5. FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL PÓSTUMA: PANORAMA JURÍDICO INTERNACIONAL E SITUAÇÃO BRASILEIRA
5.1. Principais aspectos em legislações estrangeiras
Em face dos progressos nas áreas conexas da biotecnologia e engenharia genética, que permitiram a aplicabilidade de procedimentos como a inseminação artificial, várias lacunas foram suscitadas e devem ser preenchidas no ordenamento jurídico. Para tal, apresenta-se oportuna uma análise das experiências estrangeiras. Nesse viés, Fernandes (2005) empreendeu estudos sobre a regulamentação jurídica das técnicas de reprodução humana assistida, com ênfase na inseminação póstuma, sob a ótica do direito comparado, tendo compilado os diversos posicionamentos adotados por vários países. Na França, é proibida a prática da inseminação artificial homóloga post mortem. Para o direito francês a criança concebida após a morte do seu pai seria filha apenas de sua genitora. Em solo espanhol, existe regulamentação jurídica acerca das técnicas de reprodução assistida. No que tange ao emprego da concepção artificial homóloga post mortem, não se verifica vedação, todavia, se o material fecundante do marido não foi implantado até o dia do falecimento do mesmo, não se perfaz a filiação. No entanto, através de escritura pública ou testamento poderá o marido determinar que seu material fecundante possa ser implantado no útero de sua mulher meses seguintes a sua morte, e nesta hipótese a geração do novo ser, produzirá os efeitos que derivam da filiação. Para os ingleses, a realização da fecundação assistida post mortem, é permitida, contudo, não se vislumbra a proteção aos direitos sucessórios da criança gerada por este tipo de procriação artificial, salvo se existir previsão expressa em testamento. Assim como Fernandes (2005), Ferraz (2009) também realizou pesquisa no mesmo sentido, acrescentando que os Estados Unidos foram o país em que se difundiu a inseminação artificial heteróloga, razão pela qual, a de natureza homóloga não tem enfrentado quaisquer obstáculos de ordem moral. Atualmente mais de 30 Estados americanos (tendo em vista sua autonomia legislativa) possuem disposições legais próprias acerca da reprodução assistida, homóloga e heteróloga, conferindo-lhe a posição de país mais rico em produção legislativa e jurisprudencial no que diz respeito a esse tema. Cabe mencionar ainda que, os Estados Unidos são a única nação do mundo onde a venda de óvulos e sêmen humano não é proibida, inclusive utilizando como canal de comercialização a internet, cujos sites especializados expõe verdadeiros “cardápios” de referências genéticas, descrevendo qualidades, etnias e até características de produção universitária e profissional. Essa negociação se dá desta forma, generalizada e facilitada, em função da lei americana considerar óvulos e espermatozoides partes renováveis do corpo humano. Ferraz (2009, p. 66), menciona que:
O jornal americano The New Republic veiculou matéria jornalística com o título “Banco de esperma quer sêmen ‘inteligente’”, informando que o California Cryobank, um dos principais bancos de esperma dos Estados Unidos, publicou anúncios em jornais da Universidade de Harvard e do Massachusets Institute of Technology – MIT, visando angariar espermas inteligentes com o seguinte texto: “Procura-se espermas inteligentes.” ‘Idiotas não se candidatem’. (...) Seu fundador, Charles Sims, diz que faz esforço para adquirir espécimes de alta qualidade dos melhores e mais inteligentes doadores, para oferecer às clientes ‘um doador que elas teriam orgulho de apresentar às suas mães’”.
Procedimentos como esse que mencionamos, ilustram a postura flexível e até permissiva da legislação americana frente às técnicas de reprodução humana assistida, fazendo com que muitas vezes sejam alvo de críticas por induzirem a eugenia. Em Portugal, foi aprovada em 2006 a Lei 32/2006, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2007, versando sobre a reprodução humana assistida, denominada procriação medicamente assistida, prevendo inclusive sanções penais em caso de descumprimento. Logo em seu artigo 3º, o referido dispositivo consigna que essas técnicas devem respeitar a dignidade humana, sendo vedada qualquer discriminação direcionada aos concebidos artificialmente. No que tange à inseminação póstuma, Ferraz (2009, p.69), informa que:
A lei permite a criopreservação do sêmen do doador, porém veda a inseminação post mortem, ainda que o companheiro ou o marido tenha autorizado. No item 3, no entanto, permite a utilização post mortem desde que seja para cumprir um projeto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, desde que decorrido um prazo considerável razoável para realização de tal projeto.
