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A (in)constitucionalidade da criminalização das drogas

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18/03/2013 às 16:01
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A política proibicionista da maioria das drogas no Brasil impõe tratamento injustificavelmente diferenciado, pois permite o consumo de bebidas alcoólicas e cigarros de tabaco, causadores de problemas na saúde do ser humano tão ou mais graves do que as drogas hoje consideradas ilícitas.

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, observa-se que a “guerra às drogas” não traz nenhuma mudança significativa à realidade dos dependentes químicos e eventuais usuários, que continuam a movimentar o mercado ilegal. Enquanto determinada quadrilha de traficantes é desmantelada por forças policiais – combinadas à violência e ao medo que afligem os moradores – em alguma periferia ou favela do país, esses consumidores simplesmente buscavam outros fornecedores para suprir suas necessidades.

Afinal, qual seria o objetivo final dessa verdadeira “guerra às drogas” empenhada pelo Estado brasileiro? O fim das drogas? Ora, aquele que crê em tal possibilidade está, certamente, fora do pleno exercício da razão. Essas substâncias não deixarão de existir na natureza ou de serem criadas pelo homem; elas sempre existiram e sempre foram consumidas, inclusive sem serem internacionalmente classificadas como ilícitas até o recente século XX – inclusive no Brasil.

Mas o pior é que ignora-se que este é um Estado Democrático de Direito, baseado em uma Constituição que prevê em seu artigo 5º certos direitos fundamentais indispensáveis à vida digna em sociedade, como a liberdade individual, a intimidade, a vida privada, a igualdade e a apreciação jurisdicional da lesividade, os quais se vêem mortalmente feridos pela criminalização das condutas tipificadas na Lei n. 11.343/2006 – norma esta infraconstitucional. Afinal, combinados esses direitos, garante-se, em suma, que todos os indivíduos possam gerir a própria vida como desejar, desde que não prejudiquem o outro, cabendo à lei proibir tão somente as ações lesivas à sociedade.

Esta pesquisa objetiva verificar se legalizar as drogas é admissível no Brasil, tendo em vista fundamentos constitucionais e penais. Para tanto, será analisada a (in)constitucionalidade da criminalização existente no país, frente aos princípios constitucionais da liberdade individual, da intimidade, da vida privada, da igualdade e da lesividade.


1 CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS, LIBERDADE INDIVIDUAL, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA

Pioneira na questão dos direitos humanos fundamentais, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 1789 na França, já definia que

Artigo I. Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.

[...]

Artigo IV. A liberdade consiste em poder fazer qualquer coisa que não prejudique aos outros. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei.

Artigo V. A lei tem o direito de proibir as ações prejudiciais à sociedade.[1]

Nesse mesmo sentido se apresenta o direito à liberdade no constitucionalismo brasileiro, que visa assegurar a cada pessoa a possibilidade de autodeterminação, o poder de autonomia, pelo qual ela escolhe por si mesmo o seu comportamento pessoal, de acordo com a sua consciência, os seus valores e os seus interesses, desde que não atinja a esfera pessoal de terceiro.[2] Dessa forma, o exercício dos direitos naturais do ser humano encontra limites apenas para garantir aos outros membros da comunidade o gozo dos mesmos direitos.

O princípio da liberdade individual, consagrado como direito fundamental do homem no caput do artigo 5º da CRFB, traz a idéia de liberdade de fazer, liberdade de atuar ou liberdade de agir como bem se entender, desde que isso não prejudique a pessoa de outrem. Logo, no Estado Democrático de Direito brasileiro, amparado em uma Constituição, a liberdade individual é regra e qualquer tipo de proibição ou coação estatal é exceção.

