sem contar a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, expressa nos arts. 13, 14, 15, 25, 27 e 33 da Lei 11.340/06.[17] De maneira que, desde que a Lei entrou em vigor, há deturpação quando se associa ela unicamente ao maior rigor penal e processual penal,[18] olvidando-se todas as demais previsões de cunho protetivo, assistencial, preventivo e de competência cível dos Juizados da Mulher, competência essa que vem sendo sistematicamente negada pelos juízes, que acabam exercendo apenas competência criminal, sem dar concretude, por exemplo, às medidas protetivas relacionadas ao direito de família, aos direitos patrimoniais e trabalhistas da ofendida, tais como as dos arts. 9º, § 2º, I e II, 22, IV e V, 23, IV, e 24 da Lei Maria da Penha, além de impor a revitimização ao obrigá-la a descrever de novo a mesma situação de violência também junto à Vara Cível ou de Família.[19]

Os atores jurídicos do sistema, portanto, devem se esforçar em dar efetividade à Lei Maria da Penha nessa parte, não só postulando medidas restritivas da liberdade de ir e vir e de outros direitos do agressor, mas também amparando a vítima com relação às questões relacionadas ao seu afastamento por até 6 meses do local de trabalho (com manutenção de vínculo trabalhista), prioridade de sua remoção (caso seja servidora pública), prestação de alimentos provisórios ou provisionais, regulação provisória da guarda e do regime de visitas dos filhos menores, separação de corpos[20] e medidas garantidoras de seu patrimônio particular e da sociedade conjugal. As medidas protetivas relacionadas a tais questões vêm sendo desprezadas, sendo que todas elas, se tempestivamente aplicadas, contribuiriam e muito em termos de prevenção especial, diminuindo-se a probabilidade de que uma dessas questões conflituosas entre a vítima e o agressor pudesse servir novamente de estopim ou pretexto motivador ou potencializador de novos atos de violência. O enfoque extrapenal, ademais, está presente nas legislações estrangeiras, a exemplo da lei inglesa de 1976 Domestic Violence and Matrimonial Proceedings Act, que prevê o deferimento de medidas protetivas praticamente idênticas às da Lei 11.340/06 no âmbito da jurisdição civil, inclusive com a obrigatoriedade de comparecimento em programas de reabilitação (SABADELL, 2005, p. 10).

Nesse sentido, um dos países pioneiros na tutela extrapenal mediante medidas protetivas em violência doméstica foram os Estados Unidos. A previsão legislativa de tais medidas começou a surgir em 1976, sendo que em 1994 todas as 50 unidades federadas norte-americanas já possuíam alguma forma de legislação cível semelhante, continuando tais medidas, na atualidade, a constituírem o principal meio de proteção das vítimas. Na maioria dos Estados americanos, o descumprimento dessas medidas protetivas configura crime e implica a prisão do ofensor, além de eventual pagamento de multa cumulativamente. A terminologia utilizada pelas legislações estaduais varia muito, mas comumente são referidas como protective orders ou stay-away orders na justiça criminal e como civil restraining orders ou civil protective orders na justiça cível, e às vezes essa terminologia é intercambiável (KO, 2002, p. 362-364; BEZERRA, p. 42-44).

Na justiça criminal norte-americana, as ordens de proteção tem vigência no curso do processo apenas e estão relacionadas à manutenção da regularidade do curso processual e às estratégias da acusação, isto é, as ordens estão mais associadas à efetividade do processo e sua desobediência pode implicar aumento da pena e até prisão, a exemplo das medidas cautelares brasileiras, em especial as do art. 319 do nosso CPP. Já as civil restraining orders têm caráter civil e são independentes de uma ação criminal, sendo processadas por um juiz civil no âmbito de um procedimento civil próprio a partir da solicitação e relato da situação de violência pela vítima num formulário-padrão. Assim como na citada lei inglesa, as civil restraining orders americanas em tudo se assemelham às medidas protetivas da Lei Maria da Penha (SUXBERGER, 2007), pois têm disposições que vão desde o afastamento do ofensor da residência comum até aquelas de direito de família e direitos patrimoniais, como a guarda temporária exclusiva dos filhos por parte da vítima e a fixação de pensão alimentícia para os mesmos. Tais medidas são imediatamente deferidas sem prévia oitiva do agressor e têm vigência temporária até a realização de uma audiência judicial, que normalmente ocorre entre 10 e 20 dias depois, ocasião em que, após a oitiva dos envolvidos e análise do caso, poderá ser deferida uma medida protetiva de caráter permanente que poderá durar até três anos (como ocorre no Estado da Califórnia), sendo que a medida poderá ainda ser renovada após esse prazo mesmo sem que tenha havido reincidência na prática da violência.

As civil restraining orders são mais acessadas pelas vítimas, pois lhes oferecem alívio imediato em relação ao comportamento do ofensor, além de o nível de exigência probatório não ser o mesmo de um procedimento criminal nem demorar tanto e ter as incertezas e sofrimentos de tal procedimento, como a possibilidade de o fato não constituir crime. Além disso, as civil restraining orders ajudam a reduzir o medo da vítima de retaliação por parte do ofensor, pois servem apenas para lembrar ao ofensor que futuras agressões estão proibidas, ao passo que as protective orders ou stay-away orders típicas de um procedimento criminal tendem a lembrar mais o agressor sobre o processo criminal em curso e a punição que está por vir, fazendo nascer no ofensor sentimentos de vingança. Em suma, o principal objetivo das civil restraining orders é criar uma via alternativa ao simples e automático processamento criminal do agressor para proteger as vítimas de novos ataques, sendo que tal objetivo de fato coincide com o maior interesse das vítimas (KO, 2002, p. 365-390).

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Sobre o autor
Amom Albernaz Pires

Promotor de Justiça Adjunto no MPDFT. Pós-graduado em Ciências Penais pela FESMPDFT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Amom Albernaz. A opção legislativa pela política criminal extrapenal e a natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3533, 4 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23868. Acesso em: 8 nov. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado na Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, v. 1, n. 5, p. 121-168, 2011

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