Vale salientar que a lei portuguesa, com o intuito de proteger os interesses da criança, não tornando incerta sua paternidade, estabelece no art. 23, que em caso de violação da norma e realização da inseminação post mortem, deverá ser atribuída a paternidade ao falecido companheiro ou cônjuge, exceto se, à data da inseminação a mulher tiver contraído novas núpcias ou se encontrar vivendo em união estável há pelo menos dois anos com homem que haja consentido o procedimento, hipótese em que ele será considerado o pai. Na Itália, em virtude da forte influência da Igreja Católica, a aplicação das técnicas de reprodução humana é bastante restrita. Para Ferraz (2009) a lei praticamente impede esse tipo de intervenção, proibindo a doação de esperma, de óvulos, o emprego de barriga de aluguel e pesquisas com embriões. Apenas autoriza que pessoas legalmente casadas ou que comprovem a estabilidade da relação tenham acesso à procriação artificial, mesmo assim, com seus próprios materiais fecundantes. A criopreservação de embriões é vedada, logo, a inseminação post mortem torna-se impossível.No Direito Brasileiro, vimos ao longo de nossas pesquisas que não há legislação específica que regulamente as técnicas de reprodução assistida, principalmente na esfera da inseminação artificial homóloga post mortem. Atualmente, o documento que tenta disciplinar a realização dessas técnicas, é a Resolução do Conselho Federal de Medicina de nº 1358/92 que traz apenas um norteamento ético aos profissionais da medicina. Nesse sentido, a mencionada resolução não comporta todas as hipóteses tendentes a regulamentar a procriação artificial, nem tão pouco possui força coercitiva, razão pela qual, faz surgir à necessidade da elaboração de diploma legal que se posicione no sentido de proibir ou permitir o exercício dessa prática, bem como, regulamente como se dará o processo sucessório do patrimônio deixado pelo doador póstumo. Após essa concisa análise de direito comparado, percebemos que nossa carência legislativa é por demais acentuada, tendo em vista que, sem qualquer juízo de valor, os demais países tem procurado exteriorizar seus preceitos éticos e sociais através da elaboração de leis específicas que versem sobre o tema.
5.2. A necessidade brasileira de regulamentação jurídica no que tange às técnicas de reprodução humana assistida
O progresso científico no campo da biotecnologia aplicada à reprodução humana popularizou procedimentos como a inseminação artificial póstuma, que possibilita a geração de filhos mesmo após a morte do doador do material fecundamente. Em decorrência disso, grandes problemas surgem quanto à determinação da capacidade sucessória da pessoa concebida após a morte do autor da herança. Nesse sentido, a grande problemática jurídica reside na ausência de legislação infraconstitucional brasileira que aborde de maneira específica estas técnicas de procriação artificial e suas conseqüências, fomentando por meio do silêncio da lei, a construção de várias e via de regra conflitantes, soluções propostas pelos juristas (FERNANDES, 2005).Nossos doutrinadores tendem ao reconhecimento da filiação dos concebidos por meio de inseminação artificial homóloga post mortem, conforme advogam Sílvio Venosa, Sílvia da Cunha Fernandes, Carlos Alberto Ferreira Pinto, dentre tantos outros, ao amparo do art. 1597 do Código Civil. Todavia, é no campo dos direitos sucessórios que o Código mantém-se silente, acarretando acalorados debates.Como vimos, no contexto das legislações estrangeiras, de acordo com Fernandes (2005) e Ferraz (2009), países como Itália, Suécia, França e Alemanha proíbem a fertilização artificial post mortem. No entanto, a Inglaterra, permite a realização da inseminação post mortem, mas não reconhece os direitos sucessórios do filho concebido. Na Espanha, a concepção é permitida mas, só produzirá os efeitos da filiação, caso o marido ou companheiro antes de seu falecimento tenha deixado testamento ou escritura pública permitindo a realização deste tipo de inseminação para além de sua morte. Frente à ausência de leis capazes de regulamentar as técnicas de reprodução assistida, em especial a inseminação artificial homóloga post mortem, díspares são os posicionamentos doutrinários, no que diz respeito à existência de capacidade sucessória por parte do concebido após a morte de seu pai. É bastante razoável afirmar que a solução para as divergências passa necessariamente pela elaboração de regramento jurídico específico. Seguindo esse entendimento, Fernandes (2005), defende ser imprescindível a criação de uma lei específica que regulamente as técnicas de reprodução humana assistida pela repercussão que a temática alcançou na família e na sucessão. Como vimos, a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1358, não é suficiente para disciplinar a realização destas técnicas, por carecer de coercitividade. É da competência do Direito tratar sobre este assunto, pois a ausência de uma legislação que determine conceitos, imponha limites e regule práticas, pode ocasionar decisões equivocadas e por conseguinte, danos de difícil ou impossível reparação.