Posto isso, é interessante destacar a conceituação do constitucionalista José Afonso da Silva, que, ao tratar do direito à liberdade do ser humano, explica que esta pode ser dividida em liberdade interna e liberdade externa:

Liberdade interna (chamada também de liberdade subjetiva, liberdade psicológica ou moral e especialmente liberdade de indiferença) é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no mundo interior do homem. Por isso, é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo; vale dizer, é poder de escolha, de opção, entre fins contrários. [...] feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e, aí, se põe a questão da liberdade externa. Esta, que também é denominada de liberdade objetiva, consiste na expressão externa do querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coações, de modo que o homem possa agir livremente. Por isso é que também se fala em liberdade de fazer, poder fazer tudo o que se quer.[3]

Ao adequar-se a questão das drogas à definição de liberdade acima apresentada, conclui-se que a pessoa deve ter a liberdade interna de querer e tomar a decisão de adquirir, produzir ou fazer uso ou não de algum tipo de droga, bem como ter a liberdade externa de agir conforme essa decisão livremente.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, a CRFB contemplou no inciso X de seu art. 5º o princípio da inviolabilidade da intimidade e da vida privada das pessoas. O direito à intimidade consiste no poder legal que o indivíduo tem para afastar os demais da esfera secreta da sua vida. Por sua vez, o direito à vida privada consiste no poder legal que o indivíduo tem de viver sua própria vida; diz respeito ao conjunto de modo de ser e de viver.[4]

Para Silva, os valores humanos da intimidade e da vida privada são direitos individuais conexos ao próprio direito à vida (também assegurado pelo art. 5º da CRFB, em seu caput).[5] Conjuntamente, esses direitos integram o chamado direito à privacidade, que compreende “o direito de toda pessoa tomar sozinha as decisões na esfera da sua vida privada”.[6]

Assim, é indubitável a necessidade de constatar-se a (in)constitucionalidade da criminalização do consumo de drogas no Brasil frente ao princípio constitucional da liberdade individual, que é – e deve ser (no plano normativo) – a primeira e mais importante garantia do ser humano, bem como frente ao princípio da inviolabilidade da intimidade e da vida privada do indivíduo.

Conforme explicitado anteriormente, o direito à liberdade, em linhas gerais, consiste na possibilidade que cada indivíduo tem de fazer tudo que não prejudique o seu próximo. Nota-se, então, que, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluto. Há um limite, podendo este ser determinado somente por lei. Acontece que a lei não pode proibir senão as ações nocivas à sociedade.

Posto isso, passa-se a analisar se a restrição à liberdade do indivíduo para usar a droga, mas também para produzi-la ou adquiri-la – desde que junto a comerciantes devidamente regulamentados e fiscalizados pelo Poder Público, uma vez legalizada a conduta – é cabível nesta sociedade democrática. Tratam-se realmente de condutas que afetam de forma direta e concreta quaisquer direitos de terceiros?

Não. Adquirir, produzir, possuir e, por conseguinte, usar algum tipo de droga não diz respeito à esfera de terceiros, mas tão somente ao indivíduo, que faz uso de sua liberdade para conduzir a própria vida como bem entender. Além disso, fazer uso de drogas é uma decisão e uma conduta particular, que não concerne a mais ninguém, ainda que entendam que o indivíduo esteja prejudicando a si mesmo. Afinal, faz parte da idéia de liberdade individual, intimidade e vida privada deixar causar dano a si próprio, seja como for.

O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. O próprio bem do indivíduo, seja material seja moral, não constitui justificação suficiente. O indivíduo não pode legitimamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, porque na opinião dos outros tal seja sábio ou reto. Essas são boas razões para o admoestar, para com ele discutir, para o persuadir, para o aconselhar, mas não para o coagir, ou para lhe infligir um mal caso aja de outra forma. Para justificar a coação ou a penalidade, faz-se mister que a conduta de que se quer desviá-lo tenha em mira causar dano a outrem. [...] Na parte que diz respeito unicamente a ele próprio, a sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano.[7] (grifo nosso)

Assim sendo, mesmo que a sociedade em geral entenda que a livre produção, aquisição, porte e uso de drogas sejam condutas inadequadas, práticas condenáveis dentro de todo o âmbito social, um modo de viver que não é sábio e reto, reprovável pela moral e pelos bons costumes, não cabe a ninguém tentar impor conduta contrária, muito menos por meio da criminalização, que não deve ser voltada à tutela da liberdade individual – quando seu exercício não aflige terceiros –, da intimidade e da vida privada. Nesse sentido, são as palavras de Rogério Greco:

Concluindo, todas as vertentes acima traduzem, na verdade, a impossibilidade de atuação do Direito Penal caso um bem jurídico relevante de terceira pessoa não esteja sendo efetivamente atacado. Aquilo que for da esfera própria do agente deverá ser respeitado pela sociedade e, principalmente, pelo Estado, em face da arguição da necessária tolerância que deve existir no meio social, indispensável ao convívio entre pessoas que, naturalmente, são diferentes.[8] (grifo nosso)