Para Diniz (2009, p. 546):
[...] urge regulamentar a fecundação humana assistida, minuciosamente [...] Apesar de sermos contrários a essas novas técnicas de reprodução humana assistida, temos consciência de que o jurista não poderá quedar-se inerte ante essa realidade, ficando silente diante de tão intrincada questão, nem o legislador deverá omitir-se, devendo, por isso, regulá-la, rigorosamente, se impossível foi vedá-la.
A notável professora Maria Helena Diniz, mesmo declarando-se contrária à inseminação post mortem, não deixa de expor seu ponto de vista, salientando que a omissão do legislador frente à regulamentação do uso de tais técnicas não pode mais ser aceita. Cada vez mais, outras vozes se unem àquelas que hoje protestam pelo regramento desses procedimentos. Todavia, as tentativas até o momento esboçadas, não foram fruto de qualquer reflexão feita pelos cidadãos, nem tampouco foram ouvidos os profissionais da saúde. A questão precisa ser amplamente discutida e nesse processo, a construção de soluções legitimadas pelo debate, terão consistência e força. É preciso, antes de tudo, entender a razão que justifica o fato de que tanto tempo após a propositura do primeiro Projeto de Lei, nenhuma decisão ter sido tomada. Destarte, apresenta-se claramente a problemática envolvendo as técnicas de reprodução humana assistida ocorrida após a morte do doador fecundamente, em especial no que diz respeito ao tema abordado neste trabalho. Resta comprovada a necessidade e premência da regulamentação dessas técnicas, tendo em vista que questões dessa envergadura não podem permanecer por mais tempo sem claras delimitações jurídicas.
CONCLUSÃO
Em razão do desenvolvimento das pesquisas voltadas ao emprego de técnicas de reprodução humana assistida, inúmeras discussões surgiram na esfera jurídica, especialmente no âmbito do direito sucessório e no que diz respeito, em particular, à questão da capacidade sucessória do indivíduo concebido após a morte de seu pai, autor da herança. Na perspectiva do direito de família, não se vislumbram expressivas discordâncias quanto ao reconhecimento do status de filho ao concebido por inseminação artificial, inclusive post mortem, posto que a paternidade seja biologicamente inegável. Além do que, o Código Civil no art. 1597, inc. III, claramente admite como filho o indivíduo concebido por meio de fecundação homóloga mesmo após a morte do genitor. Já no campo do direito sucessório, em função da ausência de legislação infraconstitucional, capaz de regulamentar as técnicas de procriação artificial e suas consequências, nos deparamos com significativas divergências doutrinárias. A primeira corrente doutrinária, e que vem se consolidando, defendida por Maria Helena Diniz, Sílvio Venosa e José de Oliveira Ascensão, dentre outros, nega a capacidade sucessória ao concebido post mortem, em razão do disposto no art. 1.798 do Código Civil e sob o fundamento de que pelo princípio da saisine torna-se indispensável a existência ao menos do concebido para que se dê a transferência da herança. Adotam, portanto, um critério de análise legalista do código, aparentemente mitigando a aplicabilidade do princípio constitucional da igualdade entre os filhos ao caso. Fundamentam sua posição na necessidade de manutenção da segurança jurídica do herdeiro existente ou concebido quando da abertura da sucessão, vez que a superveniência do nascimento de novo herdeiro seria capaz de comprometer seu quinhão hereditário, tornando a partilha algo provisório. Por outro lado, advogam pela possibilidade de reconhecimento de capacidade sucessória ao concebido post mortem, Maria Berenice Dias, Juliane Fernandes Queiroz, Márcio Rodrigo Delfim e Aline de Castro Brandão Vargas, partindo do pressuposto de que a criança advinda por meio desta técnica, não pode ficar desamparada. Esta corrente alberga seu posicionamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre os filhos, buscando ainda fundamento na doutrina da proteção integral com fulcro no princípio do melhor interesse da criança. De outro turno, há quem defenda a possibilidade daqueles gerados postumamente figurarem como herdeiros testamentários através do instituto da prole eventual, bem assim, em sentido contrário, condenando esse entendimento, existem juristas que consideram essa ideia uma afronta ao princípio da igualdade entre os filhos. Numa perspectiva mais elaborada, encontramos Eduardo de Oliveira Leite, alegando que o direito sucessório apenas deve ser concedido em caso da concepção in vitro, ocorrida enquanto o genitor ainda estava vivo, mesmo que a implantação do óvulo fecundado na receptora se dê após sua morte. Logo, a fecundação ocorrida no útero da mulher partindo de sêmen criopreservado do doador pré-morto não ensejaria qualquer direito sucessório. Como demonstramos, o problema não encontra solução pacífica na doutrina. Até que surja legislação específica sobre a matéria, que engendre e formule meio de resolver a questão, o julgador deve intervir estabelecendo limites, consubstanciado nos princípios constitucionais, de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Nesse contexto, defendemos a criação de legislação específica que discipline a aplicação da inseminação artificial, bem como, seja capaz de regular as questões sucessórias, posição corroborada por diversos autores e operadores do direito, tais como: Maria Helena Diniz, Maria Berenice Dias, Silvia da Cunha Fernandes e Aline de Castro Brandão Vargas. Por certo, a elaboração do referido diploma legal deve guardar conformidade com os princípios já mencionados anteriormente. A questão da capacidade sucessória do concebido post mortem será tratada obrigatoriamente de modo a proporcionar uma solução adequada, que ao mesmo tempo proteja os direitos da criança advinda por meio desta técnica, como também não cause incerteza prolongada em demasia aos herdeiros nascidos ou já concebidos quando da abertura da sucessão. Lamentavelmente o Projeto de Lei número 1184/2003 que apensou doze outros projetos, que tratavam da reprodução assistida em nosso país, nada dispôs acerca dos direitos sucessórios, deixando transparecer a intenção do legislador de postergar a abordagem deste aspecto. Consideramos que a solução mais acertada envolve, à exemplo da legislação espanhola e do disposto no art. 14 § 2º, III do referido projeto de lei, a exigência de manifestação do doador no que tange à possibilidade de inseminação após sua morte, fixando um prazo de até dois anos para que se dê a concepção, sob pena de decadência (mesmo prazo adotado na hipótese de prole eventual). Desta forma, a partilha não estaria sujeita a alterações por um período demasiadamente longo. Ademais, no silêncio dessa autorização expressa e formal, qualquer procedimento deveria ser proibido, e se caso viesse a ocorrer, o profissional da medicina que o realizou, bem como, a mulher receptora que contratou seus serviços deveriam sofrer severa sanção penal. No tocante aos direitos sucessórios, acreditamos que o filho concebido mediante autorização seria legitimado para suceder na condição de herdeiro necessário. Ainda se a concepção ocorreu sem autorização, que a pena imposta não atinja a pessoa do filho e nem tampouco tenha o condão de impedir ou limitar seus direitos sucessórios, pois seria inadmissível puni-lo unicamente por ter nascido.Esta pesquisa não teve a pretensão de esgotar as muitas discussões que a temática sugere, dada sua complexidade e relevância. Todavia, firmamos nosso entendimento de que o caminho para a resolução da problemática, não passa pela simples negação dos direitos sucessórios, em face da inexistência de regramento jurídico. Os interesses das crianças, independentemente da forma como foram geradas, devem ser protegidos. Assim sendo, enquanto não se cuidar na elaboração de lei que discipline de forma adequada as técnicas de reprodução humana assistida, o direito sucessório dessas pessoas deverá ser interpretado à luz da Constituição Federal.