Destarte, ignorar determinado modo de ser e de viver por ser “diferente” é inadmissível neste Estado Democrático de Direito, o que fere mortalmente, em última instância, a própria dignidade da pessoa humana[9], princípio fundamental tão aclamado contemporaneamente e assegurado no inciso III do art. 1º da CRFB. Como “a liberdade representa o anseio primeiro de todos os homens, sem a qual, nenhum outro direito seria de muita valia, [entende-se que] sem liberdade não se concebe a mínima dignidade humana”[10].

Corroborando esse entendimento, Silva dispõe que, por ser essência da natureza humana e por conferir autonomia (liberdade) ao ser humano, a dignidade não admite discriminação alguma e não está assegurada se o indivíduo for discriminado ou depreciado.[11] No mesmo sentido, Alexy aduz que “[...] a norma da dignidade da humana está baseada na compreensão do ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de se determinar e se desenvolver em liberdade”.[12] (grifo nosso)

Inclusive, é hoje dever do Estado promover esse processo de “liberação” do homem de todos os obstáculos que se antepõem à realização de sua personalidade – no qual consiste a liberdade, em suma[13] – e não o contrário, de modo a “aprisionar” o indivíduo, principalmente, em si mesmo. Até porque, lembre-se, é objetivo fundamental desta República Federativa a construção de uma sociedade livre e a promoção do bem de todos (incisos I e IV do art. 3º da CRFB).

Admitir situação contrária, como se tem visto em especial com a instaurada política criminal de drogas no Brasil importa na inversão dos valores positivados na ilustre Carta Constitucional e na configuração de um Estado de exceção, conforme completa Canotilho:

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É fácil de ver que a desestabilização do sistema penal, nos seus princípios e na sua dogmática, equivale também a uma radical alteração dos princípios fundantes e dos princípios estruturantes do direito constitucional. [...] A pressão recai sobre as Constituições, obrigando-as a rever os respectivos textos, sobretudo no âmbito das liberdades e das garantias, transformando as regras em excepções e as excepções em regras.[14]

Posto isso, é imperioso enfatizar a notável decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo relator sabiamente priorizou a harmonia do ordenamento jurídico com os ditames emanados da CRFB. Seguindo o voto do relator, a Câmara absolveu um réu que havia sido preso em flagrante portando 7,7 gramas de cocaína, nos termos do inciso III do art. 386 do Código de Processo Penal, isto é, reconhecendo que o fato não constituiu infração penal:

EMENTA: 1 – A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2 – O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, colorálio do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.[15]

Para melhor inteligência, destacam-se aqui os seguintes trechos do incólume voto do relator, ao qual foi dado provimento para absolver o recorrente, por enquanto apenas no que tange à liberdade individual, intimidade e vida privada do homem:

[...] os elementos de prova produzidos nesta ação penal são suficientes, apenas e tão somente, para afirmar que o recorrente estava portando 7,7g de cocaína para consumo próprio e que, em conseqüência, a sua conduta seria subsumível ao tipo do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006.

Todavia, a criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque [...] viola frontalmente os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, albergados pelo artigo 5º da Constituição Federal como dogmas de garantia individual.

Como observa Salo de Carvalho, “a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo ao uso de entorpecentes é injustificável”. [CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 253].

O argumento de que o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é de perigo abstrato, bem como a alegação de que a saúde pública é o bem tutelado, não é sustentável juridicamente, pois contraria inclusive a expressão típica desse dispositivo criminalizador, lavrado pela própria ideologia proibicionista, o qual estabelece os limites de sua incidência pelas elementares elegidas, que determinam expressamente o âmbito individualista da lesividade e proíbem o expansionismo desejado.

Basta ler o tipo penal em menção, que descreve, para a incidência da conduta que pretende criminalizar, exclusivamente aquela de quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou porta, “para consumo pessoal”, drogas proibidas. O elemento subjetivo do tipo, evidenciado pela expressão “para consumo próprio”, delimita com exatidão o âmbito da lesividade e impede qualquer interpretação expansionista que extrapasse os lindes da autolesão.

Com efeito, como assevera Maria Lúcia Karam, “é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada ausência daquela expansibilidade do perigo (...). Nesta linha de raciocínio, não há como negar incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas; ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal”. [KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 126].

É por isso que Alexandre Morais da Rosa afirma que “no caso de porte de substâncias tóxicas inexiste crime, porque, ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo artigo 16 da Lei n. 6368/76 é a integridade física e não a incolumidade pública”. [ROSA, Alexandre Morais da. Direito infracional: garantismo, psicanálise e movimento antiterror. Florianópolis: Habitus, 2005. p. 217].

[...]

Não se olvide da violação ao princípio constitucional garantidor da intimidade e da vida privada, que estabelece intransponível separação entre o direito e a moral.

Com efeito, não se pode admitir qualquer intervenção estatal, principalmente de índole repressiva e de caráter penal, no âmbito das opções pessoais, máxime quando se pretende impor pauta de comportamento na esfera da moralidade.

Induvidosamente, “nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser aos sujeitos determinados padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo e da tolerância à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade”. [CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 256].

[...]

Decididamente, “no direito penal de viés libertário, orientado pela ideologia iluminista, ficam vedadas as punições dirigidas à autolesão (...): o direito penal se presta, exclusivamente, à tutela de lesão a bens jurídicos de terceiros. Prever como delitos fatos dirigidos contra a própria pessoa é resquício de sistemas punitivos pré-modernos. O sistema penal moderno, garantista e democrático não admite crime sem vítima. A lei não pode punir aquele que contra a própria saúde ou contra a própria vida – bem jurídico maior – atenta: fatos sem lesividade a outrem, punição desproporcional e irracional” [Lições de Eugênio Raul Zafaroni, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Rosa Del Olmo, Maria Lúcia Karam e Salo de Carvalho].

Como ensina Maria Lúcia Karam, “a simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que, situando-se na esfera individual, se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado – e, portanto, ao Direito – penetrar. Assim, como não se pode criminalizar e punir, como, de fato, não se pune a tentativa de suicídio e a autolesão; não se podem criminalizar e punir condutas, que podem encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão”. [KARAM, Maria Lúcia. Revisitando a sociologia das drogas. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (Org.). Verso e reverso do controle penal. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 136].

E não se olvide, ainda, que a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afronta o respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergado pela Constituição Federal e por inúmeros tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

Com efeito, “a criminalização do porte de substância entorpecente dá uma bofetada no respeito ao ser diferente, invadindo a opção moral do indivíduo. Há uma nítida reprovação a quem não segue o padrão imposto. Há uma espécie de eliminação social dos que não são iguais. (...). Cabe ao ser humano, desde que não interfira nos desígnios de terceiros e os lesione, de maneira individual, escolher e traçar os caminhos que mais lhe convém. Ao se reprovar o uso criminalizando o porte, a sociedade invade seara que não é constitucionalmente sua. Assim fazendo, desrespeita as opções individuais e estigmatiza o ser diferente pela simples razão de este não se revestir da crença do que seria correto. (...) A Constituição exige tolerância com quem seja assim, sem exigir padrões de moralidade aos diversos grupos existentes, dentre eles os que usam drogas” [BIZZOTTO, Alexandre; RODRIGUES, Andréia de Brito Rodrigues. Nova lei de drogas: comentários à Lei n. 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 41].

Portanto, como a criminalização primária do porte de entorpecente para uso próprio é inconstitucional, a conduta do recorrente, que portava cocaína para uso próprio, é atípica.[16] (grifo nosso)

Tendo isso em vista todos os pontos anteriormente explicitados, não restam dúvidas de que a proibição do Estado imposta às condutas de adquirir ou produzir, possuir e usar drogas, as quais não excedem o âmbito próprio, é inconstitucional, uma vez que isso implica intervenção estatal na vida particular do indivíduo, sem que realmente tenha potencial para causar dano a alguém que não seja ele mesmo.

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Sobre a autora
Andressa Barboza Félix

Advogada e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉLIX, Andressa Barboza. A (in)constitucionalidade da criminalização das drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3547, 18 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23980. Acesso em: 24 abr. 2024.

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